Julgamento popular

Especialistas analisam tribunal do júri brasileiro

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3 de março de 2012, 7h00

A imagem que os brasileiros costumam fazer do Júri popular é aquela retratada nos filmes de julgamento – e há muitos e ótimos do gênero – produzidos nos estúdios de Holliwood: depois da apaixonada argumentação da acusação e da defesa, os jurados se reúnem em um caloroso debate até atingir a unanimidade sobre o futuro do réu. A realidade do Júri no Brasil, instituido em 1822, é bem diferente disso. Por aqui, os jurados não se comunicam durante todo o julgamento, e a decisão é tomada por maioria simples. Qual o melhor modelo? Grandes personalidades do mundo jurídico divergem sobre a eficiência de alguns procedimentos do júri popular no Brasil.

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O advogado Luiz Flávio Gomes, acredita que o Brasil poderia buscar inspiração não no cinema, mas na experiência de outros países, como n Espanha, em que o réu pode escolher entre o júri e o juízo singular. Ele acredita que esta seria uma boa alternativa para as críticas que se fazem aos julgamentos em casos de grande repercussão na mídia, quando a cobertura da imprensa pode acabar se transformando num poderoso meio de interferência na decisão dos jurados.

O criminalista Maurício Zanóide lembra que, ao analisar a questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os crimes dolosos contra a vida são de competência exclusiva do júri. Para ele a discussão deveria se assentar em debates mais profundos, como de quem seria a garantia constitucional do júri: do réu, da família da vitima, da própria vitima ou de todos os cidadãos.

Para contornar a pressão da opinião pública, em casos de grande ressonância popular, as leis brasileiras permitem o desaforamento de um processo para outra cidade. Mas o criminalista Roberto Podval aponta que com o avanço dos meios de comunicação, em especial da internet, o mero desaforamento não resolve o problema em alguns casos. “Crimes de grande repercussão na mídia precisam ter uma alternativa ao Tribunal do Júri”, afirma o advogado, que entende que o júri é feito em beneficio do próprio réu, por isso não pode ser imposto se houver o risco de os jurados já terem um entendimento prévio de condenação.

Com posicionamento contrário nesta questão encontra-se o promotor de Justiça, do I Tribunal do Júri de São Paulo, Roberto Tardelli. O promotor que já atuou em casos de enorme repercussão, como o de Suzane Von Richthofen, entende que quando um julgamento começa, a imersão dos jurados na situação concreta é absoluta, com o confinamento e incomunicabilidade dos jurados, “de forma que as provas e testemunhos apresentados têm um peso muito maior [para os jurados] do que a repercussão da mídia”.

O promotor ainda entende que a possível intimidação de jurados por sí só não justifica a retirada da competência do júri, já que os jurados são seres humanos como o juiz, que no caso de uma mudança na lei, assumiria o papel de julgar monocraticamente o réu. “Quem disse que juiz não tem medo? É preciso desmistificar este mito de que o juiz é um super-herói que não tem nada nem ninguém”.

Com ele concorda o criminalista Técio Lins e Silva. “O juiz togado erra mais que o júri. Além disso, a lei deve determinar o juiz natural do crime. Justiça escolhida é Justiça suspeita”. Afirma o advogado.

O juiz Thiago Elias Massad, que também já atuou no I Tribunal do Júri de São Paulo, é contra a retirada de homicídios dolosos com grande destaque na imprensa, do júri popular. Ele sustenta que não há nenhum dado ou estudo que indique comprometimento da decisão de jurados em virtude de matérias veiculadas na mídia, e ressalta, “a justificativa de que a notoriedade trazida pela imprensa pode comprometer a decisão do Tribunal do júri, que é um beneficio do réu, não é valida, haja vista que o júri tem uma flexibilidade maior que o juiz, para condenar ou absolver. Por exemplo, na análise de requisitos de legitima defesa, o magistrado deve se ater a requisitos extremamente técnicos, enquanto o júri não. O juiz precisa embasar legalmente sua decisão, enquanto os jurados podem absolver ou condenar pelo seu livre convencimento.”

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Incomunicabilidade
Longe da mídia, da defesa, da acusação, sem TV, celular ou rádio. No júri brasileiro enquanto rola o julgamento quem fica “encarcerado” é o jurado. E a proibição não se atém a impedir a comunicação apenas com agentes externos ao julgamento, mas também com os outros jurados. Este rito brasileiro vai na contramão da maioria dos países em que existe o tribunal popular, que de um modo geral, admitem a comunicabilidade entre os jurados, notadamente quando também se requer a unanimidade na decisão. Nesse caso, os jurados devem debater a causa entre eles, até chegarem a um consenso. No Brasil, a comunicabilidade é vedada, pela preocupação com o fato de um jurado “líder” acabar influenciando a decisão dos demais.

O constitucionalista Roberto Barroso não tem simpatia pela comunicabilidade entre os jurados, tão pouco pela unanimidade dos votos. Para ele, “a importação de fórmulas anglo-saxônicas, sobretudo quando inspiradas em filmes americanos e não exatamente na realidade podem não ser um bom caminho para o aprimoramento da Justiça no Brasil”.

O desembargador paulista Nelson Calandra, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, que atuou como juiz de júri por mais de 10 anos e em mais de 200 processos, entende que a incomunicabilidade pode conduzir a resposta equivocada dos quesitos. “O jurado é um juiz do fato, e por isso não tem conhecimento técnico que o habilita a desvendar as barreiras entre o fato e a sua interpretação jurídica”. Por isso, nos EUA a comunicabilidade é usada como forma de aperfeiçoar o veredito.

“Vejo com bons olhos a comunicabilidade entre os jurados, mas não dentro do atual formato do júri brasileiro. Para que houvesse comunicabilidade por aqui, deveria haver uma reestruturação de ordem lógica, estrutural e procedimental”, defende Mauricio Zanóide. Ele explica que nos países em que há comunicabilidade a participação do juz no julgamento é ínfima, não se manifestando sobre a admissibilidade da denúncia (pronúncia, aqui no Brasil) e nem sobre a seleção de provas. Tudo é feito pelo Júri.

Luiz Flávio Gomes é a favor de um papinho entre os jurados. Para ele a conversa entre julgadores traria maior quantidade de acertos nos vereditos, “pois embora exista o risco da influência, os jurados decidiriam com mais certeza sobre o futuro do réu”.

No Brasil, um voto pode determinar a condenação de um réu, que pode ser sentenciado pelo juiz a mais de 100 anos de cadeia. Em outros países, embora não se requeira a unanimidade, também não se permite a condenação por maioria simples. Na Espanha, por exemplo, dos nove jurados, exige-se sete a favor da condenação e na Inglaterra exige-se oito.

Roberto Podval ressalta que, a unanimidade normalmente é exigida em países em que a pena imposta pode ser a pena de morte. “Se eu vou ser morto eu tenho direito que todos queiram que eu morra”, ensina. Entretanto, também considera um erro permitir que a condenação de um indivíduo à dezenas de anos de reclusão seja determinada por um único voto, sendo pertinente a adoção dos modelos europeus que exigem maioria qualificada.

Ainda segundo Podval, na atual estrutura do júri brasileiro, a incomunicabilidade não tem sentido, e em alguns casos, na prática não acontece. “Não é verdade que os jurados não se comunicam. Há casos em que passam uma semana juntos. Almoçam, jantam e dormem, todos juntos. Não há como impedir que eles falem sobre o assunto”.

Crime organizado
A Justiça federal tem manifestado interesse em fazer com que os crimes relacionados ao crime organizado sejam julgados por um colegiado de juízes e não por um juízo singular, o que ofereceria maior segurança aos magistrados. De carona neste barco, alguns especialistas e operadores do Direito começam a vislumbrar a possibilidade de homicídios dolosos também serem julgados por um colegiado de juízes ou até mesmo por um juiz singular, ao invés do júri. A justificativa é a de que os jurados podem se sentir intimidados diante de um réu que tenha envolvimento com o crime organizado, e que isso poderia interferir na decisão.

A competência do Júri Popular para julgar os crimes dolosos contra a vida é assegurada artigo 5º, inciso XXXVIII da Constituição Federal. Alterar esse dispositivo sóseria possível através de uma emenda constitucional, "o que seria uma péssima cirurgia técnica”, conforme adverte o promotor Roberto Tardelli.

Técio Lins e Silva defende não só a manutenção da competência do júri como a ampliação, por exemplo, julgando os crimes cometidos pela imprensa [apesar da revogação da lei de Imprensa]. Já foi assim. Na época da instituição do júri no Brasil, em 1822, estes crimes eram julgados por um júri formado por cinco cidadãos.

Barroso é cético sobre as potencialidades do júri, mesmo na forma limitada adotada no Brasil e acha que a discussão deve ser sobre a continuidade ou não do instituto. “Não tenho experiência ou conhecimento de causa, mas como observador do Direito e cidadão, acho que deveria ser suscitado o debate, a fim de averiguar se ele funciona como garantia para o réu e se tem produzido boas decisões”.

Antes disso, porém, outra discussão deverá ser levantada para saber se o dispositivo que prevê o julgamento pelo júri deve ou não ser tratado como uma cláusula pétrea. “Formalmente, a resposta seria sim, por estar a matéria no elenco do artigo 5º. Porém cada vez mais a interpretação constitucional opta por critérios materiais e substantivo, portanto, esta é uma discussão a ser feita”, afirma Barroso. O criminalista Luiz Flávio Gomes não tem dúvidas quanto a isso: “Como garantia constitucional contemplada no artigo 5º da Constituição, é cláusula pétrea intocável. Pode-se discutir seu procedimento, sua competência etc, mas jamais a sua existência”, afirmou

Qualidade dos jurados

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“O que sabemos sobre os jurados que são selecionados anualmente para compor o Tribunal do Júri no nosso país? Talvez a profissão deles, caso as fichas do respectivo Tribunal estejam atualizadas. Cremos ser chegada a hora de nos aproximarmos, nesse ponto, do sistema norte-americano. É muito importante conhecer o perfil, a formação assim como as opiniões daqueles que decidirão o mérito de um caso com pena bastante severa. É o destino de uma pessoa que está jogo”, afirma Luiz Flávio Gome.

Para ele, as partes trabalham quase que às cegas: debatem e expõem seus pontos de vista, fazem apreciações subjetivas, religiosas, jurídicas e filosóficas, sem saber a quem endereçam seu discurso. “O ato de julgar acaba tendo, muitas vezes, cunho eminentemente ideológico ou classista ou, porque não dizer, racista”.

O juiz Thiago Elias Massad e o promotor Roberto Tardelli compartilham da opinião de que os jurados deveriam ser remunerados pelo serviço prestado à Justiça. Eles consideram que a compensação é devida, haja vista que, certos julgamentos duram mais de um dia, nos quais estas pessoas deixam de exercer suas atividades profissionais para servir ao júri. Maurício Zanóide discorda. Teme a profissionalização do júri. “Corremos o risco de termos jurados que vivem de absolver e condenar pessoas. Não acho pertinente”.

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