Atuação discriminatória

Decisão com brincadeira de futebol é ofensiva

Autor

  • Vitor Guglinski

    é advogado professor de Direito Civil e Direito do Consumidor membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG e coordenador da Escola Superior da Advocacia da 6ª Subseção da OAB-MG de Cataguases.

9 de novembro de 2012, 6h08

Confesso que refleti bastante antes de escrever este breve texto. Mas, no fim, como estudioso e defensor dos direitos do consumidor, acabei não resistindo.

Foi notícia na internet, principalmente nas redes sociais, a sentença proferida por um juiz de direito da comarca de Cachoeira de Macacu, no estado do Rio de Janeiro (processo 0017395-81.2011.8.19.0012). No caso, o magistrado julgou uma ação indenizatória por danos morais, movida por um consumidor que havia aderido a um pacote do Campeonato Brasileiro, a fim de acompanhar os jogos do seu time — o Vasco da Gama. A operadora de TV por assinatura SKY interrompera o sinal do consumidor, ao argumento de que alguns documentos não haviam sido enviados pelo assinante, o que restou afastado pelo acervo probatório. O consumidor venceu a demanda, tendo o juiz condenado a ré ao pagamento de R$ 2 mil pelos danos morais experimentados. Em síntese, esse é o caso.

A surpresa, contudo, foi a fundamentação do juiz, que faço questão de transcrever, com destaques para a parte principal:

“O dano moral reside no fato de que o autor teve suas expectativas frustradas, perdeu tempo e se indgnou. É bem verdade que sua pretensão seria assistir os jogos do vaco da gama, o que de certa forma atenua a proporção do dano, pois não é possível comparar a frustração de não poder ver um jogo de times que já frequentaram a segunda ou terceira divisão com aqueles que nunca estiveram nestes submundos. Desta forma, o dano moral deve levar em consideração tais fatos. Exemplificando, se fosse o fluminense, por ter jogado a terceira, valor ínfimo, o vasco e botafogo, por terem jogado a segundona, um pouco maior, já o glorioso clube regatas do flamengo, que jamais frequentou ou frequentará tais submundos, o dano seria expressivo” (sic).

Brincadeiras futebolísticas à parte, a atuação do magistrado, a meu ver (e imagino que também aos olhos de quem leva a sério o direito alheio), nada tem de engraçada, como repercutido na internet. Ao contrário, é verdadeiramente ofensiva, discriminatória; merecedora de exemplar repreensão por parte da respectiva Corregedoria de Justiça.

Qualquer leigo perceberá que o fundamento da decisão permite concluir que torcedores de times como XV de Piracicaba, América de Natal, São Raimundo, Bragantino, Ferroviário, enfim, de times menos expressivos, não sofreriam dano moral, caso tivesse seus direitos de consumidor desrespeitados. São times que disputam as divisões de menor prestígio do nosso futebol. Então, a indigitada operadora de TV por assinatura teria carta branca pra desrespeitar esses torcedores. O que se viu foi: mais uma vez, um juiz jogou papo de botequim em um ato oficial.

Nossa Constituição é inaugurada com um preâmbulo em que se lê:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” (destaquei).

Adiante, a vedação do preconceito é estampada no art. 3º, IV, como um dos objetivos fundamentais da República:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(…)
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (destaquei).

Prosseguindo, lê-se no caput do artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (grifei).

Certamente, o magistrado em questão se orientou consoante a regra etiquetada no artigo 944 do Código Civil, que diz:

“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano”.

Imagino que, ao decidir, o juiz pensou ser-lhe lícito utilizar a maior ou menor expressividade de times de futebol como fator apto a mensurar os danos sofridos por alguém em casos como esse. Entretanto, como ele próprio fez questão de registrar, “o dano moral reside no fato de que o autor teve suas expectativas frustradas, perdeu tempo e se indgnou”. E nessa linha de raciocínio deveria ter se mantido, pois é o exato fundamento da decisão.

Quando o artigo 944 do CC/2002 diz que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, não está, absolutamente, autorizando o julgador a adotar exercícios hermenêuticos relacionados às convicções futebolísticas da parte. Sobre o tema, Flávio Tartuce ensina:

“Pois bem, na esteira da melhor doutrina e jurisprudência, na fixação da indenização por danos morais, o magistrado deve agir com equidade, analisando:

a) a extensão do dano;

b) as condições socioeconômicas e culturais dos envolvidos;

c) as condições psicológicas das partes;

d) o grau de culpa do agente, de terceiro ou da vítima.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil v. 2: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Método, 2012, p. 409).

Recuso-me a crer que o juiz em questão sentiu-se autorizado a julgar conforme o critério da letra “b” acima. Sem pretender atacar ou provocar quem quer que seja, seria, consoante suas próprias conclusões, um contrasenso, pois o torcedor do Flamengo, deveria receber uma indenização simbólica, caso ajuizasse uma ação da mesma natureza, pois é fato notório que a massa rubro-negra, isto é, a maior parte da torcida do (de fato) grandioso Clube de Regatas do Flamengo, pertence a camadas sociais menos favorecidas. Aliás, sendo o futebol um esporte popular, qualquer massa de torcedores, via de regra, pertence às chamadas classes C e D. Não sejamos hipócritas, por favor!

Deixando o futebol de lado, imaginemos que houvesse um canal religioso destinado a católicos, somente acessível a quem é assinante da TV paga, e os respectivos fieis decidissem aderir ao pacote que contém o hipotético canal. Ora, um juiz poderia, perfeitamente, argumentar que, em razão do descrédito da religião católica, provocado pelos sucessivos escândalos de pedofilia de que a instituição é acusada, o dano experimentado pelo consumidor seria irrisório, se comparado a outras religiões.

Onde estão os direitos do consumidor?! Agora o dano mede-se pelas preferências e convicções do lesado?! Parece-me que na visão do referido juiz, sim.

Certamente, haverá leitores que pensarão: “mas que cara chato esse tal de Vitor Guglinski! Será que ele não relaxa, que fica vendo chifre em cabeça de cavalo o tempo todo?”

Paciência! E que assim seja. Levo, sim, muito a sério, a vida alheia, os direitos das pessoas, principalmente a liberdade. E penso que todos que investiram e ainda estão investindo anos de suas vidas nos estudo do Direito, provavelmente também pensarão algo semelhante. Fica difícil levar a sério um país onde um dos agentes responsáveis pela defesa e manutenção de uma instituição séria, como a Justiça, simplesmente fundamenta sua decisão com base na maior ou menor expressividade de times de futebol.

Mas, o “campeonato” continua…

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