Recuperação judicial

Preservação da empresa não impede ação de credores

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10 de novembro de 2012, 6h00

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça, através de decisão monocrática (REsp 1.299.981/SP) do ministro Massami Uyeda, reformou decisão do Tribunal de Justiça paulista que havia mantido a convolação em falência da recuperação judicial da VASP (decisão noticiada aqui mesmo no Conjur).

Não conheço o processo em questão e os dados fornecidos pela decisão não me permitem fazer um aprofundado juízo a respeito de seu acerto ou desacerto, porém o que me traz aqui é a análise de alguns de seus pressupostos.

Segundo ela: “sempre que possível, deve-se manter o ativo da empresa livre de constrição judicial em processos individuais, sendo que o princípio da preservação da empresa deve sobrepor-se aos interesses de credores isolados, que pretendem pura e simplesmente a quebra da empresa”.

O precedente em questão deve ser lido com muita cautela. Não bastasse a aparente reavaliação do conjunto probatório, afinal, viabilidade ou não é fruto de labor cognitivo sobre as provas, assim como o é a análise da conduta deste ou daquele credor[1], tem-se ainda a utilização de um único precedente (CC 108.457/SP), de aplicação absolutamente duvidosa ao caso, para justificar eventual jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. A isso, soma-se a violação ao direito de ação de cada um dos credores, cujos créditos não se sujeitam aos efeitos da recuperação.

Pois bem. Levando em consideração o que ficou decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, haveria abuso de direito simplesmente por buscar a tutela jurisdicional em virtude daquilo que o próprio Direito dispõe[2]. Ou seja, credor não sujeito, por ser titular de propriedade fiduciária, por exemplo, estaria abusando de tal direito se ajuizasse a correspondente ação de busca e apreensão.

Creio que a palavra adequada seja, de fato, “abuso”, pois se não é dado ao credor se valer das ações correspondentes (já que inviabilizaria a recuperação), estará ele “abusando” de seu direito. A rigor, aliás, se o credor não pode ajuizar a ação própria, sequer direito a tanto tem (daí a inconstitucionalidade de tal entendimento).

Ora, se o crédito é não sujeito qual a alternativa ao credor se não buscar a correspondente tutela jurisdicional? Não se trata propriamente de alternativas, mas do meio lícito de satisfação de seu crédito.

A decisão transforma Infraero, Gol Transportes Aéreos S/A e Vitória Régia Leasing Limited em “lobos maus” —que, ao que parece, nada mais fizeram do que buscar o que o Direito lhes outorga (material e processualmente falando)…

Como aferir que credor que ajuíza a demanda que lhe compete para receber seu crédito teria feito isso “pura e simplesmente” visando a quebra da empresa? Isso, além de impossível, é indevido. O credor tem direito a satisfação de seu crédito e, para tanto, o Direito Processual lhe serve das demandas correspondentes.

Não para por aí. Criou-se por meio da indigitada decisão monocrática um limbo reservado aos credores não sujeitos. Explico: credores sujeitos habilitarão seus créditos e receberão nos termos do plano de recuperação judicial, porventura aprovado, sob pena de convolação em falência. Já os credores não sujeitos, não se habilitam, já que não submetidos ao regime da recuperação, fazendo com que eles busquem os meios processuais próprios para a satisfação de seu crédito. Segundo a decisão, tais credores simplesmente não poderiam buscar o Judiciário, pois estariam a “atrapalhar” a execução do plano, não lhes cabendo, portanto, nem o processo de recuperação, nem qualquer outro. O que devem eles fazer então? Sentar e aguardar? Fica a questão ao Superior Tribunal de Justiça.

O princípio da preservação da empresa é de importância ímpar, todavia existe para a salvaguarda dos empreendimentos viáveis. Se a sociedade que pleiteia recuperação não dispõe de recursos para adimplir crédito não sujeito (seja o previsto nos parágrafos 3.º e 4.º, do artigo 49, da Lei 11.101/2005, seja o constituído após o pedido de recuperação) é porque é inviável e, infelizmente[3], a alternativa é a falência. A viabilidade ou não passa por essa necessária análise, ou seja, capacidade de pagamento do passivo fiscal e dos demais créditos não sujeitos.

Se a Lei 11.101/2005 subtraiu da recuperação judicial determinados créditos, não pode o Judiciário simplesmente “congelar” a sua exigibilidade, criando um regime muito mais severo que o da própria recuperação judicial. Caso se entenda que este dispositivo é inválido (o que não me parece), que o declare inconstitucional e tragam os credores não sujeitos para dentro da recuperação. Colocá-los na “geladeira” e impedi-los de acessar o Judiciário para a satisfação de suas pretensões, ao que me parece e com o devido respeito, é a mais equivocada de todas as possibilidades.

Volto a dizer: não conheço o processo em questão, e não sei ao certo como agiram a devedora e os credores. Talvez, seria o caso de se delimitar melhor esse tipo de precedente, deixando mais claro a que espécie de situação o mesmo se “aplica”[4]. Isso porque, dada sua importância, tem um potencial imenso de reverberar pelas cortes brasileiras.

Enfim, o princípio da preservação da empresa transforma credores em “vilões” e devedores em “mocinhos”? Será que é esse o seu conteúdo? Sinceramente, não me parece. Fiquemos no aguardo de eventual decisão colegiada a respeito.


[1] A não ser que isso esteja expressamente previsto no acórdão recorrido.

[2] Em artigo anterior cheguei a comentar o que tem sido falado a respeito do “abuso do direito de voto”, cujo contexto me parece similar. Ora, tendo o credor a possibilidade de votar a favor ou contra o plano, como dizer que ele abusa do direito de voto se rejeita o plano? Se é assim, não há direito a voto, há dever de voto favorável!

[3] Infelizmente para a sociedade empresarial, mas felizmente para a sociedade consumidora e contribuinte que é quem arca, em última análise, com os prejuízos acarretados pelas empresas inviáveis cujos pedidos de recuperação vão se arrastando pelo Judiciário, enquanto seu passivo vai aumentando. Todas essas perdas são socializadas e são suportadas por nós, contribuintes e consumidores.

[4] Aplicando o que os autores – como Dierle Nunes, aqui mesmo no Conjur – têm chamado de linearidade argumentativa dos precedentes.

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