Senso incomum

Azdak, Humpty Dumpty e os Embargos Declaratórios

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29 de março de 2012, 8h04

Caricatura Lenio Streck [Spacca]Nesta segunda coluna, peço a compreensão dos leitores para a sua dimensão. A extensão do texto se deve à complexidade do assunto. Prometo que, para as próximas, na medida do possível, o texto estará mais condizente com a “pós-modernidade” (sabe-se lá o que quer dizer esse termo “anêmico”). Ou seja, o texto estará mais enxuto. Vamos, pois, ao assunto prometido na semana passada: o que é isto – os Embargos Declaratórios e a (in)efetividade da Justiça.

Bertolt Brecht, entre tantas peças, escreveu uma que se reveste de especial relevância para o Direito. Trata-se do Círculo de Giz Caucasiano,[1] que trata da história de uma cidade imaginária em que ocorre um conflito de terras depois da guerra travada contra o nazismo. Mas o que interessa, aqui, é a história de Azdak. Ele é escrivão de uma aldeia que, sem saber, acaba salvando a vida do Grão-duque, líder absoluto antes de um primeiro golpe de Estado e que volta ao poder no segundo golpe. Azdak quer se entregar (ou se punir) por ter salvado o tirano, mas quando vai se entregar, descobre que os tempos continuam os mesmos, e acaba sendo escolhido juiz. Para decidir o destino de uma criança, traça um círculo de giz e coloca as duas mães no meio, para lutar pela criança. Como Salomão, decide por aquela que não “larga” a criança para não a machucar (ele decide em favor daquela que larga a criança, a serva Grucha).

A característica principal de Azdak é que ele decide como quer. O próprio Brecht — e nunca esqueçamos das raízes ideológicas que o sustentavam — disse que a intenção era mostrar que o seu personagem (Azdak) era alguém decepcionado “ao perceber que a queda dos velhos senhores não anuncia um novo tempo, mas um tempo de novos senhores”. Assim, ele continua a praticar o direito burguês, só que esfarrapado, sabotado, no exclusivo interesse do próprio juiz”. Claro que, e ainda é Brecht quem fala, “essa explicação não muda nada das minhas intenções e não justifica Azdak”.

Como diz Maurini de Souza Alves Pereira, em texto chamado A lei e a ética em Azdak – o Círculo de Giz Caucasiano, Azdak é múltiplo e contraditório, e nenhum personagem consegue concebê-lo em suas contradições, ou chegar a uma conclusão sobre a complexidade de suas atitudes: para a cozinheira, ele não entende do ofício, e absolve os “maiores ladrões”, demonstrando que o povo estava consciente de que a lei era feita para proteger os poderosos. Azdak não era entendido como antítese a essa lei pelos personagens, e suas atitudes não levam as pessoas da peça a uma síntese.

A peça trata de três julgamentos de Azdak, além daquele do Círculo de Giz. Em um deles, dois grandes proprietários de terra levam a juízo uma velha camponesa que mantinha uma vaca pertencente a um deles, e um presunto do outro. O segundo também reclamava que vacas dele haviam sido mortas para que deixasse de cobrar o arrendamento do lote da senhora. Ela atribui, tanto os bens quanto o perdão da dívida, à atuação de “São Banditus”, que os proprietários acusam ser Irakli, cunhado dela, um justiceiro que roubava dos ricos para dar aos pobres. Esse personagem é o que mais se aproxima do juiz enquanto contraventor. Azdak multou os proprietários em “quinhentas piastras”, por não acreditarem em milagre e absolveu a velha e o “São Banditus”, a quem ofereceu vinho depois da sentença, precedida de uma declaração lírica.

Eis algumas máximas de Azdak: “É bom para a justiça funcionar ao ar livre. O vento lhe levanta a saia e pode-se ver o que está por baixo”; “Contam a meu respeito que um dia, antes de pronunciar a sentença, eu saí para respirar o cheiro de uma roseira”; “Me traga aquele livro grosso, que eu sempre faço de almofada para sentar! (Schauva apanha em cima da cadeira de juiz um grande livro, que Azdak se põe a folhear.) Isto aqui é o Código das Leis, e você é testemunha de que eu sempre fiz uso dele”, sentando-se sobre o livro.

Em síntese: Azdak decide como quer. Por vezes, dá ganho de causa aos pobres; por vezes, contradiz-se ao infinito. Não deve explicações a ninguém. E tampouco explica as suas decisões.

Pois bem. Em Alice Através do Espelho, Lewis Caroll nos apresenta um personagem muito parecido com o juiz Azdak. Trata-se de Humpty Dumpty, cujo papel é nitidamente o de um nominalista, corrente filosófica que se forma a partir de Guilherme Ockham, pela qual não há coisas universais, apenas “particulares”. É a primeira grande contrariedade ao essencialismo aristotélico. Entretanto, o nominalismo é também sinônimo de positivismo, convencionalismo e pragmatismo, problemática que analiso em Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, para onde, respeitosamente, remeto o leitor.

Vejamos, então. Discutindo sobre o papel do “desaniversário”, pelo qual haveria 364 dias destinados ao recebimento de presentes em geral e somente um de aniversário, Humpty Dumpty diz para Alice: é a glória para você. Poderás receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: não sei o que quer dizer com glória, ao que ele, desdenhosamente, diz: “Claro que não sabe… até que eu lhe diga. Quero dizer ‘é um belo e demolidor argumento para você’”, acrescenta Humpty Dumpty. Mas, diz Alice, “glória não significa ‘um belo e demolidor argumento’”. E Humpty Dumpty aduz: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Observe-se bem essa frase final do personagem nominalista de Lewis Carroll: a palavra “glória” significa o que ele, Humpty Dumpty, quer que ela signifique. É o fim “demolidor” de uma discussão.

O que essas duas estórias têm em comum? O autoritarismo, o decisionismo e o pragmatismo (ou, se quisermos, pragmaticismo). Os dois livros tratam de personagens que têm o poder de dizer algo — no caso, decidir — e o fazem sem qualquer critério e sem accountability. Apenas decidem ao seu bel prazer (lembremos da vontade do poder — a Wille zur Macht). Resultado: um caos.

Assim, mutatis, mutandis, é terrae brasilis. O pan-principiologismo e a falta de uma teoria da decisão, aliados ao incentivo de ativismos dos mais variados, forjou um sistema jurídico absolutamente fragmentário, em que os processos se multiplicam aos milhares (ou milhões). Veja-se que, “darwinianamente”, o próprio “sistema” fez uma “correção de rumo” (ou seria uma adaptação?), criando as súmulas vinculantes e a repercussão geral.

E parece que isso não serviu para diminuir as demandas. Ao contrário: do que se pode perceber, vivemos a era das “efetividades quantitativas”. Estatísticas! Números! Vivemos preocupados com o rápido despacho de processos, mesmo que milhares deles sejam embargos declaratórios provocados pela pressa, para dizer o mínimo.

Trata-se de um círculo vicioso, pois. A questão é: não estaria na hora de nos preocuparmos com efetividades qualitativas? Ao invés de fazer uma sentença rápida — correndo o risco desta ser omissa, obscura ou contraditória — não seria melhor fazer uma boa sentença, que não demandasse embargos de declaração, seguidos de outros embargos e agravos de agravos etc?

É de se pensar, pois não? Se eu tivesse que escolher um instituto que represente simbolicamente esse “estado de natureza hermenêutico” (homenagem a Hobbes), escolheria os embargos declaratórios e sua derivação: os embargos declaratórios com efeitos infringentes.

Trata-se de uma virose epistêmica que assola o direito, produto da invencionice dos juristas. Isso vem de longe. Desde já lanço a pergunta: como é possível que um Código de Processo Civil (também o de processo penal) admita que um juiz ou tribunal, agentes políticos do Estado, produzam decisões (sentenças e acórdãos) omissas, obscuras ou contraditórias?

Ora, se a fundamentação é um dever fundamental do juiz e um direito igualmente fundamental do utente, de que modo se pode admitir que sejam lançadas/promulgadas sentenças com esses vícios? Só para registrar: a Corte Europeia dos Direitos Humanos declarou, de há muito, que a fundamentação, antes de um dever dos juízes e tribunais, é um direito fundamental do cidadão. Fundamentação frágil gera nulidade. Pois é. Lá não tem embargos.


Parece evidente que a previsão da possibilidade de um juiz ou tribunal produzir decisões omissas, contraditórias ou obscuras fere frontalmente o artigo 93, inciso IX, da Constituição, além do dispositivo que trata do devido processo legal (também, a do contraditório). Absolutamente inconstitucional.

Sempre pensei que uma decisão omissa (vejam no dicionário o significa a palavra “omissão”) seria nula, írrita, nenhuma.

Igualmente parece evidente que uma sentença contraditória (portanto, que fere o raciocínio lógico) deveria ser nula, írrita, nenhuma.

Finalmente, uma decisão obscura parece demonstrar uma obscuridade de raciocínio, longe, portanto, daquilo que o próprio CPC estipula como requisito da sentença.

Por certo — e não me tomem por ingênuo — a incorporação dos embargos no sistema processual brasileiro acabou por gerar um subproduto que, no contexto atual, confere certa importância (pragmática) para o instituto. Isso é óbvio. Até mesmo não se nega que, em casos limitados, uma decisão poderia demandar um esclarecimento. Mas não do modo como hoje se age. O que quero dizer com isso? Refiro-me ao fato de que a morosidade da Justiça, a dificuldade de tramitação de inúmeros recursos que seriam aplicáveis às hipóteses de sentenças nulas (por ausência ou insuficiência de fundamentação, vale dizer que, sentenças omissas, obscuras ou contraditórias são, ao final, sentenças com fundamentação insuficiente, portanto, nulas), faz com que os Embargos sejam instrumentos úteis para sanar erros materiais cometidos pelo juízo a partir de uma intervenção "cirurgicamente" mais precisa no desenrolar processual.

Só que isso acaba por gerar um círculo vicioso progressivo: na medida em que temos embargos, temos mais recursos no Judiciário; se temos mais recursos, temos mais trabalho; se temos mais trabalho e não aumentamos a estrutura humana/funcional que opera com tudo isso temos mais morosidade. Enfim, no fundo, os embargos, no lugar de remédios, acabam por se constituir como parte da causa da doença".

Quero dizer que além de a própria existência dos embargos de declaração ser algo, digamos assim, estupefaciente e bizarro, também a sua operacionalidade em terrae brasilis deixa muito a desejar. Acaba dando ao processo contornos, para dizer o menos, de um jogo (não raro, de cartas marcadas). Entra, aqui, o fator “Azdak” e o efeito “Humpty Dumpty”. Explico-me.

Pensemos no caso de um cidadão que faça um pedido qualquer em juízo. Sei lá, imaginem aí um pedido de realização de uma cirurgia modificadora extrema do próprio corpo (extreme body modification, já ouviram falar? Lembrem-se da coluna da semana passada sobre “O sorriso do lagarto”) ajuizado por alguém que queira — sejamos criativos — tornar seu rosto parecido com o de um lagarto (afinal, em tempos de caos hermenêutico, por que não?) Uma ação cominatória contra o Poder Público, pois. Afinal — e aqui vai mais uma pitada de sarcasmo — mais uma ação contra o poder público não fará tanta diferença assim.

Pois bem. O argumento central da “causa” é o de que o sujeito tem direito a perseguir a sua felicidade (he has the right to pursuehis own happiness), e que o Estado, por estar comprometido com a promoção da saúde (sic) e da dignidade (sic) da pessoa humana, teria o dever de realização do procedimento de forma gratuita ao cidadão hipossuficiente. Lembrem-se sempre da questão de número 10 do Concurso da Defensoria Pública do RJ (2010), em que o hipossuficiente queria fazer cirurgia para ficar com as feições de um lagarto e que, ao que consta, o gabarito apontou para o direito fundamental à felicidade do hipossuficiente-pretendente-a-ter-feições-de-um-lagarto. E por conta da “viúva”.

Na sequência, imaginemos que o Estado (no auge da sua cupidez, por certo — sejamos de novo um pouco irônicos e/ou sarcásticos) conteste a demanda invocando um princípio que ninguém mais respeita, o princípio da legalidade (não haveria previsão legal que o obrigasse a cobrir os custos da operação pretendida), além da falta de provas e garantias de que a realização do procedimento cirúrgico (lagarteal) perseguido fosse necessário ou suficiente para garantir a felicidade do autor.

Suponhamos que depois de uma profunda instrução (ao longo da qual se teria colhido o depoimento de pessoas, todas muito felizes, que conseguiram deixar seus rostos azulados e afilados, muito parecidos com aqueles dos Na´vi — personagens, quem não sabe, do filme Avatar), e de acaloradas razões finais (nas quais o advogado — aquele defensor público da questão objeto do concurso tratado no artigo O Sorriso do Lagarto — do autor teria sido particularmente convincente em demonstrar que a felicidade é o objetivo de “toda a vida boa”, citando o Aristóteles de Ética a Nicômaco como insuspeito argumento de autoridade), o juiz tenha chegado a uma decisão. Julgou improcedente o pedido, só que com a seguinte fundamentação:

“Não encontrei no texto constitucional ou na legislação infraconstitucional a positivação do ‘direito fundamental a ficar parecido com um lagarto’. O Estado deve agir de acordo com a legalidade. E pronto. Interne-se o pretendente a lagarto em um hospital psiquiátrico”. E seguiu-se o dispositivo.

Percebam que o juiz nada falou sobre os argumentos nodais do autor: de que a dignidade humana, como vetor interpretativo, implica tornar a pessoa humana como um fim em si mesmo; de que, no exercício de sua autonomia, a pessoa humana tem o direito de dispor de seu próprio corpo da maneira como desejar; de que o Estado, já que comprometido com a promoção da dignidade e saúde humanas, teria de tornar acessíveis ao cidadão os meios necessários para que fosse atingido aquele fim; de que o fim da vida humana é a conquista da felicidade. Risíveis ou não, são estes os argumentos do autor.

O julgamento, assim, até poderia estar correto por seu resultado, mas sua fundamentação seria espetacularmente simplista. No plano do devido processo legal, do princípio do contraditório e do que exige o artigo 93, inciso IX, da CF, as partes (e o público) seguem sem saber, depois da decisão, se há ou não um compromisso público com a promoção da dignidade humana. E se esse compromisso implica, ou não, um dever de promover a felicidade dos cidadãos. Teria o magistrado negado a existência de um direito à felicidade? Mais: será que nas decisões anteriores deste mesmo juiz não encontraríamos algumas reconhecendo o caráter normativo da Constituição mesmo na ausência de lei (será que ele nunca “aplicou” o também “não positivado” “princípio da proporcionalidade”, por exemplo?)? O cidadão quer saber! A sentença, pois, foi omissa, no mínimo.

“Não há problemas”, pensa o autor. “Existem, justamente para suprir omissões, contradições e obscuridades, os embargos de declaração”. Suspiros de alívio e de fé nas instituições preenchem o coração do utente. Opõem-se os embargos.

Eis, contudo, a resposta:

“O juiz, na linha de precedentes do STF, não está obrigado a responder a todas as questões articuladas pelas partes. As razões de meu convencimento são suficientemente claras. Rejeito os embargos.”

O autor não desanima. Afinal, ainda resta o recurso de apelação. Apela. Eis o acórdão, unânime:

“Peço vênia para reproduzir os suficientes argumentos esposados pelo Colega de primeiro grau que, como de hábito, resolveu a contenda com síntese e suficiência.” E seguiu-se o “recorta-e-cola” da decisão de primeiro grau.

“Novos embargos?”, questiona o autor a seu advogado, já um tanto sestroso. Novos embargos. E a velha resposta:

“O juiz não está obrigado a responder a todas as questões levantadas pelas partes. O Tribunal não é um órgão de consulta”.

“Ao Supremo Tribunal! A questão é constitucional!”, exasperam-se o autor-aspirante-a-lagarto e seu advogado. No entanto, batem na trave:

“A matéria não foi objeto do devido prequestionamento. Não se pode, pena de ferir o due process of law, suprimir instâncias, enfrentando, em caráter original, matérias não apreciadas pelas Cortes inferiores. Nego conhecimento”.


E vai agravo… E, depois, outro agravo. E embargos declaratórios para esclarecer a decisão do agravo…

Paro por aqui. Os que militam no foro sabem do que falo. Já viram essa história se repetir dezenas de vezes. Os mais argutos até já tomaram notas. A culpa foi do autor: “ele deveria ter oposto embargos com efeito expressamente prequestionador” ou “deveria ter interposto um recurso especial alegando violação ao art. 535 do CPC”. Viram como funciona nossa mente? É a prova de que esta defecção já não causa estranhamento.

O problema é que, ao contrário do que se usa dizer, o juiz tem, sim, o dever de responder a todas as alegações juridicamente relevantes articuladas pelas partes. Nem que seja para dizer que elas não são… juridicamente relevantes! E isso por uma questão de democracia. Para que serve, enfim, a garantia do contraditório?

Para finalizar, trago à colação (colação é ótimo, não?) o RE 222.752, só para mostrar que, embora o exemplo acima seja absolutamente fictício, tem tudo a ver com a realidade. Vamos ao exemplo do mundo real:

RE 222.752 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO (Processo físico) Recurso. Data de Julgamento.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

1.EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

2.EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

3.EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

4.EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

5.AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

6.AG.REG. NO AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

7.AG.REG. NO AG.REG. NO AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

8.EMB.DECL. NO AG.REG. NO AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO (ipsis literis; pontuação do original do respectivo site; apenas coloquei a numeração de 1 a 8.).

O que acham? Tudo isto em um mesmo “feito” (ou desfeito). Eis o “fator Azdak” e o efeito “Humpty Dumpty”. No Brasil, juízes e tribunais podem “dar às palavras os sentidos que querem”. E parece que as partes, rapidamente, estão se adaptando darwinianamente. Depois… bem, depois, tem sempre os embargos declaratórios.

E assim vamos levando. Mas não se preocupem. Olhei o projeto do novo CPC, com a esperança de que de lá fossem extirpados os embargos declaratórios. Ledo engano. Lá estão. Nada como sustentar a velha tradição, que todos já conhecemos. Essa anemia significativa vai continuar, assim como a algaravia aplicacional.

Ora, o mínimo que se espera do Estado-juiz (para valer-me de um jargão relativamente influente no meio acadêmico) é que lhe diga, depois de produzidas as provas e feitas todas as alegações, ao final do processo, se ele tinha ou não razão (ou seja, se o pedido procede ou improcede) e, claro, as razões para que se tenha chegado a uma tal conclusão (a motivação da decisão).

Aliás, todos deveriam ler o voto do ministro Gilmar Mendes no MS 24.268/2004, em que ele promove, com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão — que reproduzo em meu Verdade e Consenso (Saraiva, 2011) —, uma autêntica homenagem ao direito-dever fundamental de as decisões serem fundamentadas. Penso que com essa decisão já poderíamos derrubar essa virose epistêmica representada pelos embargos declaratórios. O cidadão que entra em juízo tem:

(a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

(b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;

(c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas. O mesmo voto do min. Gilmar Mendes incorpora, ainda, a doutrina de Dürig/Assmann, ao sustentar que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a obrigação de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht).

Numa palavra: parece humilhante que os embargos de declaração sejam o mecanismo (quase) recursal pela qual o cidadão implora ao decisor que este “valide” a sua decisão ou, no mais das vezes, que o esclareça a respeito das razões pelas quais perdeu ou ganhou a causa.

Por meio do instituto dos Embargos Declaratórios, absurdamente admite-se que uma decisão judicial não fundamentada possa ser “consertada”, em cristalina manifestação do “instituto” do “jeito” no direito brasileiro (tão bem criticado, desde 1955, por Dante Moreira Leite). Pior: não se considera isto inconstitucional!

Muitos dizem que apenas se trata de uma válvula de escape do próprio sistema, afinal imagine-se a “confusão” que seria gerada pela declaração de nulidade de todas as sentenças “defeituosas”, mas passíveis de serem “consertadas”. A confusão aí já está! Admitido o nefasto instituto dos “EDs”, criam-se inúmeros outros desvios que ajudam a promover o caos quase que completo no sistema processual, impedindo decisivamente o “acontecer” da Constituição.

Voltando ao “jeito”, vale lembrar como Keith Rosen, autor estadunidense que produziu estudo denominado “O Jeito na cultura Jurídica Brasileira”, iniciou tal obra, especialmente quando mencionou anedota onde um recém-formado médico francês é aconselhado por um cônsul brasileiro, quando de sua tentativa de imigração, a “alterar” sua profissão, o que facilitaria a concessão do visto. O Autor continua fazendo referência ao fato de que a flexibilização da aplicação das leis também ocorre em outros países, mas no Brasil adquiriu um status privilegiado, em “um genuíno processo brasileiro de resolver dificuldades, a despeito do conteúdo das normas, códigos e leis”.

No fundo, os embargos de declaração são um “autêntico legado” da chamada Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, que deixada aos brasileiros pelos portugueses, estabeleceu que as regras do direito romano somente seriam aplicáveis em uma análise, da “boa razão”, um conceito flexível que permitia amplas interpretações, o que incentivava juízes e advogados a observarem o senso comum, o espírito da lei e os costumes com base das decisões, precursor do “jeito”. Materializa-se a “boa razão” processual pátria por meio dos “EDs”, com isso, mais um subterfúgio, um “jeito”, novamente pensamos que estamos salvos, quando apenas nos afundamos cada vez mais no lodo jurídico que nos afogamos cada dia mais!

Atuando como “válvula de escape”, os “EDs” impedem os necessários desgastes advindos da acumulação da pressão decorrente das nulas decisões judiciais não fundamentadas, as quais deveriam servir de estopim para ocorrência de indispensáveis reformas jurídicas e administrativas, acabam por instituir a corrupção interna do próprio sistema processual, tornando-o completamente autofágico. And I rest my case. (desta frase, podem caber embargos declaratórios…).


[1] No Programa Direito e Literatura – do Fato á Ficção (TV Justiça, domingos 12h30min e sextas-feiras, as 7 da manhã, há dois programas disponíveis sobre o assunto, tanto no site da TV Justiça como no site www.unisinos.br/direitoeliteratura. Também o CONJUR passou a divulgar, semanalmente, a partir de 2012, este Projeto do IHJ, dirigido por André Karan Trindade e apresentado por mim. Coincidentemente, a presente coluna trata de dois livros (Brecht e Carroll) que foram discutidos por Francisco Borges Motta, Doutorando em Direito – UNISINOS e Promotor de Justiça-RS. Participaram também dos programas os Professores Draiton Gonzaga de Souza (PUC-RS) e Rejane Pivetta de Oliveira (UNIRITTER-RS).

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