A última pizza

Tese da defesa de Marcos Valério conduz à impunidade

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30 de novembro de 2012, 13h44

A poucos dias da conclusão do julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal, a grande mídia volta todas as suas atenções para o possível efeito de cassação dos mandatos dos parlamentares condenados. Ainda não se atentou ao fato de que a pizza é outra, está no forno e já cheira longe. Trata-se de questão de ordem levantada pela defesa do réu Marcos Valério, que, invocando o benefício legal do crime continuado, pretende transformar os diferentes crimes de corrupção ativa, peculato, lavagem de dinheiro e evasão de divisas em uma coisa só, com a consequente aplicação da pena de um só desses crimes, mais um acréscimo insignificante.

Sobre o chamado crime continuado, diz o artigo 71 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”

Desde 1980, a jurisprudência do STF firmou-se no sentido de que crimes da mesma espécie são aqueles previstos no mesmo tipo penal (p. ex., homicídio, roubo, estupro). Ultimamente, têm-se sustentado que o benefício legal pode ser aplicado, em tese, aos crimes que tenham o mesmo bem jurídico protegido (p. ex., vida, honra, patrimônio), desde que respeitados os demais requisitos da lei.

A referida questão de ordem esbarra, inicialmente, na própria diversidade de bens jurídicos tutelados. É que, nos crimes de corrupção ativa e peculato, a lei penal defende o interesse da Administração Pública. Já no crime de lavagem de dinheiro, tutelam-se múltiplos valores reunidos em torno do interesse da Administração da Justiça. E, no crime de evasão de divisas, a lei penal salvaguarda o Sistema Financeiro Nacional. Não havendo, pois, entre uns e outros delitos, coincidência de bens jurídicos protegidos, não há como cogitar a aplicação do benefício legal.

Acima de tudo, existe o óbice intransponível da absoluta discrepância dos modos de execução desses delitos. É que, para meter a mão no dinheiro público, isto é, para praticar o delito de peculato, o agente público, sozinho ou em conluio com particulares, deve realizar a conduta descrita no artigo 312 do Código Penal: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”. Ao subornar um funcionário público, o agente pratica o crime de corrupção ativa, assim tipificado no artigo 333 do Código Penal: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Até um cego pode ver que se trata de ações que se executam de formas completamente díspares. Mencionem-se as circunstâncias concretas do julgamento do mensalão: a corrupção de alto funcionário do Banco do Brasil deu-se pela promessa e pagamento de propina na surdina.

Já o desvio de muitas dezenas de milhões de reais dos cofres públicos deu-se pelo pagamento ostensivo de simulados serviços de publicidade e pela explícita apropriação de recursos públicos do fundo visanet.

O acolhimento da nova tese pode surtir efeitos catastróficos. De Lalau a Cachoeira, praticamente todos os criminosos do colarinho branco envolvidos nos terríveis escândalos de corrupção que assombram o Brasil serão graciosamente premiados, como nunca antes na história desse país.

É que, pelas dezenas de crimes diferentes que cometessem (peculatos, corrupções ativas e passivas, lavagens de capitais, evasões de divisas, etc), os réus receberiam a pena de único crime, com o singelo acréscimo de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços). Assim, p.ex., o STJ (e não o STF) recentemente confirmou a condenação do empresário Luiz Estevão a 36 anos de prisão por corrupções e peculatos relativos ao escândalo do TRT-SP.

A vingar essa tese, sua pena pode cair pela metade. Ou, p.ex., o MPF em Goiás pediu à Justiça Federal que condene o bicheiro Carlinhos Cachoeira a penas que alcançariam 80 anos de prisão. A prosperar essa tese, 80 (oitenta) anos podem virar 08 (oito).

Enfim, sejamos realistas, não há quem possa impedir o STF de rever sua jurisprudência de mais de três décadas, não há quem possa corrigir os erros crassos do STF. Mas uma coisa deve ficar clara: se os ministros quiserem acolher essa nova tese — não importa se por compaixão ou por absurdo equívoco —, eles que assumam a responsabilidade pelo quadro de impunidade geral que está por vir.

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