Justiça Tributária

Os fins pretendidos não justificam os meios utilizados

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

5 de novembro de 2012, 7h00

Spacca
Todos nós temos interesse no combate eficaz à sonegação fiscal. Esse crime vai contra ao princípio constitucional da isonomia, eis que os que dele se beneficiam ficam em evidente vantagem sobre seus eventuais concorrentes.

Todavia, nós que desejamos um país onde prevaleça a verdadeira justiça tributária, não podemos aceitar que sejam ignorados ou mesmo claramente desrespeitados os princípios gerais de direito que nos inspiram e as normas básicas sobre as quais se assenta o nosso Estado democrático de direito.

Não é possível que para combater a sonegação fiscal a autoridade fazendária possa alterar a verdade dos fatos e violar as garantias de privacidade e sigilo que protegem todos os cidadãos, mesmo os que sejam acusados de sonegação.

Todos sabemos que o cidadão comum pode fazer qualquer coisa que a lei não proíba, enquanto o servidor público só pode fazer o que a lei expressamente o permita. Essa diferença de limitações decorre não só da nossa estrutura constitucional, mas também do fato de que é o cidadão comum o principal responsável pelo custeio do serviço público.

Lamentavelmente, porém, são inúmeras as medidas adotadas pela autoridade fazendária que acabam prejudicando desnecessariamente o contribuinte, violando suas garantias e mesmo gerando custos e despesas inúteis para a administração. São os chamados atos inúteis e desagradáveis.

Um dessas medidas é o protesto das dívidas fiscais nos cartórios extrajudiciais. Essa medida é inútil porque as certidões de dívida ativa possuem liquidez e certeza por força da lei 6.830, não havendo assim qualquer necessidade de que num cartório ela seja apontada e protestada. Tal ato não altera em nada sua natureza de título de crédito cujo titular é o poder público.

Recentemente o juiz Marcelo Velasco Nascimento Albernaz, da 13ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, suspendeu a possibilidade do protesto das certidões, a pedido do Conselho Federal da OAB. Entendeu a Justiça, como aliás outros precedentes do STJ, que o protesto é desnecessário, pois as CDAs não se equiparam aos títulos de créditos privados , que não se revestem da presunção de liquidez e certeza atribuída pela lei.

Ora, apesar dessa e de outras decisões, há ainda servidores públicos preocupados em fazer valer o protesto, que só serve mesmo para aumentar as custas com as taxas cartorários e aumentar também o sofrimento dos devedores. Tal insistência é curiosa, pois está claro que tais servidores não estão interessados no faturamento dos cartórios e nem desejam a desgraça do contribuinte em débito. Assim, esses protestos são mesmo apenas coisas inúteis e desagradáveis.

Quando o antigo Cadastro Geral de Contribuintes (CGC) foi transformado em CNPJ, ou Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas, as autoridades fazendárias anunciaram que a transformação seria muito útil, pois haveria um único registro das empresas, que substituiria as inscrições estaduais e municipais.

Nada disso aconteceu. Aliás, piorou. Hoje estados e municípios tornaram mais complicados os seus registros, criando dificuldades para quem queira trabalhar legalmente, ao mesmo tempo em que a atuação do comércio clandestino continua cada vez com maior liberdade.

No município de São Paulo, por exemplo, criou-se um cadastro especial para empresas sediadas em outros municípios e que tenham clientes nesta capital. Trata-se de um cadastro idiota, pois se a sede é em outro município, o da capital não precisa cuidar disso.

Mas mesmo quando o empresário quer fazer sua inscrição, surge uma quantidade enorme de idiotices. Por exemplo: exige-se comprovante do IPTU da sede. Como se sabe, o carnê do IPTU fica normalmente com o proprietário do imóvel. Se a empresa estiver em lugar alugado, não o terá. Outra besteira: exige-se que o telefone e a luz estejam em nome do inscrito. Isso não faz sentido, pois é comum alugar-se imóvel com luz e telefone em nome de terceiro. Essa lei do cadastro é herança da administração do ex-prefeito José Serra. Espera-se que a nova administração faça as pazes com os que trabalham e reveja esse monstrengo jurídico.

No estado, há algum tempo criaram um tal “serviço de inteligência fazendária”. Muitas vezes os métodos de trabalho desse pessoal é baseado em filmes americanos que contam histórias do tempo da lei seca. Para que tenhamos uma ideia: certa vez intimaram um dono de supermercado, sobre quem havia suspeita de sonegação, para que ele comparecesse na repartição, onde teria que “prestar depoimento”.

O contribuinte talvez tenha pensado que seria algemado, torturado, açoitado, etc. Não existe isso de “depoimento” ao fisco, pois fisco não é polícia. Fisco não é polícia! Fisco não é polícia! Precisamos repetir para que talvez eles acreditem. Em tempo: o contribuinte compareceu, mas entrou mudo e saiu calado.

Não raras vezes vemos notícias de que a Justiça anulou uma “operação” policial ou do fisco, declarando a nulidade de todos os atos praticados, especialmente quebra de sigilo, gravações telefônicas, apreensão de documentos etc.

Num primeiro momento, ficamos todos boquiabertos, pois já estávamos acreditando que enfim um grande sonegador, um contrabandista, um falsário, teria sido descoberto e seria punido. Mas percebemos que faltou método, faltou seriedade, faltou sobretudo respeito à lei, no trabalho que se revelou nulo, sem prestar para nada. Parece que algumas pessoas se preocupam demais em arranjar um nome charmoso para a “operação”, e acabam por não observar as normas que a tornariam legal. Eis aí diversas coisas que se tornaram apenas inúteis e desagradáveis.

Já que todos desejamos justiça tributária e que o combate à sonegação é parte importante do trabalho que a viabiliza, é bom não esquecer: nada pode o fisco fazer se ignorar a lei. Não importa que o objetivo seja relevante, se for alcançado ao arrepio da lei. Afinal, os fins não justificam os meios.

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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