Senso Incomum

O Direito brasileiro e a nossa síndrome de Caramuru

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29 de novembro de 2012, 7h00

Spacca
Uma tosa de porco e um furdunço
Não resisto em comentar o affair Roxin em terrae brasilis. No interior gaúcho em que nasci — onde, não me canso de repetir, guimaraesrosamente, o mato não tem fecho — costuma-se chamar isso de “furdunço”. Alguém diz que alguém disse algo, quem conta um conto aumenta um ponto e, como nas brincadeiras de telefone-sem-fio, no final da história tem-se uma estória. Ou, ainda para usar uma expressão do folclore gaúcho, tem-se uma “tosa de porco”, isto é, muito grito e pouca lã.[1]

Relembremos: Claus Roxin esteve no Rio de Janeiro para receber um título de doutor honoris causa da Universidade Gama Filho e para participar do Seminário Internacional de Direito Penal e Criminologia ocorrido na Escola da Magistratura entre os dias 30 de outubro e 1º de novembro. Nessa ocasião, concedeu entrevista à Folha de S.Paulo (clique aqui para ler). Segundo nota emitida por ele e assinada por três professores que estiveram no evento (clique aqui para conferir), teria havido truncagem das respostas, modificando o sentido do que disse. Segundo a nota, suas palavras se referiram a manifestações gerais sobre a teoria do domínio do fato, uma repetição das opiniões que ele já emitiu desde 1963, sobre o assunto. E que seria uma completa inverdade que tivesse manifestado interesse em assessorar a defesa de José Dirceu, como dito em outra matéria o mesmo jornal (aqui).

A mediocriopatia da doutrina
Introduzido o tema, digo que gostei muito da Coluna Diário de Classe da semana passada (leia aqui). André Karam Trindade explicou bem a contenda, utilizando Woddy Allen, onde Mcluhan sai por detrás de uma placa e diz que o professor estava errado sobre a sua teoria (esta alegoria também foi usada por Saul Leblon na Carta Maior). Ou seja, no filme, um professor se dizia especialista em Mcluhan. Allen contesta e chama à colação o próprio Mcluhan, que, aparecendo repentinamente, desmente o expert. Na sequência, já para além da construção alegórica de Saul Leblon, Trindade ironiza sobre o que Roxin poderia dizer aos brasileiros que durante todos esses anos, nada produziram de próprio…

Quero dizer, aqui, que a alegoria de Woody Allen nos ajuda a entender o busílis da questão que decorreu da entrevista de Roxin à Folha de S.Paulo… Isto é, por que razão, motivo ou circunstância, precisamos usar um argumento de autoridade (penso sempre em Irving Copy) para tentar resolver um problema que a doutrina e os próprios advogados poderiam ou deveriam ter resolvido por aqui mesmo? Somos tão incompetentes assim?

Tenho insistido na tese de que a grande perdedora no julgamento do mensalão foi a dogmática jurídica. A dogmática jurídica é um queijo suíço. Portanto, quem perdeu foi o “mundo” penal-processual penal (e o constitucional processual-penal, se é que é importante essa ligação entre direito penal, processual penal e a Constituição… — estou sendo irônico!). A dogmática jurídica sofre de mediocriopatia e de uma alienopatia, porque, por ela, o mundo “é assim mesmo”, em que “todos os gatos são pardos”. É o império das interpretações e teses ad hoc.

Nesse contexto mediocriopático ou normalopático, a doutrina no Brasil dia a dia doutrina menos. Ela se adapta à “realidade que os tribunais apresenta(ra)m” nos últimos anos. Ficou “doente”. E por que venho denunciando isso? Porque qualquer análise empírica vai nos mostrar que a doutrina — e não só a penal-processual-penal — está caudatária das decisões tribunalícias. E o simbólico disso está nos julgamentos do STJ e do STF sustentados nas teses do realismo jurídico, onde a máxima é “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais-dizem-que-é” (aliás, registre-se uma importante alteração no posicionamento do novo ministro do STF, Teori Zavascki, que, em voto no STJ, deixava transparecer nitidamente uma adesão ao realismo norte-americano; em entrevista coletiva de 27.11.2012, o ministro disse: “Quem tem que aferir a vontade do povo são os integrantes de poderes do Estado que são eleitos com essa missão. O dever do juiz é aplicar as leis, as regras legítimas”; esse posicionamento de Zavascki é alvissareiro e registro-o, aqui, por inteira justiça).

Todavia, para pontuar a dramaticidade da crise que aqui discuto, vejamos o que disse o desembargador federal Fausto De Sanctis à Folha de 25 de novembro de 2012: “Os ministros [do STF] agora estão adotando um pragmatismo jurídico. [Antes] eles decidiam levando em consideração a abstração dos valores constitucionais, mas agora, atuando de forma equivalente aos juízes de primeiro grau, levam também em consideração a realidade dos fatos concretos.” Supondo que seja isso que tenha acontecido com o Supremo Tribunal, o que fica patente é que De Sanctis acha(ria) ótimo isso. E eu pergunto: Como assim, Doutor De Sanctis? É bom ser pragmatista (ou pragmaticista)? Antes, quando o STF se “baseava nos valores abstratos da Constituição”, era ruim? E, o que é isto — o pragmatismo? Sei que o Doutor De Sanctis andou muito pelos EUA, mas… o que é bom para os “Isteites”, é bom para o Brasil? Quer dizer que o bom julgamento começa “de baixo” para “cima”, isto é, começa pelos “fatos” (a realidade dos fatos concretos — sic) e só depois observa “os valores da Constituição”? Estou ficando (mais) assustado.

Outra coisa. Como se faz isso — separar “direito e fatos”? Isso já não estava superado filosoficamente de há muito? Não foram os franceses que fizeram isso para proibir os juízes de interpretar? Mas, parece que, com o que disse De Sanctis, agora é o contrário: começa pelos fatos, os juízos de validade sobre a lei e a Constituição ficam em segundo plano. Só para registrar: o pragmatismo é, para mim, a pior forma de positivismo, porque, a pretexto de resolver “problemas”, cria inúmeros outros, aumentando o grau de incerteza e fragilizando as liberdades públicas (se alguém quiser saber o que é esse tal de pragmatismo, leia um defensor da tese, o norte-americano Richard Posner — na sequência, dele falarei).

Mas, sigo, para demonstrar que “a doutrina não se ajuda”.

Por isso, depois de o Supremo Tribunal Federal ter utilizado a teoria do Domínio do Fato de um modo que parcela considerável dos juristas não gostou, em vez de a doutrina elaborar um “constrangimento epistêmico (ou epistemológico)” para confrontar o que foi dito, foi “chorar as pitangas” nos ombros do estranjero (não o de Camus), no caso, aquele que idealizou (no sentido de readaptação) da Teoria (que, na verdade, não é uma teoria e, sim, uma tese) do Domínio do Fato, em uma espécie de descobrimento da intentio legislatoris doutrinária…

Desculpem, mas eu avisei…
Sem querer puxar a brasa para o meu churrasco (hoje estou sendo bem gauchesco), fui o primeiro a levantar a lebre[2] sobre os riscos do uso da tal tese do Domínio do Fato na Coluna “O mensalão e o ‘domínio do fato — tipo ponderação’”.

Na ocasião, alertei à comunidade jurídica quanto ao risco da teoria do domínio do fato (Tatherrschaftstheorie) ser transformada em uma nova “ponderação” ou em uma espécie de “argumento de proporcionalidade ou de razoabilidade”, como se fosse uma cláusula aberta, volátil, dúctil. Nessa Coluna, cheguei a falar de uma professora de cursinho que vulgarizou a tese, o que era um perigoso sintoma de uma nova “ponderação” (essa vulgata decorrente de uma leitura equivocada da Teoria da argumentação alexiana). Relembro, ipsisliteris, pequeno trecho do que falei:

Se for assim como explicado pela professora, a tese “do domínio do fato” nem tem importância. Se seguirmos a dica da Professora, o juiz levará em conta a tese do “domínio do fato” se quiser… (afinal, se ele pode chamar o autor de partícipe ou vice-versa…). E, pior: por “pura discricionariedade” (que é a doença contemporânea do autoritarismo no direito). Ora, desse modo a tese do “domínio do fato” acaba sendo um álibi teórico. Parece evidente que a tese não pode ser algo tão singelo assim.”

Mas fui ainda mais incisivo:

“A tese tem, digamos assim, no seu nascedouro, uma forte especificidade “política”, porque mais destinada o que não quer dizer exclusivamente a acusar os mandantes de crimes políticos ou de violadores de direitos humanos. Explico melhor isso: Roxin mesmo diz que escreveu a tese em virtude do “caso Eichmann” (seria uma tese de exceção, portanto, datada?). Mas, qual é o problema da tese? Em primeiro lugar, a julgar pelas decisões mais contemporâneas nos Tribunais alemãs, não se sabe bem se, com a tese, abandona-se a teoria subjetiva e se aceita de vez a teoria objetiva do “domínio do fato” (essa é uma preocupação de um penalista do quilate de Kai Ambos, para referir apenas este). Só isso já dá para fazer uma bela discussão, mormente se trazermos para dentro boas pitadas de filosofia. Em segundo lugar, parece haver uma excessiva abertura. Ela não revoga e sem substitui a questão fulcral da teoria do delito, que é a necessidade de se apurar efetivamente os pressupostos que a engendra(ra)m historicamente. Vejam: o que quero dizer é que a teoria (ou tese) não é aberta “em si”. Ela não foi engendrada para ser uma espécie de “cláusula aberta do direito penal”. Tampouco foi construída para ser um “mantra jurídico”. O problema, pois, é que a dogmática jurídica pode vir a transformá-la em uma “tese indeterminada”, algo como uma “teoria que sofre de anemia significativa”. Já bastam as cláusulas gerais do Código Civil e os conceitos alargados de dignidade da pessoa humana, em que “cabe qualquer coisa”. Sei que não é a mesma coisa. Mas, por acaso não foi por aqui que se escreveu que “a culpabilidade era pressuposto da pena”, cindindo (sic) o conceito de delito (crime seria apenas um fato típico e antijurídico)? Nessa mesma linha, não esqueçamos que as teses sobre imputação objetiva estão no nosso horizonte.”

A síndrome de Caramuru[3]
Pronto. Cartas na mesa. Na sequência, todos sabemos o que ocorreu. O ministro Lewandowski falou da Coluna Senso Incomum em um de seus votos, para criticar o uso descontextualizado da tese do Domínio do Fato. Mas a comunidade jurídica somente foi se dar conta quando o próprio autor, Claus Roxin, saiu atrás da placa (faço alusão metafórica ao filme de Woddy Allen e a entrada em cena de Mcluhan) e disse — ou teria dito — que a teoria do Domínio do Fato não era bem assim como o STF estava dizendo… Na verdade, não se sabe, exatamente, se Roxin disse ou não disse. Sim, ele disse algo, mas em um contexto. É como dizer que “alguém é como um cão”… Pode ser ofensivo como pode ser altamente elogioso. Complicamos o meio campo. Agora, nesse furdunço, de uma metalinguagem sobre a linguagem objeto, necessitaríamos de uma metametalinguagem.

Todo esse episódio só serve para nos mostrar a nossa síndrome de Caramuru. “Bem feito” para nós todos, como se diz na linguagem popular. Que maçada. Pagamos um mico. A dogmática jurídica brasileira não vai bem…

Vamos estudar mais. Sofistiquemos a doutrina brasileira. Paremos com as simplificações. Não incentivemos mais a cultura manualesca. Coloquemos uma tarja nos livros “simplificadores” e “quetais”, avisando, como nas carteiras de cigarro, “que o uso constante desse material fará mal à sua saúde mental”, escrito abaixo de uma foto de um jurista com cara de imbecil, com a advertência : “li e fiquei assim” (com a cara torta). Vamos dar um basta na dogmática prêt-a-portêr. Nós podemos mais. Vamos construir nossas teorias (ou estudar melhor as que vêm de fora!). Sejamos um pouco antropofágicos. Façamos uma espécie de Semana da Arte Moderna no Direito. Mastiguemos o que vem de fora e lancemos uma coisa nossa, (a)brasileira(da).

Façamos uma teoria adequada às nossas especificidades, como venho tentando (não somente eu, mas muita gente do Brasil), tanto no plano Direito Constitucional (Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia), como em termos da construção de uma teoria da decisão (Verdade e Consenso), em que promovo uma adaptação de teses alienígenas, dando-lhes uma feição para uso em Pindorama.

É evidente que necessitamos dos clássicos e dos contemporâneos que abrem e abriram novos caminhos nos diversos campos do documento jusfilosófico. Roxin, por exemplo, é fundamental. Mas devemos evitar uma total dependência a eles. Temos de construir nossas teses e teorias.[4] Ou mastigá-las a ponto de confrontar até mesmo o produto nosso com o original, em determinadas circunstâncias.

Podemos constatar isso nas teses processualistas (lato sensu) de Dierle Nunes, Rosemiro Leal, Alexandre Bahia, Alexandre Morais da Rosa, Aury Lopes Júnior, Flaviane Barros, Francisco Motta, Adalberto Hommerding, Geraldo Prado, Nelson Nery Jr, Jacinto Coutinho e Humberto Theodoro Júnior; na teoria da constituição, Paulo Bonavides, Marcelo Cattoni, Gilberto Bercovici, Fábio de Oliveira, Martonio Barreto Lima; sobre direitos fundamentais, Ingo Sarlet, Ana Paula Barcellos, Flávia Piovesan, Cláudio Pereira, Daniel Sarmento e nos direitos das minorias, Luiz Alberto David de Araujo; nas teses sobre jurisdição constitucional (e ativismo), Luís Roberto Barroso, Clémerson Cléve, José Adércio Sampaio (e os mais jovens Georges Abboud, Bernardo Gonçalves Fernandes, Eduardo Ribeiro Moreira, Clarissa Tassinari e Fernando Vieira Luis), que, mesmo com questões com as quais divirjo, possuem trabalhos relevantes para a construção de uma teoria brasileira; sobre princípios — concordemos ou não — temos os trabalhos de Humberto Ávila, Rafael Tomaz de Oliveira, Vírgilio Afonso da Silva, Rui Spindola, Juarez Freitas, Gilmar Mendes; na filosofia do direito, Tércio Ferraz Jr, Leonel Rocha, Menelick de Carvalho, Álvaro Souza Cruz, João Mauricio Adeodato, André Karam Trindade, Walber Araujo Carneiro, Vicente Barreto, Marcelo Neves (embora sofra um pouco também da síndrome de Caramuru, pois ignora a Filosofia do Direito brasileira — basta ver um texto recente seu em que fala dos abusos dos princípios no Brasil); no Direito Administrativo, Celso Antonio, Romeu Bacellar; no Direito Tributário, Paulo de Barros Carvalho, Fernando Facury Scaff, Ricardo Lobo Torres, Hugo de Brito Machado, Heleno Torres… E paro por aqui. Peço desculpas pelos esquecimentos. A lista é longa (nem falei de Direito Penal e Direito Civil, além de outros ramos do Direito)! Todos merecedores de citações em textos científicos.

Sim, às vezes o produto, fruto da antropofagia pode sair melhor. Ufanemo-nos um pouco com o que construímos por aqui. E já construímos muita coisa de boa qualidade! Justifiquemos os milhões em verbas da patuleia que gastamos em pesquisas de pós-graduação. Avançamos muito nos últimos anos na teoria do direito brasileiro. Nossa pós-graduação já não deve muito para os cursos dos países mais adiantados. E já temos cursos na área do direito que podem competir mano a mano com congêneres de muitos países, mesmo. Nem quero falar de alguns cursos de segundo nível de países estrangeiros, em que alguns cursos de doutorado não chegam perto de alguns mestrados de terrae brasilis.

Na verdade, para fazermos uma “revolução copernicana” (homenageio meu Amigo Jorge Miranda) no Direito brasileiro, precisaríamos imitar o que disse o psicólogo evolucionista Geoffrey Miller (Spent: Sex, evolution, and consumer behavior, New York,Viking, 2009), segundo o qual manipulando-se os impostos, podemos promover verdadeiras revoluções comportamentais. Pois bem, em terrae brasilis, bastaria que alterássemos radicalmente o conteúdo dos concursos públicos e o exame da OAB que, em três tempos, antes que pudéssemos dizer “direito administrativo-constitucional-penal, simplificados-etc.”, mudaríamos a forma de ensinar e de escrever…! Alteremos o exame de ordem e os concursos para o ingresso nas carreiras jurídicas… Como disse, em três tempinhos, milhares de livros seriam varridos do mapa. Assim. Puff! É darwiniano! “Evolutivo”!

Para além do “mediocriopatismo”
O estado d’arte da dogmática jurídica brasileira — e, insisto, não há direito sem dogmática — nos mostra que houve um processo de calcificação do raciocínio de parcela da comunidade jurídica, especialmente a que se dedica aos estudos da dogmática jurídica. Senso comum teórico: esse é o imaginário, como dizia Warat, no qual se sustenta o pensamento médio dos juristas de terrae brasilis. No âmbito do sentido comum teórico, ocorre a ficcionalização do mundo jurídico-social.

No fundo, o senso comum teórico é a consolidação de um tipo de alienopatia. O mediocriopata e o alienopata são faces de uma mesma moeda, pois trabalham com um “mundo pronto” e “acabado” (vejam a ambiguidade da palavra). Para ele, as “coisas são assim mesmo”. É uma espécie de “leito de Procusto” ambulante. Para ele, as coisas não podem ser sofisticadas. Há, nisso, a contínua repetição de uma falácia realista, algo como o “mito-do-dado”.

O conto Ideias de Canário, de Machado de Assis, pode nos ajudar na compreensão do senso comum e dos “limites do mundo” (dos juristas e não juristas…). Um homem, Sr. Macedo, vê um canário em uma gaiola, pendurada em uma loja de quinquilharias (licença poética minha: no original, é loja de Belchior). Ao indagar em voz alta quem teria aprisionado a pobre ave, esta responde que ele estava enganado. Ninguém o vendera. O Sr. Macedo perguntou-lhe se não tinha saudade do espaço azul e infinito, ao que o canário perguntou: “Que coisa é essa de azul e infinito”? Então o homem afinou a pergunta: “Que pensas do mundo, oh canário”? E este respondeu, com ar professoral: “O mundo é uma loja de quinquilharias, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão.” E acrescentou: “Aliás, o homem da loja é, na verdade, o meu criado, servindo-lhe comida e água todos os dias”. Encantado com a cena, o Sr. Macedo comprou o canário e uma gaiola nova. Levou-o para a sua casa para estudar o canário, anotando a experiência. Três semanas depois da entrada do canário na casa nova, pediu-lhe que lhe repetisse a definição do mundo.

O mundo, respondeu ele, “é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira”.

Dias depois, o canário fugiu. Triste, o homem foi passear na casa de um amigo. Passeando pelo vasto jardim, eis que deu de cara com o canário.

Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu”?

O Sr. Macedo pediu então que o canário lhe definisse de novo o mundo. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, o Sr. Macedo retorquiu-lhe: “Sim, o mundo era tudo, inclusive a gaiola e a loja de quinquilharias…”. Ao que o canário disse: “Que loja? Que gaiola? Existem mesmo ‘lojas de Belchior’”?

Pois é. Qual é o tamanho do nosso mundo? Podemos construir uma doutrina e uma jurisprudência melhores do que as que temos aqui? Ou o mundo jurídico (o imaginário dos juristas) é uma gaiola pendurada em uma loja de quinquilharias? Existe um espaço infinito e azul no universo dos juristas? Ou o dono da gaiola é o seu serviçal, porque lhe dá duas refeições ao dia?

O que quero dizer é que, quando uma teoria jurídica necessita de uma interpretação autêntica, isto é, quando precisamos perguntar ao próprio autor (ou ao seu melhor adaptador, no caso, o brilhante Claus Roxin) o que ele quis dizer e quando precisamos saber do próprio autor se a sua teoria (ou tese) foi bem aplicada, mesmo sem lhe darmos vista dos autos, é porque, de fato, comportamo-nos como os índios no episódio “Caramuru”…

Numa palavra: está tudo “normal” no Direito brasileiro… Normal demais. Só que essa “normalidade” é uma (quase) “normalopatia” (o normalopata, para Christian Dunker, pode ser associado à emergência da sociedade de massas; no caso do Brasil, tal processo parece produzir um colapso das tradicionais formas de personalização das relações econômicas, políticas e éticas, que confundem o público e o privado, trazendo uma série de problemas: clientelismo, aplicação diferencial da lei, corrupção. Ao mesmo tempo a comunidade, organizada por vínculos pessoais, porta os ganhos próprios desta forma de organização social: estabilidade, segurança e proteção). Talvez por isso sobrevivamos de “restos de sentido”… Alimentamo-nos de “migalhas de significação”. Não nos admiramos que a indústria que mais cresce é a dos compêndios simplificadores, ao lado do crescimento da bolha especulativa dos princípios. Ainda seremos discípulos de Bernardus Toanarius, personagem de Machado de Assis, que, para vencer um concurso de poemas, mandou recolher todos os dicionários e fazer uma nova língua…

Tudo “normal”. Tudo está “no seu lugar”. Só não digo, cantarolando a música de Benito di Paula, “graças à Deus”… para não ser “multado”, em face da ação civil pública que trata da frase “Deus seja louvado” (para quem lê as coisas ao pé da letra, acabo de ser sarcástico; ah, um aviso: letra não tem pé; para alguns, aqui teríamos que fazer uma metalinguagem da metalinguagem da metalinguagem… até chegar a um significante primordial-fundamental, uma espécie de Grundbedeutung ou Bedeutung grundlegender, que quer dizer, mais ou menos, um significado fundamental). Paro por aqui, senão terei que fazer uma parada da parada. E não existe uma parada fundamental…

*Coluna alterada às 16h19 do dia 2 de julho de 2013.


[1] O que quer dizer: experimente fazer uma tosa de um porco… Terá um gritedo (expressão gaúcha) enorme e um punhadinho de pelos que não servem para nada. Por que estou explicando isso? Porque tem gente que não faz “barra” ou metáfora entre significantes e significados. Prova disso foi a Coluna passada, em que parte da malta não entendeu as ironias e os sarcasmos, como quando eu disse que alguém com um crucifixo no carro poderia ser multado… Não é fácil fazer ironias. Às vezes fico pensando que o pai, personagem da Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, tinha razão ao dar conselhos ao seu filho Janjão, detentor de uma útil inópia mental: não faça ironias; faça chalaças; não diga nada sofisticado; seja econômico na linguagem; satisfaça a malta com estultices.

[2] Atenção: em face da epidemia da mediocriopatia, aviso que isso é uma metáfora; lebres não são levantáveis facilmente – são muito rápidas. Alerta: um dos sintomas da mediocriopatia é “pegar as coisas ao pé da letra”.

[3] Trata-se de uma perigosa síndrome. Falo dela há anos. Falei dela pela primeira vez nos anos 90 em uma palestra no Instituto de Direito, no Hotel Glória, no Rio de Janeiro. Usei-a para dizer que, assim como Caramuru encantou os índios com um arcabuz, matando uma ave no voo, do mesmo modo o que vem do exterior representa, para o direito brasileiro, sempre algo melhor. Essa é a alegoria que cabe para nossa relação com a mágica da “doutrina de fora”. Usei-a também em http://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=225318297541441&id=143447809061824&comment_id=1985121&offset=0&total_comments=5. Nota: dia desses, deparei-me com um texto na Internet, chamado Xenofilia – A síndrome de Caramuru. Vale a pena ler (aqui).

[4] Lendo o texto do Conjur do dia 26.11.2012, do brilhante magistrado e ex-Procurador Néviton Guedes, senti a suave presença da “síndrome de Caramuru”. Não é o primeiro texto (ou Coluna) em que ele – sempre de forma percuciente, registre-se – fala de vários assuntos, sem citar ninguém aqui de Pindorama. Quando leio os excelentes ensinamentos de Néviton, vem-me a impressão de que o Brasil é um deserto… E me bate uma melancolia  intelectual. É como se o Brasil – que investe milhões em pós-graduação (há bolsas de 3 a 4 anos integrais para brasileiros estudarem no exterior) – não fosse capaz de produzir literatura à altura de certos temas. Como se aqui fosse uma terra de néscios. Por exemplo, Néviton discute o tema “de como os juízes decidem” (já pela segunda vez). Pois é, meu Amigo Néviton. Quero informá-lo que (bem) melhor que Posner (nem vou falar nos atos de fala de Searle), há um monte de gente no Brasil que se esforça para tentar falar sobre isso. Por exemplo, o que é isto “-A teoria fenomenológica ser uma ponte da teoria pragmática para teoria legalista” de que fala Posner? Assim, sem explicar melhor? Como assim? Outra coisa: a ironia – à la Woddy Allen – de Neviton com relação àqueles que pensam que os juízes não devem decidir conforme pensam não “pegou bem” (digamos assim), já que, não só no Brasil, existem centenas de juristas que acreditam na possibilidade/necessidade de controlar as decisões judiciais (antes que alguém fale, bem sei que Néviton não é favor de ativismos e decisionismos – aliás, isso ele deixa claro no início da Coluna). Mais: Os juízes decidem como querem? Boa pergunta. Por aqui, em terrae brasilis, muita gente fala disso. Por que explicar os modelos de julgamento e pensamento “via Posner” (que Dworkin assim caracteriza: "Um juiz preguiçoso, que escreve um livro antes do café-da-manhã, decide vários casos antes do meio-dia, passa a tarde dando aulas na Faculdade de Direito de Chicago e faz cirurgia do cérebro depois do jantar"), um pragmati(ci)sta, cujas teses apenas servem para incentivar decisões ad hoc aqui no Brasil? Posner pode ser brilhante, mas… Outro dia, Néviton escreveu – sempre de forma brilhante, repito – sobre Dworkin (“desafeto” de Posner) e os princípios. E, novamente, nada de Pindorama. Veja-se: anos e anos de papel e tinta gastos no Brasil e ninguém fez por merecer ser lembrado. Eis a minha “bronca epistêmica”. Carinhosa. Por isso, fiz aquela lista de juristas acima, no corpo da Coluna. Alguém deles poderia ter sido referenciado por Néviton. Só para fechar a “questão Posner”: seu reconhecido pragmatismo já o levou a duas a graves falhas por ele mesmo reconhecidas. A primeira, quando tentou edificar a maximização da riqueza como critério ético do direito. A segunda, quando não previu a crise de 2008, por imaginar que o mercado era auto-regulável (A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard UniversityPress, 2009; também The crisis of capitalist democracy. Cambridge, Massachusetts, and London: Harvard University Press, 2010; On the Receipt of the Ronald H. Coase Medal: Uncertainty, the Economic Crisis, and the Future of Law and Economics In American Law & Economics Review, Vol. 12 Issue 2, 2010, p. 265-279.)

 

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