Princípio da publicidade

Melhor a verborragia da TV Justiça do que a mudez

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26 de novembro de 2012, 19h31

A transmissão ao vivo, pela TV Justiça, de julgamentos realizados no Plenário do Supremo Tribunal Federal, tem dado azo a rico debate no seio da comunidade jurídica.

A TV Justiça, cuja criação foi autorizada pela Lei 10.461, de 17 de maio de 2002 — sancionada pelo ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, enquanto Presidente da República em exercício —, “para a divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça”, iniciou suas atividades em agosto do mesmo ano, como emissora pública, transmitida pelo sistema a cabo, satélite (DHT), antenas parabólicas e internet.

Ainda segundo seu próprio site, a TV Justiça foi a primeira a transmitir ao vivo os julgamentos do Plenário da Suprema Corte brasileira e tem como foco “preencher lacunas deixadas por emissoras comerciais em relação a notícias sobre questões judiciárias, a fim de possibilitar que o público acompanhe o dia a dia do Poder Judiciário, favorecendo o conhecimento do cidadão sobre seus direitos e deveres”. Tudo, sem esconderijos, “na perspectiva de informar, esclarecer e ampliar o acesso à Justiça, buscando tornar transparentes suas ações e decisões”.

Em mais de dez anos de funcionamento ininterrupto, tem cumprido o relevante papel que justificou a sua criação, mas, ultimamente, não se sabe bem por que, tem recebido algumas críticas muito duras e dividido ilustradas opiniões. Faz por merecer? Insta pesquisar.

De um lado, transparece uma ideia de que a exagerada exposição — à moda de devassa, do modus faciendi de relevantes decisões para a vida institucional do país — tem dado ensanchas, como significativos efeitos colaterais de uma publicidade operacionalizada em grau máximo, por imperativo constitucional, a crescentes participações e debates marcados pela pecha do artificialismo, por parte de julgadores, advogados e membros do Ministério Público que, tal como novos Narcisos, dando vazão a sentimentos e projetos de valorização da imagem pessoal, convolam tribunas em vitrines, subvertendo caros valores republicanos, em condenáveis esparrelas.

Pugna-se, assim, na ideologia acima divisada, pelo cancelamento das transmissões ao vivo, pela edição de imagens e falas ou, no mínimo, pela introdução do instituto do delay, para que, em todos os casos, haja tempo hábil para decote de inconveniências mais graves e malfazejas implicações, a exemplos de xingamentos e agressões verbais, de todo impróprios para dar cabo do dever de bem informar, em tom cortês, urbano e didático, segundo as boas técnicas da comunicação, num contexto maior de mundo civilizado.

Num segundo grupo, postado em sentido diametralmente contrário, e nem por isso menos autorizado, empunha-se a bandeira da publicidade em grau máximo. Diz-se mesmo que a transmissão ao vivo nada mais é do que o uso da tecnologia (da comunicação em massa — mass media) a serviço da democracia. Democracia que impõe controle. Controle como valor inegociável, instrumentalizado pela publicidade. Publicidade que passa a ser inimiga mortal da censura. Como dizem, é como se todos os expectadores da TV Justiça estivessem presentes, de corpo e alma, no Plenário das Cortes, no momento exato da realização de julgamentos que trazem reflexos diretos ou indiretos, presentes e futuros, nas suas vidas, nos seus destinos e nos destinos dos seus.

Para os adeptos da segunda corrente, o recrudescimento da publicidade institucional do Poder Judiciário é caminho sem volta e isso não só é muito bom como também se afigura absolutamente necessário. Na segunda linha de raciocínio, a reviravolta propugnada pelo grupo reativo, o primeiro, assinalado alhures, é ilegítima e desarrazoada, inconstitucional em alto grau. E daí se as vísceras, as entranhas do órgão colegiado e/ou de seus membros são eventualmente expostas? Pouco importa se as decisões são discutidas em bares e pontos de táxi. Dizem: Isso é “até” bom! Sustentam que vulgarizações de teses jurídicas, banalizações de debates acadêmicos e (merecidas) ridicularizações de atores do processo decisório são custos verdadeiramente módicos na perspectiva de exasperação da fórmula democrática, que, segundo PEDICONE DE VALLS (Derecho electoral. Buenos Aires: Ediciones La Rocca, 2001, p. 51-52), forte em LASKI, não é meramente uma forma de governo, mas também um modo de vida. Além disso, dizem, os problemas da democracia podem ser muitos e podem ser relevantes, mas são suscetíveis de serem resolvidos com mais e mais democracia.

O debate assim erigido, felizmente, como é próprio da democracia que vem por meio dele reafirmada, não tem dia e hora para terminar. Forçoso intuir, demais disso, que nunca haverá um vencedor e um vencido. Fácil supor, no entanto, que se descortina um campo fértil para um estudo sociológico verticalizado sobre os efeitos jurídicos e metajurídicos das transmissões ao vivo de julgamentos pela TV Justiça e que não se pode ficar alheio, mesmo os juristas, a um tempo de transformações.

É alentador perceber que, do ponto de vista substancial, o debate não põe em xeque ou mesmo em dúvida relevante a imprescindibilidade de controle do poder pelo povo, seu verdadeiro titular. Franca e honestamente, também não fulmina a obrigatoriedade da publicidade, em si, dos atos do Poder Público. Não abomina – exceto, talvez, no bojo de uma nuance puramente científica, com foco no Direito Comparado, de onde se colhem inúmeros exemplos de Cortes Constitucionais, de países reputados democráticos, que deliberam em sessões reservadas, para não dizer secretas — o bem talhado figurino constitucional do artigo 93, inciso IX, da CF/88, no preciso sentido de que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (…)”, significativamente ampliado na Emenda Constitucional 45/2004, mercê da qual também as decisões administrativas dos tribunais “serão motivadas e em sessão pública (…)” .

A inquietação remanescente se põe, então, apenas em termos de limites e de extensão, em mais uma eloquente saudação à regra da proporcionalidade.

Certa feita, o saudoso José de Alencar, não o romancista, mas sim o combativo vice-presidente da República do governo Lula, teve oportunidade de dizer, numa mescla de sabedoria e (boa) malícia, que todo discurso deve ser como o vestido das mulheres; não tão curto, que nos escandalizem, nem tão comprido, que nos entristeçam.

No caso da TV Justiça, o ponto de discórdia, simples e mísero ponto, não é nada no oceano de virtudes que a publicidade institucional proporciona a um controle popular verdadeiro, sem anteparos e fachadas, necessariamente presente e crescente nos ambientes sociais que se pretendem democráticos e evoluídos.

Saber se as transmissões dos julgamentos devem ser ao vivo ou não, se devem acontecer em tempo real ou não, se devem ser veiculadas por TV aberta ou fechada, são questões relevantes sim, mas são infinitamente menos importantes do que a generalização da compreensão popular de que sem controle não há democracia e sem ela não há futuro que valha a pena ser vivido.

A mística, a magia e o encanto que sempre rondaram a sublime atividade judicante não serão radicalmente dissolvidos porque desnudados, pelas lentes nervosas da TV Justiça, os lados humanos dos julgadores, dos advogados e dos membros do Ministério Público, pessoas de carne e osso, frágeis, pecadores, mortais.

Excessos não são bem vindos, podem ser coibidos e, justamente por isso, hão de ser provisoriamente tolerados. A maturidade virá. E com ela a normalidade. Com o passar do tempo, a neutralidade e a imparcialidade dos juízes buscarão novas legitimações. E as paixões de advogados e de membros do Ministério Público, justificadamente afloradas, serão reconduzidas a padrões mais consentâneos com os papéis que efetivamente lhes cabem na administração da Justiça. Tudo às claras, sem subterfúgios, sem intermediações.

Com razão IAN SHAPIRO (Os fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 245), para quem: “Os aspirantes à liderança política podem ser progressistas ou conservadores, meritocratas ou igualitaristas, nacionalistas ou cosmopolitas, multiculturalistas ou defensores de uma cultura única. É muito mais difícil para eles opor-se abertamente à democracia – o que raramente acontece – do que adotar qualquer uma dessas posições. Podem atacar as deturpações ou desvios da democracia, ou afirmar que determinado sistema de representação democrática é injusto. Podem discutir a respeito do significado da democracia e das instituições que ela exige. Podem até tentar defender a tese de que seu país ‘ainda’ não está preparado para a democracia – reconhecendo-lhe a legitimidade no mesmo momento em que se esquivam dela. No mundo contemporâneo, portanto, a aprovação à idéia de democracia é praticamente inegociável”.

Por enquanto, melhor a verborragia do que a mudez. Mais fácil aparar arestas, desfazer distorções, corrigir imperfeições, coibir excessos, do que colocar em risco as conquistas até aqui edificadas em torno do princípio da publicidade, caríssimo ao Estado de Direito, graças ao qual não precisamos mais confiar em homens, em boas intenções, mas sim na lei, na regra do Direito posto e, em última instância, em nós mesmos. Retroceder? Jamais.

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