Post Mortem

Há 15 anos, morria o criminalista Evaristo de Moraes Filho

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado e cofundador e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e da Sacerj (Associação dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro).

28 de março de 2012, 6h00

Desde menino me interesso pelos caminhos e descaminhos da pouco compreendida advocacia criminal. Já então escutava, atentamente, as histórias que me eram contadas pela doce Dodô. Filha de João da Costa Pinto, rábula do mais alto coturno, líder dos estivadores na origem, magnífico advogado por fim, que, pela histórica falta de memória dos brasileiros, nunca foi devidamente festejado, como registrou Alfredo Tranjan no memorável A Beca Surrada: Meio Século no Foro Criminal.[1] Só para se ter uma ideia de quem foi aquele advogado não-diplomado, possuidor tão somente do curso primário, recomenda-se, por tudo, a leitura de O Salão dos Passos Perdidos,[2] do nosso (então) decano Evandro Lins e Silva, que pelas mãos daquele estreou na tribuna do júri, nos idos de dezembro de 1931.

No meio daquelas histórias, que me vinham recheadas de emoção — a Dodô era uma passional — surgiam vários nomes de advogados de nomeada, como Jorge Severiano Ribeiro, Mário Bulhões Pedreira, Romeiro Neto, Stélio Galvão Bueno, Sobral Pinto, Evandro Lins e Silva, Carlos Araújo Lima, Serrano Neves, Wilson Lopes, Humberto Teles, Alfredo Tranjan, além dos meninos dela, Antonio Evaristo de Moraes Filho (o Evaristinho) e Augusto Thompson, entre outros. Para mim o mundo desses grandes advogados era intangível.

Mais tarde, ao ter o privilégio de privar com alguns, pude perceber que esses monstros sagrados da advocacia criminal são pessoas muito simples, precisamente por geniais. Fazendo eco às histórias da Dodô, havia as que eram contadas por meu pai, o advogado Áureo Antunes Vieira, contemporâneo na Faculdade do Catete do Evaristinho, do Thompson e do Ricardo Pereira Lira. Tudo a alimentar o sonho de que um dia eu poderia vir a ser advogado, talvez criminal.

Estando eu já na Faculdade de Direito Candido Mendes (hoje Universidade Candido Mendes), não recordo se no primeiro ou segundo ano letivo, coube a um grupo de trabalho em que me encontrava entrevistar Evaristo, acerca de tema que infelizmente não sai do nosso quotidiano, a saber, a pena de morte.

Marcada a entrevista, comparecemos-lhe ao escritório, à época muito modesto, na rua México, centro do Rio de Janeiro. Logo, ao responder à primeira indagação, sobreveio, como um raio, a verve do humanista que não se cansava de falar da vida e da liberdade, a nos explicar então, minudentemente, com a paciência dos Mestres, quão odiosa, covarde e retrógrada é a pena capital. Saí dali com duas certezas, a respeito das quais guardei silêncio por anos: eu iria ser advogado criminal, e um dia haveria de ter a oportunidade de trabalhar ao lado daquele que já se notabilizara como dos mais brilhantes advogados da segunda metade do século findo.

Quanto a estas certezas, a vida me foi mãe. E, em meados de 1995, quando trabalhava com Antonio Carlos Barandier ― “Mestre que nos ensinou a amar a profissão”[3] ― o sonho de pelejar ao lado de Evaristo, por anos acalentado, fez-se realidade, em momento demasiado infausto: meu pai morria.

Com efeito, superando a dor, via-me na obrigação de, junto a Barandier, Evaristo e Márcia Parente, advogada então do escritório deste e sua futura companheira, enfrentar a defesa de um jovem a quem, com dois outros, se acusava de ter matado uma adolescente, atirando-a pela janela de um apartamento, e de posteriormente lhe ter ocultado o cadáver.

O caso, em termos técnicos singelos, dado que nosso constituinte não se encontrava no imóvel na hora em que a adolescente morrera, tendo participado somente da ocultação, ganhou ampla repercussão. Não havia sequer um dia em que a mídia não divulgasse, com escândalo, notícias em torno do crime, acicatando, por conseguinte, a opinião pública.

Nossa principal tarefa era precisamente provar que o cliente, naquele fatídico dia e hora, se achava numa festa junina do colégio religioso onde estudara desde menino e onde, por tal razão, era muito conhecido de todos. Sucede que, com o estrépito que cercava a causa, as pessoas que poderiam testemunhar a seu favor se intimidavam, sendo de notar, por relevante, que algumas delas, jovens, foram proibidas pelos pais de se manifestar em juízo; temiam a exposição sensacionalista que poderia advir com o depoimento judicial.

Pior: para nosso pasmo, um padre, orientador espiritual do colégio e um daqueles em que o cliente mais confiava, também se encolheu, procurando-nos para que não o arrolássemos entre as testemunhas, pois receava abalar o conceito do prestigiado educandário católico. Claro exemplo de que nem sempre este nosso mundo é de Deus.

Cada dia tornava-se-nos mais difícil comprovar o patente. Os operadores da imprensa eram implacáveis; nada os demovia da falsa premissa de que o jovem constituinte se encontrava no apartamento no instante do triste acontecido, estendendo a ele a corresponsabilidade pela morte da vítima.

Diante disso, Evaristo, com sua sabida simplicidade, chamou-nos a seu escritório para uma reunião em que se trataria de arriscada estratégia defensiva. Depois de fazer excelente exposição acerca das dificuldades por que passava a defesa, mormente em razão daquele acovardamento geral e do prejulgamento da causa pela imprensa, Evaristo faz-nos ver que nosso êxito depende do convencimento dos operadores da mídia e sugere-nos nada menos que submeter o cliente a um repórter do jornal que mais carga fazia contra os réus.

“Para tanto”, lembra o próprio Evaristo, em magnífico artigo intitulado “O Advogado Criminal, esse desconhecido”,[4] “permitimos ao jornalista entrevistar-se a sós com o jovem, pelo tempo que desejasse. Depois de conversar com o acusado, durante horas, o repórter, hoje advogado criminal, Antero Luiz, acabou reconhecendo, com dignidade, o erro da hipótese acusatória, e modificou a linha de seu prestigioso jornal.

Hoje estou absolutamente convencido de que somente desta forma conseguimos evitar um erro judiciário, pois, se Alfredo fosse levado a júri por homicídio, seria quase impossível absolvê-lo, estando a opinião pública intoxicada até a medula contra todos os réus. Entretanto, a mudança de posição da imprensa restabeleceu o clima de serenidade, que permitiu a impronúncia do acusado pelo crime de homicídio.

Tal intuição quanto à melhor estratégia para mudar a situação que nos era adversa pode parecer coisa simples. Em verdade, porém, vencendo o medo que se nos impunha, a solução emprestada por Evaristo era algo de ímpar, por sagaz e intrépida, e de índole vitoriosa, como de fato se viu.

Poder-se-iam narrar, aqui, muitas outras intervenções geniais de Evaristo, “O Advogado da Liberdade”, como restou insculpido no pedestal de seu busto, que se encontra, entronizado que foi por seus amigos, no chamado “Salão dos Passos Perdidos”, do I Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro. Limitar-me-ei, no entanto, a deixar registrada uma vontade do Mestre.

Em 1995, após assistirmos a um show, encontrávamo-nos Evaristo, eu e nossas respectivas mulheres num restaurante que trata os fregueses com dignidade – não levanta as cadeiras por sobre as mesas nem começa a lavar o chão enquanto estiver presente um cliente que seja –, quando, entre uma taça e outra da boa bebida dos deuses – e não foram poucas – tive oportunidade de ver um Evaristo revoltado, raivoso, indignado. O Governo estadual inaugurara dois presídios ditos de segurança máxima e os batizara com o nome de dois criminalistas de escol, Laércio Pelegrino e Alfredo Tranjan.

Uma de suas grandes mágoas era nunca ter conseguido retirar o nome de seu pai, Evaristo de Moraes, do presídio localizado na Quinta da Boa Vista, a ex-residência de nosso Imperador, cognominado Galpão da Quinta. Dizia ele, com acerto, que cadeia não pode levar nome de advogado, uma vez que este possui, por missão sacrossanta, defender a liberdade do homem, evitando, de todas as maneiras, que o recolham às paredes frias do cárcere, símbolo maior da incompetência humana.

Como bem salientou Augusto Thompson, “a questão penitenciária não tem solução ‘em si’, porque não se trata de um problema ‘em si’, mas parte integrante de outro maior: a questão criminal, com referência ao qual não desfruta de qualquer autonomia. A seu turno, a questão criminal também nada mais é que mero elemento de outro problema mais amplo: o das estruturas sócio-político-econômicas. Sem mexer nestas, coisa alguma vai alterar-se em sede criminal e, menos ainda, na área penitenciária”.[5]

Por tudo isso, disse que me entregaria um documento, de que eu deveria me tornar guardião, onde restaria assentada a expressa proibição de que qualquer autoridade governamental, após sua morte, lhe pusesse o nome em algum estabelecimento prisional. Ao fim e ao cabo, o documento nunca me chegou às mãos. Todavia, com a anuência de Evaristo, comuniquei-lhe o desejo ao jornalista Ricardo Boechat, que, em sua coluna no Globo de 14 de junho de 1995, publicou a seguinte nota:

“CASTIGO NA HOMENAGEM
O advogado Evaristo de Moraes Filho entrega hoje a seu colega Luís Guilherme Vieira uma escritura pública proibindo que, após sua morte, seu nome seja usado para batizar penitenciárias:

Evaristo, cujo pai é nome de presídio na Quinta da Boa Vista, não vê pior forma de homenagear um criminalista:

Quero ser lembrado pela liberdade, não pela prisão."

Estva dado, pois, o aviso.

Os anos foram passando e solidificando a nossa amizade. Nunca tocou no assunto de sua doença, a qual estupidamente o ceifou quando ele se encontrava no auge da vida.[6] Evaristo era um bom conselheiro, um excelente ouvinte, um boêmio que amava a boa música e a boa mesa. Um de seus maiores prazeres, tirante a pelada de fim de semana no Clube dos 30, era viajar, sempre e muito. Em cada viagem fazia questão de conhecer os bons restaurantes, os bons vinhos e as boas livrarias. Fazia questão de passar para os amigos suas experiências, quer no campo profissional, quer no pessoal. Evaristo era singular.

A doença que o consumiu anos a fio não foi capaz de abalar-lhe a vivacidade e o amor ao próximo. Alguns não compreenderam o motivo de seu sofrido silêncio. Penso hoje, reinterpretando as nossas numerosas conversas, que o que ele quis, com a sua solitária e dolorosa atitude, foi poupar seus familiares e amigos. Evaristo morreu aos 63 anos, no dia 28 de março de 1997.

Ele se foi, sua marca ficou.

Até um dia, amigo.


[1] Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.

[2] Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Ed. FGV, 1997.

[3] Vieira, Luís Guilherme. Casos Penais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 28.

[4] Apud Barandier, Antonio Carlos. As garantias fundamentais e a prova: e outros t temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. xi.

[5] A Questão Penitenciária. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 110.

[6] Antonio Evaristo de Moraes Filho morreu, aos 63 anos de idade, no dia 28/3/1997.

Autores

  • Brave

    é advogado criminal (RJ e BSB). Foi conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu a Comissão Permanente de Defesa do Estado de Democrático de Direito, e coordenador do Curso de Especialização em Advocacia Criminal da Universidade Candido Mendes.

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