Contratações públicas

Lei de Licitações completa 20 anos e pede reformas

Autor

  • Alan Trajano

    é advogado especialista em Direito Público processo legislativo administração políticas públicas e gestão governamental. Sócio do escritório Trajano Advogados Associados.

6 de novembro de 2012, 7h00

A Lei Geral de Licitações (8.666/93) completará 20 anos marcada por contundentes críticas negativas quanto à eficácia em relação ao seu objetivo principal que é atingir as condições mais vantajosas para a Administração Pública nas contratações pelo Estado.

As principais críticas atribuem à Lei de Licitações a responsabilidade pelo engessamento do processo, facilitação da ocorrência de fraudes e corrupção, encarecimento de bens e serviços fornecidos e a excessiva judicialização dos certames.

As organizações públicas e privadas são estruturadas a partir de bases burocráticas (Max Weber) onde a norma e o processo são imprescindíveis para atingir os seus objetivos. Segui-las seria pressuposto para garantir a estabilidade e a segurança necessárias à manutenção e à reprodução do modelo organizacional.

Assim, não somente os órgãos públicos, mas também as grandes empresas privadas necessariamente obedecem a regramentos e procedimentos licitatórios para assegurar as melhores condições contratuais, evitar fraudes e beneficiamento pessoal de “escolhidos” pelos gerentes de compras. Estes setores também são objeto constante de auditorias. Raramente se divulgam, por motivos óbvios, mas não raro se descobrem desvios e fraudes nas áreas de compras que impactam os resultados de empresas privadas.

A resposta do poder público e das empresas privadas às fraudes geralmente é o aumento do controle baseado no enrijecimento do processo e intensificação da fiscalização, o que acaba por provocar menor grau de eficiência nas contratações.

Assim, o ponto ótimo parece estar localizado em algum lugar entre o controle e a flexibilização. Mas como encontrar este ponto?

Evolução dos métodos licitatórios
Os procedimentos licitatórios públicos têm evoluído ao longo destes 20 anos não somente na adoção de novos modelos que são inseridos no ordenamento jurídico, mas na prática cotidiana dos órgãos finalísticos e de controle interno e externos.

Os escândalos de corrupção, os prejuízos causados aos cofres públicos e à sociedade pela ineficiência dos processos licitatórios e as transformações no ambiente da produção de bens e serviços têm sido fonte inesgotável a inspirar modificações incrementais nas regras de licitação e aperfeiçoamento dos modelos.

O pregão eletrônico, que diminuiu os procedimentos e aumentou a competitividade, inicialmente foi pensado para a aquisição de medicamentos dado a homogeneidade dos produtos e necessidade de observação das normas técnicas fixadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e comunidade científica, acabou por se expandir para outros tantos produtos adquiridos pelo Estado.

Outra importante inovação foi a ata de registro de preços que é o mecanismo licitatório onde as empresas disponibilizam os bens e serviços a preços e prazos registrados em ata específica em que a aquisição ou contratação é feita quando melhor convier aos órgãos públicos, adequando a contratação às suas necessidades.

Recentemente instituída, a lei que regula as contratações públicas de serviços de publicidade se caracteriza pela delimitação expressa do objeto licitado de forma a restringi-lo às funções típicas de uma agência de publicidade, buscando evitar desvios e utilização indevida das mesmas.

Dois aspectos notórios desta lei são a não identificação do concorrente durante o julgamento, de maneira a evitar preferências indevidas por parte dos membros da comissão de licitação, bem como a exigência de que os três responsáveis pela análise da proposta técnica sejam formados em comunicação, publicidade ou marketing, exigindo-se que ao menos um deles não mantenha nenhum vínculo funcional ou contratual com o órgão ou entidade responsável pela licitação. Os membros serão sorteados e devem constar de um cadastro formado anteriormente.

O regime diferenciado de contratação (RDC) instituído originariamente para atender às necessidades específicas de contratação para a Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos em 2016, recentemente ampliado para obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e obras no setor de educação, foi criado com o objetivo principal de viabilizar, em tempo hábil, a implementação da infraestrutura necessária aos eventos.

Inspirado originariamente no regime de contratações da Petrobras, que por ser empresa de economia mista não se submete à Lei 8.666/93, tem como principais características a contratação integrada, a inversão de fases na licitação, o contrato de eficiência, a dispensa de apresentação de projeto básico pelo ente licitante, caso adotada a contratação integrada, bem como o sigilo do orçamento. Espera-se que seja uma experimentação positiva para posteriormente ser generalizado para as demais situações.

Os modelos inicialmente caracterizados como evolução, no momento seguinte se mostram falhos ou incompletos diante da “criatividade” das empresas que buscam incrementar seus resultados. No âmbito do pregão eletrônico já se registra a existência de programas informatizados que captam as ofertas dos concorrentes e automaticamente registram lances inferiores em centavos buscando ser o último a apresentar a proposta no lapso de tempo estabelecido para a competição.

As atas de registro de preços, por sua vez, já materializam disfunções no mercado, pois, uma vez realizada em um órgão, é possível que outro adira e adquira os produtos registrados. Este procedimento acaba por produzir registros de preços que não necessariamente sejam os mais vantajosos por serem realizados por órgãos periféricos, onde a baixa publicidade do certame leva à existência de poucos concorrentes. Entretanto, a adesão à ata e a aquisição dos produtos que necessita representam para o outro órgão a desnecessidade de realizar um novo certame licitatório, que é trabalhoso e sujeito a nulidades e responsabilização dos gestores públicos por eventuais falhas.

Assim, é razoável afirmar que o ideal não seria pura e simplesmente a modernização da Lei de Licitações, mas a constante inovação de normas, organizações estatais e procedimentos para que a distância entre o ideal e o real seja mitigada.

A vida real da licitação
Há no Congresso Nacional um sem número de projetos de lei que têm por objetivo modernizar mais contundentemente o arcabouço legal relativo às licitações. Entretanto, creio que é necessário colocar luz na outra vertente que é a capacidade técnica e organizacional do estado para utilizar o instrumento legal de forma adequada a produzir os seus fins. A contrário senso, a modernização da lei sem se assegurar condições razoáveis aos órgãos públicos e consistência organizacional redundará apenas na mudança da forma de ver o problema, mantendo-se as ineficiências e críticas hoje existentes.

Destaquem-se as principais deficiências na organização estatal para a realização das licitações:

— Inexistência ou fragilidade no planejamento e na própria preparação dos processos licitatórios, notadamente em relação às licitações de maior nível de complexidade. Naturalmente estamos tratando de modo generalizado, já que diversos processos licitatórios foram concluídos com êxito e as disputas acirradas não necessariamente representam falha no planejamento do órgão público;

— Fragilidade na elaboração de termos de referência, projetos básicos e executivos que orientarão a elaboração do edital provocado geralmente pela insuficiência de quadros técnicos especializados;

— Editais com linguagem excessivamente complexa e muitas vezes ambígua que dificulta o entendimento pelos licitantes e/ou advogados;

— Baixa qualificação dos membros das comissões de licitação e insuficiência de suporte jurídico e técnico para orientar suas decisões;

— Postura excessivamente conservadora dos servidores membros das comissões de licitação em decorrência do receio da sua responsabilização pelos órgãos de controle interno, externo e Ministério Público;

— Falta de uniformização de procedimentos em licitações semelhantes realizadas por órgãos distintos, elevando o custo de aprendizagem para as empresas privadas;

— Cultura reativa do órgão que acaba por interpretar os pedidos de esclarecimentos e impugnações do edital como ameaça ou beligerância o que levaria a tratamento discriminatório à empresa privada pelos servidores responsáveis pela licitação;

— Tendência de rejeição dos recursos apresentados provocados pelo apego do órgão (servidores) ao edital ou à dificuldade de aceitar a possibilidade de erro ou falha do órgão.

A cooptação corruptiva de membros das comissões de licitação tem sido recorrente, segundo relato de empresários. Há certa tendência de que os prejudicados não denunciem tais fatos por receio de represálias durante o processo licitatório e, na hipótese de conseguirem se sagrar vencedores do certame, serem perseguidos quando da execução do contrato.

O que deve mudar?
Infelizmente não há soluções mágicas, completas e imediatas que superem as dificuldades e ineficiências nos processos licitatórios apontados anteriormente. Também deve-se reconhecer as iniciativas dos órgãos em aprimorar os processos, capacitar servidores e buscar melhorias que qualifiquem as licitações. De igual forma, iniciativas da CGU e do TCU têm contribuído substancialmente no aprimoramento da atuação dos órgãos no âmbito das contratações públicas, seja em relação ao caráter repressivo no que diz respeito às fraudes e corrupção, como também na formulação de manuais e orientações.

Não obstante, a complexidade do problema requer a adoção de medidas mais densas. As compras governamentais representam forte impacto na macroeconomia e no resultado das ações estatais. Esta realidade exige ações mais agressivas do mesmo modo como vem sendo feito no âmbito da Receita Federal no que diz respeito à arrecadação.

Assim, aponto algumas propostas que poderiam fazer frente aos problemas apontados.

A criação de umaempresa pública especializada em licitações. Esta empresa se destinaria à análise permanente das licitações de maneira a diagnosticar os principais problemas e apontar soluções de forma dinâmica e continuada, já que a realidade impõe mudanças constantes. Com um quadro de servidores especializados, teria como escopo de serviços a elaboração de estudos e editais destinados a licitações mais complexas, prestação de consultoria aos órgãos, oferecimento de cursos de capacitação para servidores, dentre outros serviços desta natureza.

Como exemplo de experiências exitosas na criação de órgãos que produzem serviços para outros órgãos do próprio governo, temos o Instituto de Pesquisas Econômicas (Ipea), cuja missão institucional é produzir, articular e disseminar conhecimento para aperfeiçoar as políticas públicas e contribuir para o planejamento do desenvolvimento brasileiro. Por sua vez, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), responsável por administrar os recursos financeiros e humanos dos hospitais universitários das Instituições Federais de Ensino Superior e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap), que tem por objetivo desenvolver competências de servidores para aumentar a capacidade de governo na gestão das políticas públicas.

Criação deórgão destinado a unificar e atualizar procedimentos licitatórios de maneira a assegurar a similaridade na atuação dos órgãos e assim diminuir as incertezas e contradições nas decisões governamentais

Criação de órgão autônomo responsável por julgar os recursos nas licitações de maneira a assegurar a imparcialidade já que se a decisão recursal estiver no âmbito do mesmo órgão a tendência natural seria a manutenção da decisão, o que culminaria na perpetuação dos possíveis equívocos que redundam muito frequentemente em ações judiciais que paralisam as licitações e, principalmente, atrasa e posterga a fruição dos bens e serviços a serem contratados pelo Estado.

A organização de uma ouvidoria própria para denúncias anônimas ou identificadas de possíveis irregularidades nos processos licitatórios com rebatimento na atuação concreta da CGU ainda no curso do processo licitatório poderia inibir fraudes e decisões inconsequentes das comissões de licitação.

Organização de um “conselho de compras”, com participação de representantes de órgãos governamentais e associação de fornecedores de bens e serviços para o Estado, com participação de representantes do Ministério Público e Tribunal de Contas da União com o objetivo de frequentemente discutir e aprofundar a análise de situações problemas relativas às licitações, bem como sugerir o aprimoramento de leis, regulamentações e processos nas contratações públicas.

Uma série de outras medidas complementares seriam imprescindíveis e plenamente viáveis no intuito de otimizar os processos de contratação pública que podem ser adotados independentemente da necessidade de aprovação de leis. Muitas destas ações já vêm sendo adotadas com sucesso.

Entretanto, somente com a eleição deste tema como prioridade na agenda governamental, como se tem em relação ao controle da inflação, incremento da arrecadação e das obras de aceleração do crescimento será possível observar uma melhoria qualitativa expressiva nas licitações no Brasil. Desta forma será possível acreditar que a modernização da lei produzirá os efeitos esperados.

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    é advogado, especialista em Direito Público, processo legislativo, administração, políticas públicas e gestão governamental. Sócio do escritório Trajano Advogados Associados.

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