Dolo eventual

Decisão do STF aumenta limites da lavagem de dinheiro

Autor

  • Alfredo Gioielli

    é advogado especialista no segmento de Iluminação Pública sócio do escritório Gouveia Gioielli Advogados especializado em Direito Processual Tributário Pós-graduado em Direito Tributário e Conselheiro do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio).

6 de novembro de 2012, 16h26

Editada a Lei 12.683, em 9 de julho de 2012, que alterou a Lei 9.613 de 3 de março de 1998, para tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro, ampliou-se significativamente o alcance e a abrangência da lei anterior.

A norma anterior definia como crime a ocultação ou dissimulação da natureza, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente de atividades criminosas definidas no próprio texto normativo. Nessa esteira, o legislador ordinário, ao editar a referida norma, pretendeu estabelecer que o crime de branqueamento de capitais ou conhecido no Brasil como lavagem de dinheiro, teria alcance apenas quando houvesse manutenção, ocultação ou movimentação de dinheiro ou bens provenientes da prática dos crimes definidos na própria lei, quais sejam: tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins e/ou armas, crime contra o sistema financeiro, sequestro, terrorismo, crimes contra administração pública, dentre outros.

Pois bem, o novo texto normativo que revogou diversas disposições da lei anterior passou a abranger como crime, todos os recursos financeiros oriundos de infração penal, desconsiderando inclusive sua natureza e impondo a quem recebe a obrigatoriedade de ao menos presumir a sua origem, fazendo tábua rasa da conhecida expressão “o dinheiro não tem carimbo”, que consiste em uns dos princípios de Direito Tributário: “non olet”. Ademais, a própria Constituição Federal impõe a tributação de renda e proventos de qualquer natureza pelos critérios da universalidade e generalidade (Inciso I do § 2º do art. 153), ou seja, admite a tributação de atividade criminosa ou de sonegação fiscal.

Não obstante a abrangência do texto normativo, foi estabelecido, para controle e fiscalização, um novo rol de pessoas físicas e jurídicas sujeitas ao mecanismo de controle da lei, posto que obrigou novas entidades e pessoas inseridas no texto legal a colaborar com autoridades públicas no combate ao mascaramento de capitais. A ampliação dessa lista dos chamados setores sensíveis à lavagem de dinheiro, impõe aos profissionais a necessidade de se organizar e sistematizar cadastros de clientes, implementando sistemas de prevenção e notificação a autoridades diante de operações suspeitas. Empresas de promoção imobiliária ou de compra e venda de imóveis, juntas comerciais, contadores, engenheiros, médicos, arquitetos, agências de eventos, prestadores de serviço de assessoria, consultoria, auditoria, aconselhamento ou assistência de qualquer natureza, em operações de compra e venda de participações societárias, gestão de ativos e fundos e tantos outros setores econômicos passam a integrar o grupo, com novas obrigações, e sanções administrativas mais rigorosas caso haja descumprimento.

Necessário destacar que o cotidiano empresarial será significativamente afetado, haja vista que a aplicação da nova lei, pode trazer reflexos para empresas que tenham sido autuadas pelo Fisco, vez que os Autos de Infração, em sua maioria, trazem em seu bojo a notícia de crime contra ordem tributária, o que acaba desembocando em uma representação fiscal para fins penais.

Dessa forma, a realização de uma operação de venda e compra de uma empresa, ou até mesmo uma simples venda de participação societária a um comprador situado fora do Brasil, em que a empresa nacional objeto da operação tiver contra si um auto de infração lavrado de valor significativo com comunicação de crime contra ordem tributária, poderá, encontrar dificuldades para efetivar a operação, pois na prática, significa que se alguém receber dinheiro de uma empresa que sonega impostos, pode ser acusado de lavagem de dinheiro ao tentar reinseri-lo na economia formal com aparência de licitude.

Importante ressaltar que com base nas novas regras, a lei autorizou que o Conselho de Controle de Atividade Financeira (Coaf) defina os critérios de alcance dessa regulamentação, excluindo com isso valor mínimo de transação, com a edição da Resolução Coaf 20, de 29 de agosto de 2012, que entrará em vigor em 1º de março de 2013. Corroborando o exemplo acima destacado, obriga a Junta Comercial, responsável pelo registro dos atos societários que transferem a participação societária da empresa nacional, ao verificar a existência de uma certidão positiva com efeitos de negativa, deflagrar uma denúncia ao Coaf, abstendo-se de dar ciência às partes envolvidas, acarretando ao Coaf a obrigação de comunicar ao Fisco e à autoridade policial competente para que lancem mão de medidas assecuratórias de bens — Cautelar Fiscal, entre outras — visando o bloqueio de recursos financeiros obtidos com a venda da empresa, como meio de garantir o pagamento do auto de infração, e o mesmo instrumento legitimará a instituição financeira que receber o recurso objeto da transação.

A Resolução do Coaf ampliou ainda mais o rol das pessoas sujeitas ao mecanismo de controle, inserindo além daquelas listadas no artigo 9º da Lei 12.683/12, as empresas de fomento comercial em qualquer de suas modalidades, inclusive fomento mercantil (factoring), a securitização de ativos, títulos ou recebíveis mobiliários dentre outras que a lei não havia contemplado.

A nova lei de combate à lavagem de dinheiro incorporou ao artigo 10 a obrigação das novas pessoas físicas e jurídicas do dever de compliance, fazendo com que essas entidades tenham obrigação de armazenar informações de seus clientes e de comunicar às autoridades as atividades suspeitas de lavagem por eles praticados pelo prazo de 5 (cinco) anos, sob pena de sofrerem as sanções de natureza administrativa, como advertência, multa, inabilitação temporária e cassação da autorização para operação ou funcionamento, previstas e reguladas no artigo 12 da lei vigente. Assim, a partir de agora, todo crime ou contravenção é antecedente de lavagem de dinheiro e pode produzir bens ou valores aptos ao escamoteamento delitivo. Essa ampliação do conhecido rol de antecedentes trará indagações importantes, que exigirão uma profunda reflexão sobre o tema.

As novas regras de combate ao crime de lavagem de dinheiro, aos setores sensíveis à sua prática, atribuiu um grande número de pessoas a obrigação de fazer denúncias anônimas — o que é vedado pela Constituição Federal — sempre que se depararem com operações realizadas em uma variada gama de situações, impedindo a elas de revelar ao cliente que informaram as autoridades públicas sobre transações suspeitas, e via de consequência, protegendo-as dos crimes de denunciação caluniosa e do dever de reparação na esfera cível, caso o denunciado comprove a legalidade da operação.

A definição do alcance do crime de lavagem de dinheiro foi vergastadamente enfrentada pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, em sessão do dia 15 de outubro do corrente ano, no curso do julgamento da Ação Penal 470, cujo questionamento foi aberto pelo ministro Marco Aurélio Mello que demonstrou grande preocupação, após o voto do relator Joaquim Barbosa, que absolveu três réus e condenou outros três, posto que a partir dali, criaram-se três tipos de figuras para imputação penal do referido crime, prevalecendo também o posicionamento do dolo eventual. A questão de ordem levantada em plenário reside na necessidade de que o réu acusado de lavar dinheiro tenha conhecimento de que os valores recebidos têm origem em atividades ilícitas para que seja condenado pelo crime.

Na seara penal, a lei transforma significativamente o tipo de lavagem de dinheiro, que o STF classificou em três situações, quais sejam: i) lavagem de dinheiro dolosa, quando o acusado conhece a origem ilícita do dinheiro e age com dolo de ocultá-lo; ii) lavagem de dinheiro culposa, quando o acusado não faz ideia de que os valores recebidos são ilícitos e; iii) lavagem de dinheiro com dolo eventual, quando o acusado assume o risco de receber o dinheiro diante da desconfiança de que ele tenha origem ilícita.

O ministro Marco Aurélio Mello acredita que a prevalecer esse entendimento da tese do dolo eventual existirão muitas ações penais contra criminalistas contratados por delitos até gravíssimos, caso o ordenamento jurídico contente-se com essa modalidade. Nesse particular, o mesmo deverá ser aplicado para quem milita na área do Direito Tributário e defende empresas autuadas pelo Fisco por sonegação fiscal. Ocorre, porém, que tal persecução penal não pode ser aplicada aos advogados, haja vista a violação expressa ao Direito de defesa, e a flagrante afronta ao Código de Ética que impõe em seu artigo 21 que: “É direito do advogado assumir a defesa criminal sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado”, bem como o espancamento à presunção de inocência de seu cliente e até mesmo ao sigilo profissional que o próprio Estatuto da Advocacia impõe aos profissionais do Direito. Não cabe ao profissional do Direito investigar se a origem dos honorários pagos pelo seu cliente é de alguma atividade ilegal ou ilícita, haja vista que o princípio da boa-fé no Direito não foi revogado. Eventual ilicitude do patrimônio de seu cliente deverá ser apurada em procedimento posterior ao devido processo legal.

Havendo prevalência da tese do dolo eventual por parte do Supremo Tribunal Federal, ensejando possibilidade de condenações por lavagem de dinheiro, o número de crimes cometidos na vigência da lei anterior, e ainda, nos praticados após a entrada em vigor da nova Lei de Lavagem de Dinheiro aumentará exponencialmente, posto que ao retirar o rol de crimes antecedentes pelos quais era possível a condenação por essa prática, o novo texto normativo permite que qualquer infração penal seja alvo também do desencadeamento de uma persecução penal por lavagem de dinheiro, até mesmo um Auto de Infração com a notícia de crime de sonegação fiscal.

Dessa forma, as decisões do STF vão balizar a primeira e segunda instâncias do Judiciário brasileiro na aplicação do novo texto normativo que versa sobre o crime de lavagem de dinheiro, bem como possibilitará ao Ministério Público nas imputações por esse crime, esgarçar inclusive o alcance da norma vigente. O conteúdo e os contornos das discussões e controvérsias ainda são incertos, mas não há dúvida que o tema preocupará sobremaneira o novo rol de pessoas físicas e jurídicas sujeitas ao mecanismo de controle da lei, vez que se deixarem de comunicar as autoridades operações financeiras, ainda que lícitas, e posteriormente forem comprovadas algum tipo de ilicitude, poderão responder por sua omissão, sofrendo penas de caráter administrativo com grau de multa ampliado de R$ 200 mil para R$ 20 milhões, e via de consequência, os denunciados poderão sofrer as agruras de um processo criminal, e ao final, provada a licitude da operação, não poderão acionar ninguém, posto que os denunciantes estarão protegidos pelo manto do anonimato.

Por fim, a nova lei deve sofrer uma forte reflexão pelos operadores do Direito em seu cotidiano de trabalho e principalmente pelos seus aplicadores, visando evitar que se transborde os seus objetivos, causando transtornos em setores sensíveis à lavagem de dinheiro, que por força de lei, e regulados por uma Resolução do Coaf que ampliou ainda mais o rol de pessoas físicas e jurídicas sujeitas ao mecanismo de controle da lei, submeteu esses setores em verdadeiros prestadores de serviço do governo, a fim de realizar investigações e formularem juízo de valor sobre determinadas operações, presumindo inclusive a legalidade ou ilegalidade da origem dos recursos financeiros.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Gouveia Gioielli Advogados, especializado em Direito Processual Tributário, pós-graduado em Direito Tributário e conselheiro do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio).

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