Assistência Jurídica

Interesses corporativos criam restrições no mercado

Autor

  • Andre Luis Alves de Melo

    é promotor em Minas Gerais doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP mestre em Direito pela Unifran e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

18 de novembro de 2012, 7h30

No mundo há 2.200 faculdades de direito, destas 1.200 estão no Brasil. Ou seja, mais da metade das faculdades de direito do mundo estão no país, mas alguns alegam que falta assistência jurídica no Brasil. Seria como alegar que mais da metade das faculdades de medicina do mundo estão no Brasil, mas ainda falta assistência médica.

De fato, não são faculdades de advocacia, ou seja, nem todos formados em Direito serão advogados. Mas, mesmo assim, temos quase 800 mil advogados e quase cinco milhões de bacharéis em direito formados. Contudo, mesmo com a triagem do Exame da OAB temos um advogado para 250 habitantes no Brasil. Apesar disso ainda alega-se que falta assistência jurídica no Brasil. Como explicar isto?

Ocorre que há fortes interesses e lobbies para fomentar este mercado de serviço de assistência jurídica. De um lado temos a tabela de honorários mínimos da OAB juntamente com a proibição de se usar publicidade em rádio e TV e restringir nos demais veículos.  Estas normas são impostas pela OAB com base em atos administrativos, sem previsão legal, embora não tenha poder resolutivo, apenas normativo. A OAB elaborou o seu “código de ética” e criou obrigações e vedações sem previsão legal, ou seja, revogou a norma constitucional que estabelece que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei (artigo 5º, II, da CF).

Com essa medida os escritórios mais tradicionais e que ocupam cargos estratégicos em órgãos da OAB elaboraram regras que impedem o livre acesso ao mercado de trabalho, porém asseguram a sobrevivência dos escritórios mais tradicionais sem concorrência dos mais jovens, pois isso é considerado como “antiético” . Em suma, fiscalizam valores cobrados em vez de qualidade do trabalho.

Isso acaba prejudicando o acesso da população aos serviços advocatícios, pois é uma barreira. É claro que se o trabalho do advogado está comprovadamente ruim, a OAB pode puni-lo, mas não se pode presumir que o valor seja a prova da qualidade. Nem mesmo vedar publicidade em razão da liberdade de informação.

Seria como se a TAM e a GOL, já conhecidas do público, e que integram majoritariamente a OAB (Ordem da Aviação Brasileira), decidissem  que não se pode mais fazer publicidade, e fixariam o preço mínimo das passagens. Com isso, as empresas menores praticamente seriam extintas, pois não seriam conhecidas, uma vez que as pessoas conheciam mais as duas mais tradicionais.

Um médico recém formado pode cobrar o valor que quiser pela consulta e anunciar em todos os veículos de comunicação, desde que não seja publicidade abusiva, o que é prudente. Mas, no caso da advocacia um jovem advogado tem que cobrar a tabela da OAB, sob pena de infração profissional, conforme artigo 41 do Código de Ética, além de não poder anunciar em TV e rádio. E nos demais veículos de comunicação pode anunciar, em regra, apenas em veículos destinados para outros advogados e não para a comunidade.

Além disso, se montar uma ONG para prestar assistência jurídica, também tem vedação em normas administrativas da OAB, a qual presume captação de clientes, mesmo sem provas cabais, o que entende ser vedado. É a presunção da culpa, e nesse ponto, a OAB que sempre defendeu a presunção da inocência inverte o seu pensamento. Uma ONG de defesa dos direitos humanos não pode prestar assistência jurídica nem informação à população?

Em razão dessas regras administrativas, o jovem advogado não consegue adentrar no mercado de trabalho e então apenas lhe resta estudar para concurso ou trabalhar em algum escritório já estruturado. Mas então passa a ser vítima da autofagia profissional, pois normalmente não existe piso salarial para advogado empregado e para agravar ainda mais a OAB sem previsão legal criou por ato administrativo a figura do “advogado associado”, o qual não é empregado nem sócio.

Se o CFM (Conselho Federal de Medicina) publicar uma tabela de honorários médicos mínimos, é multado e seus dirigentes são presos sob alegação de infração à ordem econômica e formação de cartel e quadrilha, mas a OAB pode ter tabela de honorários mínimos para cada estado (seccional). Alegam que a relação do paciente com o médico é de consumo, mas com o advogado não, pois advocacia é função social. Não sabia que a medicina não era uma função social. Ademais, se a advocacia é função social, logo por isso não pode ter tabela de honorários mínimos e obrigatórios, sob pena de punição. A Lei 8.906/1994 fala em honorários, mas não tem as expressões “mínimos” e “ obrigatórios”.

Ainda não caminhamos no Brasil para os grandes escritórios, os quais podem empregar com planos de carreira. Em geral, há um trabalho ainda artesanal. Outrossim, nos Conselhos da OAB prevalecem os advogados patrões (sócios) e os advogados servidores públicos. Não há espaço para advogados empregados, notadamente, empregados de outros advogados, muito menos para advogados associados. Logo, as normas não são para beneficiar essas categorias mais frágeis. Tanto é que a OAB não considera infração ética contratar advogado (colega) abaixo de um piso salarial razoável, o qual até pode ser fixado pelas Seccionais.

Se algum advogado desejar cobrar oficialmente abaixo da tabela de honorários deve pedir autorização, caso a caso, na sede localizada na capital do estado, a qual não tem prazo para responder, conforme ato administrativo da OAB, sem previsão legal.

A assistência jurídica gratuita no Brasil confunde-se com uma espécie de “assistencialismo” jurídico, em que foca no prestador do serviço e não no usuário. É como se tivéssemos uma estrutura para defender os baixos, mas não existissem critérios para definir quem é baixo, logo nem quem é baixo saberia como pedir ou contestar desvios. No Brasil, a assistência jurídica atende a bel prazer de juízes e advogados (defensores públicos). O pobre acaba virando apenas um meio de se vender o serviço e quem define quem é pobre ou não é o prestador de serviço e não o usuário nem a lei.

Nesse sentido, o Constituinte criou a Defensoria Pública que teria como missão prestar assistência jurídica aos carentes. Ocorre que em razão do lobby da corporação e da ligação do governo federal do PT com sindicatos de servidores públicos vem prevalecendo um foco na autonomia do prestador do serviço e não na autonomia do usuário, inclusive com medidas que visam estabelecer uma exclusividade de atendimento, uma espécie de monopólio.

Em razão disso OAB e Defensoria iniciaram uma disputa pelas verbas que são destinadas a este serviço e consequentemente uma discussão para saber quem é o dono dos pobres. A OAB defende um sistema de “duopólio de pobre” em que Defensoria e Advogados dativos dividiriam os pobres. Nem mesmo no modelo de advogado dativo há direito do cidadão escolher o seu advogado na lista, pois há uma disputa entre juízes e OAB para definir quem nomeia o advogado dativo, inclusive alguns sustentando a ordem cronológica, tudo para evitar a concorrência e manter redutos de poder, ainda que isto viole o direito de ampla defesa e escolha por parte do cidadão.

Curiosíssimo é que o discurso da OAB para questionar várias medidas é no sentido de que “violam o princípio da confiança entre advogado e cliente”, mas quando se trata do advogado dativo é normal que a escolha seja por ordem cronológica na lista e não por decisão do cidadão. Também não se tem exigido a comprovação da carência, e em alguns casos nem mesmo a declaração de pobreza. Em MG estima-se que em 2012 será pago mais de um bilhão de reais apenas para pagamento de advogados dativos, mas sem nenhuma comprovação de carência e sem que o Estado seja intimado no processo para constatar se o beneficiado é pobre, ou se a matéria é relevante.

Na verdade, os órgãos da OAB são compostos por advogados com o seu mercado assegurado e que não atuam como advogado dativo. Logo, não têm muito interesse nesse tema, mas publicamente alegam estar interessados, pois temem perder votos originários dos pequenos escritórios e que costumam depender deste serviço de advogado dativo. Os escritórios mais consagrados temem que os mais novos cresçam rapidamente e adentrem no seu nicho mais seletivo de clientes concorrendo com os mais tradicionais.

Geralmente em todas as palestras esses mais tradicionais falam para os mais jovens: “ esperem a sua vez”, ou seja, “não concorram conosco”.

Nesse caos é comum “justiça gratuita” para médicos, empresários, juízes, desembargadores, dentistas, advogados, fazendeiros e outras categorias privilegiadas para o nosso contexto.

Já a Defensoria sustenta que tem exclusividade, espécie de monopólio, do atendimento jurídico aos carentes, logo é uma espécie de “dona dos pobres”, ou “senhora dos pobres”, como a Secretaria de Reforma do Judiciário afirma e acha natural, nem sendo necessário identificar o que seria carente. Em razão disso é comum ver casos de ações para impedir que outros segmentos atendam aos carentes, como municípios, ONGs e terceiros.

Chegamos ao paradoxo de se permitir a terceirização da execução penal (APACs), ou seja, transferir para ONGs o poder punitivo do Estado, mas não se poder terceirizar a assistência jurídica, nem fazer parcerias com outros setores.

Infelizmente, nesse fogo cruzado das duas Instituições, o que se observa é uma omissão e violação aos direitos humanos por parte do governo federal, que não estabelece medidas para descentralizar a assistência jurídica e combater as medidas ilegais que tentam criar reserva de mercado, violando o direito de escolha.

Além disso, temos a omissão do MEC que não estabelece políticas para implantação de cursos de Direito nas regiões mais pobres. Apenas aguarda faculdades protocolarizarem pedidos no balcão do MEC, as quais apenas querem montarem cursos nas regiões mais ricas.  O ideal seria o MEC levantar os locais com menor número proporcional de advogados e estimular que se abram cursos de Direito naquela região.

Também há o problema da reserva do mercado e os lobbies no Legislativo com apoio até de órgãos do Ministério da Justiça, como no caso da necessidade de advogado para formalizar divórcio consensual em cartórios extrajudiciais, mesmo sem filhos menores e sem bens. Ora, qual o risco para o casal que deseja divorciar sem bens e sem filhos para justificar a assistência jurídica? No entanto, o Ministério da Justiça apoiou Projeto de Lei para incluir “defensor público” para homologação de divórcios em lugar de apoiar a exclusão total. Na verdade, nem precisaria incluir a expressão “defensor público”, pois o termo “advogado” já abrangia essa situação. No entanto, como não querem ser tratados como advogados, fizeram essa relevante mudança através da Lei 11.965/2009. Ou seja, a máquina legislativa foi movimentada apenas para atender aos interesses das corporações que prestam serviço e não do usuário do serviço.       

Seria como se o governo dissesse aos laboratórios de farmácia que eles iriam definir livremente os seus preços e se fiscalizarem, e seriam Super Farmacêuticos com reserva de mercado e poderiam impedir outros de atuarem, e venderiam  os seus serviços, mas cobrariam do Estado sem controle algum, sem necessidade de comprovar carência e com poderes quase policiais, impedindo ONGs e municípios de colaborarem no serviço.

Tanto monopólio como duopólio de pobre são absurdos, sendo que o ideal é a criação de uma rede de atendimento e estimulando medidas inclusive com estímulos tributários e de organização da sociedade em ONGs para defesas dos seus direitos.

Em suma, não temos falta de assistência jurídica, mas uma desorganização no sistema em razão de interesses corporativistas que tentam criar restrições ao mercado como tabela de honorários, vedação de publicidade, proibição de reorganização e até mesmo uma política governamental que estimula a criação de reserva de mercado em serviço essencial, sendo necessária a implantação de uma rede de assistência jurídica com vários legitimados para assistência jurídica, com comprovação da carência.

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