Segunda Leitura

A terceirização da culpa nas profissões jurídicas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

11 de março de 2012, 11h51

Spacca
A terceirização da culpa é a solução mais encontrada por aqueles que não querem assumir o seu fracasso. Lembro-me bem da primeira vez que detectei o problema. Um amigo, já pelos seus 30 anos de idade, não estudava nem trabalhava, levando uma vida ociosa e que causava aborrecimentos a sua família e a ele próprio. Certa feita, disse-me em poucas palavras que assim agia porque seu pai, um coronel do Exército, tratara-o sempre como um soldado, impondo regras, horários e deveres. Meio constrangido, arrisquei dizer-lhe que, mesmo sendo tudo isto verdade, ele já estava bem grandinho para tomar suas próprias decisões.

Esta terceirização da culpa, atribuindo aos outros a responsabilidade para os nossos insucessos, é a grande saída para justificarmos o fracasso. Só que nada resolve e ainda nos desacredita perante os que nos cercam. Vejamos.

O estudante de Direito reclama da Faculdade e de seus professores. Por vezes, inclusive, com razão. Mas o aluno aplicado, mesmo na Faculdade de Direito da mais remota cidade do país, poderá fazer um bom curso. Como? Lendo a matéria antes da aula; depois, acompanhando-a atentamente e, finalmente, procurando tirar todas as dúvidas com o professor. E mais. Atualmente, ele pode valer-se da internet e, em segundos, obter informações sobre qualquer área do Direito e assistir cursos a distância, que democratizaram o conhecimento, fazendo com que este deixasse de ser privilégio dos que vivem nas capitais.

O professor também poderá estar insatisfeito com os alunos. Aí a questão é mais de diferentes gerações. Quem passou dos 45 anos tem dificuldades de compreender os alunos de 20, criados sem limites. Mas quem pode e deve superar o desafio é o mestre. O primeiro passo é entender a nova geração, compreender suas dificuldades. E achar o ponto médio, inclusive auxiliando-os.

Ao final do curso, vem o temido exame de admissão à OAB. É difícil, sem dúvida. Mas os estudiosos têm alcançado bons resultados, muitos ainda sem mesmo estarem formados. Portanto, ao invés de delegar à Ordem a responsabilidade por seu fiasco, melhor será substituir o bar e a balada por horas de estudo. A aprovação será o resultado natural, logo para uns, mais tarde para outros.

No exercício da advocacia, atribuir os insucessos a terceiros sempre será uma tentação. Ao cliente, porque não trouxe provas, ao juiz, porque não examinou o processo ou à própria lei, que seria absurda. Será uma boa saída? Será que a prova não poderia ter sido produzida pelo próprio advogado, munido de uma filmadora ou obtendo documentos junto a uma repartição? Será que as petições estão sendo claras o suficiente para facilitar a compreensão do juiz? Quanto à lei, será que foi feita a análise da melhor interpretação, induzindo o julgamento? Neste particular, nada melhor do que o eterno Hermenêutica e Aplicação do Direito, de Carlos Maximiliano.

Na Polícia, a terceirização de culpa costuma recair sobre o Poder Judiciário. “Não adianta prender, que o juiz solta”, é a frase mais comum, nunca complementada pelo esclarecimento de que o CPP restringe ao máximo a prisão provisória.

Falta de estrutura também é uma boa desculpa. E, realmente, quase sempre é a pura verdade. Mas, será que tentar obtê-la junto a outros órgãos (p. ex., a Receita Federal que continuamente leva a leilão computadores e outros bens apreendidos), sugerir desburocratização aos superiores (p. ex., que as precatórias sejam eletrônicas e não em papel) ou assumir uma posição mais pró-ativa (p. ex., requerendo ao juiz o leilão antecipado de bens apreendidos) não é melhor que ficar reclamando?

No MP as queixas mais comuns são contra o juiz (porque negou uma liminar ou julgou uma ação improcedente) ou um desembargador (que deu ou negou provimento a um recurso). Será que ao invés da crítica não seria melhor fazer um estratégico trabalho de convencimento? É comum também reclamações contra a Polícia. Mas será estimulante cotas ofensivas por isto ou aquilo? E elogiar o serviço policial bem feito, quantas vezes é feito por ano? É razoável burocratizar o serviço policial com medidas inúteis, como, p. ex., requisitar produção de provas em Termos Circunstanciados, transformando-os em verdadeiros inquéritos policiais?

No Judiciário, a delegação de culpa é diversificada. Desde o juiz que reclama dos servidores, mas não dá o exemplo (p. ex., chegando tarde e atrasando as audiências), até aqueles que disparam críticas genéricas, do Tribunal até ao estagiário da Defensoria Pública. Na verdade, o juiz dedicado, mesmo em uma Vara assoberbada de processos, pode fazer com que seu trabalho resulte em bons frutos, adotando algumas práticas como: a) tentar realmente conciliar as partes em audiência e não limitar-se ao clássico “tem alguma proposta de acordo?”; b) ler o pedido e direcioná-lo bem desde o início, inclusive só admitindo provas necessárias; c) não proferir um só despacho inútil, do tipo “especifiquem provas, em 5 dias”.

Nos tribunais é comum atribuir-se a culpa à falta de estrutura. O governador costuma ser apontado como o vilão-mor. Porém, será que soluções criativas e inovadoras estão sendo implantadas? Será que as verbas estão sendo bem direcionadas? E quanto ao pessoal de apoio? Tem cabimento manter estenografia quando a tecnologia permite que tudo se filme ou grave? É razoável manter-se um agente de segurança para apanhar e levar o magistrado da casa ao trabalho, ficando sem atividades o resto do dia? Tem sentido manter o hábito existente em algumas Cortes de Brasília, onde um servidor (conhecido como “capinha”) acompanha o ministro ou desembargador solenemente até seu assento e ali permanece sem nenhuma finalidade, a não ser levar ou buscar um processo?

Bem, o que se está querendo dizer é que nenhum de nós gosta de admitir um erro. Alguns chegam a reagir com agressividade quando algo dá errado. Cada expectativa não alcançada corresponde à busca de um culpado. E isto só complica as coisas.

Bem melhor é conseguir superar-se, livrar-se do aconchegante papel de vítima. Primeiro, analisando o insucesso com calma e vendo se poderia ter agido de forma a obter melhor resultado. Segundo, assumindo a responsabilidade e pedindo desculpas, o que, ao contrário do que se pensa, só engrandece a pessoa. Terceiro, apontando no mesmo ato a solução.

Com mais determinação, equilíbrio emocional e menos terceirização de nossas falhas, alcançaremos melhores resultados e criaremos um ambiente de trabalho mais prazeroso e eficiente.

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