Diário de Classe

Constituição não pode fundamentar posições contraditórias

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3 de novembro de 2012, 7h00

Spacca
Dizia Warat que “escrever é sempre correr o risco de devolver ao desejo sua liberdade. É um devir-escritura com o que se aceita o irresistível convite de falar tudo ainda — e sobretudo — sem mesmo sabê-lo claramente.”[1]

Genial! Na coluna desta semana, valho-me dessa sentença waratiana em dois significados específicos: primeiro porque me sinto portador de um certo sentimento difuso no momento em que escrevo estas linhas. Estou correndo o “risco de devolver ao desejo toda sua liberdade”. Talvez seja isso decorrente do calor escaldante que assola minha Ribeirão Preto. O calor, definitivamente, dificulta em mim o processo de acomodação das ideias. Ficam todas elas voláteis, como que a flutuar em meio à dissipação dos gases que se alevantam do solo depois das rápidas chuvas que, antes de refrescar a temperatura, acabam por produzir uma espécie de “efeito chaleira”.

De outra banda, fui essa semana alvejado por tantas incitações reflexivas que, confesso, fiquei sem saber ao certo sob qual me fixar. Assim, diante da impossibilidade da fixação, pretendo aqui estabelecer algumas notas curtas sobre tais incitações. Como álibi, alego o fato de que um “Diário de Classe” é composto de pequenas anotações, quase taquigráficas, que mantêm entre si certo fio condutor, mas, ao mesmo tempo, possuem autonomia material.

O fio condutor que une esse caleidoscópio reflexivo é o caráter científico do Direito e os efeitos projetados — ou que deveriam ser projetados — no ensino jurídico.

Ademais, há uma reflexão constante — que se revelará ao final — no sentido de se perguntar até quando a Constituição vai servir para tutelar todos os pleitos possíveis e imagináveis, fundamentando posições que são essencialmente contraditórias.

Vejamos:

Anotação 1
Há uma cruzada contra o “direito” de recorrer (?)
Na segunda-feira, 29 de outubro, o Jornal Valor Econômico publicou artigo do conselheiro federal da OAB, Ulisses Souza, no qual o autor se insurgia contra algo que ele chamou de “cruzada contra o direito de recorrer” (o artigo também se encontra disponível na ConJur. Clique aqui para ler). O texto possui o mérito de alertar para o fato de que, a simples menção ao pretenso caráter protelatório de alguns recursos, bem como a morosidade do Judiciário, não são, isoladamente, argumentos suficientes para determinar a restrição à possibilidade de recurso da parte derrotada. Do mesmo modo que, podemos acrescentar, estratégias limitadoras como as propostas de aumento de custas processuais para interposição de recursos, não se apresentam adequadas ao nosso modelo principiológico-constitucional.

Por outro lado, me causa inquietação alguns dos argumentos oferecidos pelo autor para sustentar sua tese. Para defender esse “direito que a parte tem de recorrer”, o articulista se vale da doutrina de Alcides Mendonça Lima (escrita ainda na década de 70) para afirmar que “a ideia de recurso deve ter nascido com o próprio homem, quando, pela primeira vez, alguém se sentiu vítima de alguma injustiça”.

Sei não… Lembro aqui de Voltaire e da dura crítica que ele fazia às tentativas de explicar a origem dos povos e das nações a partir de mitos (por todos: Rómulo e Remo, fundadores de Roma que foram alimentados por uma loba…!). Imaginem: o professor de processo civil entra na sala de aula. Um aluno dedicado, interessado no problema dos recursos, quer saber o motivo da existência de um “direito de recorrer”. Eis que o professor, para justificar tal direito, utilize o douto ensinamento citado acima. O aluno, com alguma perspicácia, redarguiria: “Mas professor, como é que, nesta altura dos acontecimentos, poderíamos demonstrar a validade de tal afirmação? Aliás, professor, em nosso modelo processual atual, a injustiça não é fundamento para recurso, será que algum dia ela foi?”

De se frisar que esse tipo de afirmação, de caráter universalista, apresenta inúmeros problemas para o estudo do Direito, cujo caráter singular é sempre mais preponderante. Veja-se, por exemplo, que Van Caenegem nos lembra que, no caso do Direito inglês, a possibilidade da apelação é um desenvolvimento recente. Nos termos propostos pelo autor, tal instituição passou a ser admitida apenas no século XIX. Antes, havia uma resistência por parte dos juristas ingleses da possibilidade de revisões das decisões. Apenas ações de impugnação eram praticadas até então (v.g. o writ of error e o writ of certiorari, sendo que este último, no Direito inglês, assume conotação diferente daquela que lhe empresta o Direito estadunidense). [2]

Daí que, esse caráter quase natural presente na citação referida é altamente duvidoso. Como processo cultural, o Direito se apresenta de modos distintos e com conotações específicas. Se existe um direito de recorrer este, certamente, não encontra eco na “natureza humana” e na sua pretensa irresignação diante de “injustiças”.

De se consignar, por relevante, que o “direito ao recurso” encontra respaldo na Constituição — de forma implícita, é também verdade — na medida em que esta cria tribunais e os qualifica como órgãos do Poder Judiciário. Assim, ao menos o recurso de Apelação se apresenta como um instituto que pode ser deduzido deste comando Constitucional. Por outro lado, quando estabelece as regras de organização do Poder Judiciário, a Constituição cria uma série de recursos (v.g. o Recursos Extraordinário e o Recurso Especial), que, por sua vez, não podem ser eliminados pelo legislador infraconstitucional. [3] Poder-se-ia, todavia, discutir sobre a possibilidade de uma reforma constitucional, como ocorreu no caso da chamada PEC dos Recursos, encampada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso.

Isso tudo é fora de dúvida. Todavia, como qualquer outro direito, é evidente que, também o de recorrer, pode sofrer limitações por parte do Legislador. Inclusive, se por motivos de política legislativa, ficar entendido, por exemplo, que o recurso de Embargos Infringentes deve ser suprimido, isso não representaria, de forma alguma, uma inconstitucionalidade.

Anotação 2
O amianto, o pamprincipiologismo e o abuso de princípios por parte do Supremo Tribunal Federal
No sábado passado, 27 de outubro, a ConJur publicou um excelente texto de Marcelo Neves (para ler, clique aqui) sobre a atividade do STF e o modo como os ministros vêm fazendo uso de argumentos de princípios e de valores. O texto guarda profunda relação com a crítica contundente feita por Lenio Streck àquilo que ele batizou de “pamprincipiologismo”.[4] Embora sejam distintas as propostas teóricas a partir das quais cada um dos citados autores se aproximam da questão (inclusive quanto ao modo como cada um retrata o conceito de princípio), há algo que os une: a ideia de que, em alguma medida, o Tribunal faz um uso inconsistente de argumentos dessa natureza e está, de algum modo, se excedendo na sua tarefa de guardião da Constituição. Outro ponto marcante, comum do discurso destes dois autores, é a crítica àquilo que vem sendo chamado de neoconstitucionalismo.[5]

Eis que, na última quarta-feira, o Supremo Tribunal, novamente, deu amostra que comprova a crítica dos dois juristas. Com efeito, o início do julgamento conjunto das ADIs 3.357 e 3.937 que sindicam leis dos estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul que proibiram a utilização do amianto, ficou marcado pelo voto do ministro Ayres Britto, que se mostrou, de maneira exemplar, como uma profissão de fé no discurso dos valores e do pamprincipiologismo (clique aqui para ler).

De se consignar, de saída, que, ao adentrar na análise do mérito da questão do amianto ser ou não prejudicial à saúde; ser ou não um agente patológico, o Supremo passa a praticar um ato que pertence à esfera dos debates políticos que têm lugar no âmbito da atividade do Congresso Nacional.

Afinal, como professores de Direito, temos que nos perguntar: Quais os limites do conhecimento jurídico? O jurista precisa saber sobre tudo, inclusive sobre especialidades de outras ciências. Aliás, a questão do conhecer e do se informar, não é exatamente o problema. O ponto crucial da questão é: O Judiciário é instância legítima para decretar qual é a verdade pronunciada pela ciência? Insisto: no momento em que um ministro do Supremo Tribunal Federal crava em seu voto que o amianto é um agente patológico e, como tal, deve ser mantido fora do mercado, não se está aqui a judicializar uma posição científica específica?

Vingando a tese do ministro Ayres Britto, podemos ensinar aos nossos alunos, então, que — por decisão judicial — a corrente científica que defende o caráter patológico do amianto se tornou verdade, acobertada pela coisa julgada; ao passo que a outra posição, que afirma serem os efeitos de tal substância controláveis, deve ser considerada falsa (por decisão judicial?!).

De outra banda, podemos ensinar aos nossos alunos que, no exercício de competência concorrente (art. 24 da CF), os estados podem legislar fora do quadro normativo geral estabelecido pela Lei Federal, desde que a Lei Estadual consagre de forma mais adequada os princípios que a Constituição guarnece sobre a matéria a ser regulamentada? Mas, afinal, que “princípios” são esses? [6] Por exemplo: o ministro afirma em seu voto que, no caso em discussão, deve ser observado o “princípio da eficacidade máxima da Constituição em temas de Direitos Fundamentais”. De se perguntar: Por que esse enunciado consideravelmente extravagante é um princípio? O que faz dele um princípio hábil a autorizar que o Estado legisle ultrapassando os limites impostos por lei federal? Por que tal princípio justificaria, por exemplo, que o amianto seria proibido em São Paulo, mas permitido, nos termos delineados pela Lei Federal, em Minas Gerais?

No caso em específico, sem embargo de uma análise mais específica dos argumentos lançados no voto, me parece que, até o momento, a interpretação do ministro Marco Aurélio se situa em melhor chão normativo.

Anotação Final
O Exame de Ordem e o Duplipensamento
Na quinta-feira, 31 de outubro, em uma reunião da Comissão Financeira e Controle, realizou-se audiência pública sobre a extinção do Exame de Ordem (para ler a notícia, clique aqui). Há vários projetos de lei que encampam a mesma ideia: que o Exame de Ordem deve ser extinto, extirpado do ordenamento jurídico. Pode-se dizer que se trata de um “segundo turno” do pleito que foi julgado no ano passado, em sede de Recurso Extraordinário, pelo STF. Algo que é sintomático: primeiro busca-se no Judiciário a afirmação de um “direito”; negada, ali, tal pretensão, parte-se para a ultima ratio: o debate legislativo.

No meio da nuvem de argumentos que polui este debate, algumas considerações devem ser tecidas:

a) Argumenta-se que a advocacia é a única profissão que exige um exame pessoal para habilitação de seu exercício. Nessa ordem de ideias, haveria um tratamento desigualitário com relação aos demais profissionais — o exemplo sempre alegado, sabe-se-lá-o-por quê, é o da medicina — que não possuem a mesma exigência. Sempre achei esse argumento risível. Mesmo quando era articulado em sede jurisdicional.

Note-se: em primeiro lugar, a situação do Direito em relação à medicina é completamente diferente e singular. A medicina possui várias especialidades, é verdade. Mas, dentre todas as especialidades, há algo que as unifica: aqueles que a exercem são… Médicos! No caso do Direito há verdadeira gama de diferentes profissões. Não são especialidades, mas profissões diferentes. Juiz é juiz, professor é professor, advogado é… advogado! Todas partilham da mesma formação acadêmica, mas com atuações profissionais distintas. Logo, não há uma imposição para que o bacharel em Direito seja advogado. E nem do bacharelado em Direito tem-se como consequência necessária o exercício da advocacia. Ele, o bacharel, permanece livre para escolher dentre uma série de profissões que independem da aprovação no exame de ordem para serem exercidas. Portanto, aquele que escolhe ser advogado, deve cumprir aquilo que a lei exige para tanto. Esses requisitos, em hipótese alguma, se consubstanciam em ofensa à liberdade do exercício de profissão (art. 5o., XIII da CF).

b) Por outro lado, alega-se que o Exame de Ordem apenas se justifica em face da má qualidade do ensino jurídico praticado nas mais de 1.200 faculdades de Direito do país. A partir dessa premissa, deita-se falação, recheada de uma espécie de moralismo pedagógico, para condenar o ensino, sua má qualidade e até a própria OAB, por ter autorizado a abertura desse número excessivo de vagas para o Curso de Direito. O intrigante é que essa autorização não compete apenas à OAB, mas também, e principalmente, ao MEC.

De todo modo, diante dessa situação, é possível encontrar posturas que defendem posições completamente antagônicas: alguns dizem que, em face da má qualidade do ensino, o Exame seria uma forma de punir os alunos que têm acesso a um produto ruim, por culpa exatamente dos órgãos oficiais que não fiscalizam e autorizaram a implementação de tantos cursos. Em contrapartida, existem aqueles que defendem a velha opinião de que o Exame de Ordem deve ser usado como filtro para tentar segurar os efeitos deletérios da má formação universitária.

Em meio a esse tumultuado debate, o representante do Ministério da Educação lança o seguinte argumento: o ensino jurídico é mais humanista ao passo que o Exame seria mais profissional…! Como assim, Humanista? Como assim Profissional? De algum modo é preciso chegar a um ponto determinante: ou bem o Exame serve para avaliar a qualidade do ensino, ou bem ele serve para exigir do candidato elementos indispensáveis para o exercício da profissão. Tertium nom datur. Isso por um motivo simples: a faculdade de Direito não pode servir para a preparação do aluno para o exercício de uma única profissão. Registre-se: o curso de Direito não tem como objetivo único a formação de advogados! Portanto, cobrar do aluno elementos especificamente destinados a sua atuação profissional exigiria um reposicionamento de todo o curso de Direito, algo que me parece absolutamente ilegítimo, diante da característica, digamos, poliprofissional do curso. Sem dizer que isso transformaria um curso de bacharelado em um curso técnico.

Em face disso, proponho aqui uma questão a ser enfrentada pelas autoridades responsáveis pela discussão e direcionamento desses projetos de lei: O Exame afinal serve para aferir a qualidade do ensino ou as condições para o exercício da profissão? Se a resposta for pela segunda possibilidade (como parece ser), então, teremos que admitir que vincular a qualidade do ensino jurídico à aprovação no Exame de Ordem é, não apenas discutível, mas, acima de tudo, incoerente.

Finalizando: grassando fervorosamente a estante de livros de uma megastore, deparei-me com velhos livros que produziram em mim nova inspiração. Falo de um box contendo quatro livros da obra de George Orwell. Entre tais textos, encontra-se o festejado 1984, cuja edição traz um posfácio fenomenal escrito por Erich Fromm. Este último nos lembra de um dos conceitos fundamentais do livro e que pode levar a algumas conclusões de tudo aquilo que foi dito aqui. Trata-se do conceito de duplipensamento. Nos termos descritos por Orwell: “duplipensamento significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas”. Tal processo, lembra Fromm, pode ser tanto consciente quanto inconsciente.

No nosso caso, tudo o que se faz atualmente no país é em nome da Constituição e da consagração de sua força normativa. Defendemos uma radicalização do direito de recorrer. Por quê? Porque a Constituição assim assegura. Podemos também defender a restrição da cadeia recursal, incluindo aí imposição de taxas para “desincentivar a impetração de recursos”. Em nome de quê? Da Constituição. Aplicamos princípios para judicializar uma verdade científica, em nome de que e de quem? Da Constituição. Defende-se a extinção do Exame de Ordem por fé inabalável na liberdade de profissão e na regra de isonomia guarnecidas pela… Constituição. Mas, pode ser assim? Alguma coisa não está fora dos eixos? Como é possível que a Constituição atenda a tantos pleitos e não se coloque contra nenhum deles… Ah o duplipensamento… George Orwell sabia das coisas.


[1] WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e Seus Dois Maridos. 2a. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 11.

[2] CAENEGAM, R. C. Van. Jugdes, Legislators and Professors. Cambridge University Press, 2002, p. 4 e segs.

[3] Nesse aspecto, sou grato a Georges Abboud, eminente processualista, pela valorosa interlocução na tentativa de esclarecer alguns pontos com relação ao direito de recorrer e sua possibilidade de limitação.

[4]Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, em especial o posfácio.

[5] Idem, ibidem. No texto o autor faz uma espécie de catarse com relação ao uso que fez, em obras anteriores, do termo neoconstitucionalismo para, ao final, concluir que sua defesa nunca se alinhou aos postulados discricionaristas e axiologistas das propostas que compõem o universo teórico do neoconstitucionalismo. Por isso, sugere uma novo termo para se referir ao novo modelo de direito instalado a partir das Constituições do segundo pós-guerra: o constitucionalismo Contemporâneo. Ao contrário do que se defende no âmbito no neoconstitucionalismo, o constitucionalismo Contemporâneo se assenta na afirmaçãoo de um grau de autonomia para o direito, no antidiscricionarismo decisional e na defesa radical da força normativa da Constituição.

[6] Neste particular, permit-me direcionar o leitor para a leitura de OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

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