Sistema misto

Assistência judiciária nos EUA depende de particulares

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3 de novembro de 2012, 11h00

A assistência judiciária nos Estados Unidos é um misto de serviço público e de obra da iniciativa privada. A Defensoria Pública, que atua apenas na área criminal e "quasi-criminal" – isto é, cuida de casos civis que podem resultar em penas de prisão, como de pensão alimentícia – é a única instituição puramente pública. Na área civil, a principal instituição é a Legal Services Corporation (LSC), uma entidade privada, sem fins lucrativos, que recebe verbas federais e estaduais, mas também é financiada por contribuições de fundações, de organizações privadas (com desconto de imposto de renda) e de instituições beneficentes, sob o título de "obras de caridade". Ambas se dedicam a promover assistência judiciária aos "indigentes", dentro de suas possibilidades financeiras.

A LSC vive sob cargas políticas há anos, por causa das verbas públicas que recebe. O Partido Republicano é totalmente avesso à destinação de recursos públicos para programas sociais, seja para prestação de assistência judiciária aos carentes, seja para tratamento de saúde ou o que for. Para os republicanos, isso cheira socialismo, um regime que, para a maioria dos americanos, é a mesma coisa que comunismo. O Partido Democrata, por sua vez, tende a fazer concessões a programas sociais – não de forma unânime, porém.

Assim, as verbas para a LSC aumentam ou diminuem conforme o partido que está no poder. O ex-presidente Ronald Reagan, republicano, tentou acabar, de uma vez por todas, com a LSC, mas os congressistas democratas não deixaram. Apenas reduziu as verbas. O ex-presidente Bill Clinton, democrata, conseguiu revitalizar um pouco o orçamento da LSC. O ex-presidente Bush, republicano, voltou a reduzir as verbas oficiais. O presidente Obama, democrata, tentou aumentar as verbas nos dois últimos anos, mas com a maioria republicana no Congresso, não foi possível. Tudo o que ele conseguiu foi fazer cortes menores do que queriam os republicanos.

Assistência judiciária semioficial
Em 2011, o Congresso, de maioria republicana, fez um corte de US$ 15,8 milhões, baixando o nível de recursos oficiais da LSC de cerca de US$ 395 milhões para US$ 379 milhões. Os republicanos queriam cortar US$ 104 milhões. Em 2012, houve mais um corte, desta vez de US$ 56 milhões (quase 15%), derrubando o orçamento para cerca de US$ 323 milhões. Muito pouco, considerando que 64 milhões de americanos se qualificam para o programa, por causa de suas baixas rendas, de acordo com o jornal USA Today. Em outras palavras, o governo federal contribui, atualmente, com cerca de US$ 5 por americano dependente de assistência judiciária.

Os republicanos não fazem isso por maldade. É convicção política. Eles acreditam fielmente (e os democratas também, mas não com tanto ardor) que um governo fraco, com intervenção mínima na vida do país, cria uma iniciativa privada forte, que pode cuidar dos problemas em todos os campos. Em Mississipi, um dos estados com maior concentração de pobres republicanos, criou-se um grande movimento popular para não aceitar verbas do governo para financiar o seguro-saúde para a população carente. O mesmo vale para a assistência jurídica gratuita. Que não venha do governo, mas da iniciativa privada. Assim vem se desenvolvendo o suporte à assistência judiciária no país: aos poucos.

Fundações, corporações e instituições financeiras, com incentivos fiscais, destinam verbas a programas de assistência judiciária – e também a outros programas sociais. Algumas organizações, principalmente bancos, têm programas sobre a rubrica "caridade", que usam para fazer doações para cobrir custos de serviços prestados às pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, sejam custos de hospitalização ou de assistência judiciária, entre outros.

Legal Services Corporation, a LSC
A LSC financia 134 programas nos Estados Unidos, que operam cerca de 900 escritórios nos pais, todos dedicados a ajudar pessoas que vivam abaixo da linha da pobreza com assistência jurídica e assistência judiciária na área civil apenas. De uma maneira geral, os escritórios da LSC – e também organizações comunitárias que prestam os mesmos serviços e estão espalhadas pela maior parte dos condados do país – desempenham melhor o trabalho de assistência jurídica, que consiste em dar orientações para as pessoas com baixo nível de renda. Elas foram bastante úteis nos últimos, por exemplo, quando milhares de pessoas perderam suas casas para os bancos e, consequentemente, milhares de inquilinos ficaram desalojados. Para assistência judiciária a todos os necessitados falta verba.

Defensoria Pública
Nos EUA, a única instituição de assistência judiciária gratuita genuinamente pública é a Defensoria Pública. Os defensores públicos atuam em favor de réus "indigentes" – os que vivem bem abaixo da linha da pobreza, apenas em casos criminais e "quasi-criminals". A pobreza é checada pelo juiz, antes do julgamento, por meio de documentos comprobatórios e de interrogatório. Mentiras sobre a situação financeira podem ser apenadas. A indicação de um defensor público, pelo juiz, só é necessária em casos que podem resultar em condenação do réu à prisão. Algumas defensorias públicas são muito bem equipadas, mas a maioria dos defensores públicos americanos passam pelas mesmas dificuldades que os brasileiros.

Assistência judiciária privada
A iniciativa privada, entre os advogados, dá uma importante contribuição à assistência judiciária no país, de três formas principais. A mais importante é a pro bono (voluntária), oferecida por advogados ou "patrocinadas" por firmas de advocacia. A assistência jurídica pro bono, nos EUA, cobre principalmente os americanos que se situam no "limbo financeiro", quando se trata de benefícios sociais: os que não são tão pobres para recorrer aos programas da LSC, na área civil, ou da Defensoria Pública, na área criminal, mas que também não são suficientemente ricos para contratar um advogado. Estão nessa situação a população da classe média e os pobres que não podem ser classificados como "abaixo do nível da pobreza" ou "indigentes".

Pro bono
A assistência judiciária pro bono, que atende casos na área civil e criminal, não é obrigatória para os advogados e firmas de advocacia. Há campanhas em andamento para torná-la obrigatória, mas há resistência das seccionais da ABA (American Bar Association, a ordem dos advogados dos EUA) — a não ser da seccional da ABA de Orlando, Flórida. Em Orlando, todos os advogados inscritos na seccional são obrigados a prestar assistência judiciária pro bono ou, alternativamente, pagar uma taxa mensal de contribuição a um fundo, que é revertido em favor do programa. O programa de Orlando está sendo observado em todo o país.

Iolta
Outro programa criado pelos advogados, na década de 1980, foi o Iolta, sigla para Interest on Lawyer Trust Accounts (Juros sobre Contas de Fundos Advocatícios, em português). É comum, nos EUA, que advogados cuidem de recursos financeiros de clientes. Quando a quantia é grande e a aplicação é de longo prazo, os juros são revertidos a favor do cliente. No entanto, muitas vezes as quantias são pequenas e as aplicações são de curto prazo. Nesse caso, os recursos são aplicados em um pool de investimentos, que rende juros.

Os juros, que só são significativos por causa do pool, são revertidos para o programa Iolta do estado. O programa fornece recursos para assistência judiciária gratuita. Mas o programa só produziu resultados significativos até que a crise econômica começou a afetar duramente os Estados Unidos, por volta de 2008 e 2009. E só voltará a ter significado prático quando as atividades econômico-financeiras do país voltarem ao ritmo anterior.

Dativos
Advogados dativos, chamados individualmente de "panel attorney" porque fazem parte de um "painel" – ou um grupo de defensores registrados nos tribunais – operam praticamente em todos os estados, especialmente nos que a Defensoria Pública é pequena ou inexistente. Nos Estados Unidos, os advogados dativos são "contratados independentes", pagos pela administração pública, através de honorários fixos por trabalho ou por hora trabalhada. Os advogados dativos são apontados pelos juízes, normalmente de forma programada. Mas isso pode ocorrer também de forma inesperada, quando o juiz precisa de um defensor em um julgamento já iniciado e algum advogado dativo, por acaso, está no tribunal. Nesses casos, o juiz sugere ao advogado, desde logo, que peça um adiamento.

Clínicas jurídicas
Clínica jurídica (legal clinic ou law clinic) se refere a qualquer organização privada, sem fins lucrativos, que presta assistência jurídica e judiciária, em nome do interesse público, a cidadãos carentes. Mas a prática foi encampada, de uma maneira geral, pelas faculdades de Direito, que querem proporcionar aos estudantes uma forma de iniciação à advocacia. Os estudantes fazem pesquisas relacionadas a casos, escrevem argumentos jurídicos e se reúnem com clientes. Na maioria das vezes, os professores apresentam as alegações orais em tribunais. Mas algumas jurisdições permitem que estudantes tenham alguma atuação no tribunal.

Órfãos jurídicos
A legislação americana permite a representação pro se – ou a autodefesa, tanto em casos civis, quanto em criminais. Em média, são 70% dos casos em Wisconsin, 73% na Flórida e 67% na Califórnia. Nos casos de família, especialmente de divórcio, a média sobe. Em Connecticut, essa média atingiu 85% em processos de divórcio, de acordo com a ABC.

O juiz pode recusar a autodefesa se perceber que a dispensa de um advogado é uma decisão destituída de inteligência ou se a própria representação está criando distúrbios nos procedimentos do tribunal. Um réu que se defende em um caso criminal não pode reclamar, posteriormente, de que não teve representação adequada no julgamento. E ninguém pode entrar com recursos em tribunal superior sem um advogado. No caso de prisioneiros, no entanto, 93% das petições a tribunais federais foram protocoladas pelos próprios presos.

Verbas
Um levantamento de 2009 (o último disponível) de todos os fundos destinados à assistência judiciária nos EUA, mostrou que os recursos públicos destinados à LSC representam apenas 26,6% do total de financiamentos para esse fim. O total dos fundos disponibilizados foi de US$ 1,291 bilhão, assim distribuídos: LSC – US$ 343,9 milhões; Recursos públicos federais e locais para outras organizações – US$ 260,7 milhões; Fundos estaduais – US$ 212,1 milhões; Iolta – US$ 213,4 milhões; Fundações – US$ 85,7 milhões; Contribuições privadas de advogados – US$ 73,2 milhões; Outras contribuições – US$ 102 milhões. As contribuições inteiramente privadas, sem contar o trabalho pro bono dos advogados, representaram 36,7%.

Por estados, a distribuição de fundos ficou assim: 12 estados receberam em média pouco mais de US$ 50 por pessoa de baixa renda; 13 estados receberam de US$ 30 a US$ 49 por pessoa de baixa renda; 16 estados receberam de US$ 20 a US$ 29 por pessoa de baixa renda; 9 estados receberam em média menos de US$ 20 por pessoa de baixa renda.

Direito comparado
Comparar os serviços de assistência jurídica entre os Estados Unidos e o Brasil (ou qualquer outro país), tal como comparar o Direito, é uma missão praticamente impossível. A não ser que a comparação se limite à legislação federal, a única que obviamente vale para todo o país. A "soberania jurídica" dos estados americanos prevalece. E são os estados que aprovam as leis aplicáveis ao dia a dia dos americanos. Cada estado tem o seu Código Penal, ou seu Código Civil, por exemplo. São nos tribunais estaduais que os americanos buscam solução para seus problemas cotidianos de família, contratos, propriedade, atos ilícitos, responsabilidade civil, criminais etc. Assim, quem se propor a fazer a qualquer estudo comparativo completo terá de examinar os sistemas jurídicos de 50 estados, mais o do Distrito de Colúmbia, sem se esquecer os dos territórios americanos e das reservas indígenas — além da legislação federal. Aliás, são as leis estaduais que regulam a atividade da advocacia e a atuação dos advogados.

A lei federal tem precedência. Teoricamente. Na prática, os estados desafiam leis federais sempre que a população local tem "melhores ideias". Por exemplo, a lei federal proíbe a plantação, o transporte, a comercialização, a fabricação de derivados e o uso da maconha. Mas 21 estados já aprovaram o uso da maconha para fins medicinais. E nas eleições de 6 de novembro, três estados terão, nas cédulas eleitorais, uma proposta de legalização da maconha para consumo normal. O Departamento de Justiça protesta e faz ameaças de retaliação. Mas os agentes federais, encarregados da execução da lei, têm mais o que fazer. Outro exemplo: alguns estados aprovaram leis próprias para combater a imigração ilegal, assunto de competência exclusiva da esfera federal. O Departamento de Justiça recorreu à Suprema Corte, que se limitou a derrubar parte das leis estaduais – mas não derrubou as leis.

Uma liga entre o sistema jurídico federal e os estaduais é a "common law". Com uma exceção: o sistema de Louisiana se baseia no Código Napoleônico. Fora isso, o que transforma os estados em uma nação, em termos jurídicos, são os usos e costumes — e as verbas federais. Por exemplo, em 1974 o governo Nixon criou a LSC, uma entidade privada, sem fins lucrativos, que recebe verbas federais, entre outros recursos. A maior parte dos estados criou agências da LSC para receber sua quota da verba. Mas, nem todos. Alguns estados preferiram criar essas agências sem verbas federais, porque elas vinham com condições. Por exemplo, os escritórios da LSC que recebem verbas federais não podem fazer lobby em favor das classes pobres, nem promover ações coletivas. A assistência judiciária nos Estados Unidos segue o modelo do sistema jurídico dos estados. Cada caso é um caso.

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