Senso incomum

Poder Legislativo não deve revogar decisões judiciais

Autor

31 de maio de 2012, 13h10

Spacca
O grande orador romano, Cícero, cunhou o emprego de uma expressão que, por muito tempo, representou o topos determinante da relação dos seres humanos com o seu passado: “historia magistra vitae” (A história é a mestre/professora da vida). Baseado em modelos helenísticos, ele afirmava que o orador é capaz de produzir um sentido de imortalidade para a história, articulando-a como instrução para a vida, mostrando para o seu auditório, a partir de uma coleção de exemplos vivenciados no passado, como é possível aprender com a experiência histórica. Nem é preciso dizer o que Marx e Hegel diziam sobre a história. A ave de Minerva só levanta voo ao anoitecer…

Trata-se, aqui, de perceber certo sentido pedagógico para a história; um sentido prático, efetivo, baseado na ideia de que é possível se instruir por meio dela. Em uma rápida síntese, poderíamos reduzir o conteúdo dessa afirmação em torno da intuição elementar de que os acertos do passado devem ser repetidos; os erros, evitados.

Pois no texto desta semana, sem embargo das inúmeras discussões que emergem do que foi dito acima, pretendo estabelecer contato com essa tradição que coloca a história nesse nível mais concreto (homenageio, aqui, os professores Martonio Barreto Lima, Gilberto Bercovici e Marcelo Cattoni), que nos possibilita captar aquilo que a experiência efetiva dos acontecimentos tem para nos ensinar a decidir melhor diante de todas as possibilidades que o futuro nos apresenta enquanto projetos.

Isso porque, um fato recente — a assombrar o Direito Constitucional brasileiro — pode nos colocar diante de uma situação em que teremos de saber se vamos adiante, com algum grau de acerto ou se, em contrapartida, iremos retroceder para o tempo do Estado de Polícia (Polizeistaat).

A análise aqui posta poderia ser realizada através de diversas perspectivas: poderia analisá-la, por exemplo, pela via da teoria do discurso habermasiana. Também poderia olhá-la através da lente do constitucionalismo garantista de Luigi Ferrajoli. Ou, à luz de qualquer teoria que trata da autonomia do direito e da força normativa da Constituição. Em todas essas hipóteses, a preocupação norteadora da investigação seria a questão democrática. Nestas reflexões, entretanto, opero com uma análise hermenêutica do problema (Crítica Hermenêutica do Direito), procurando encarar a questão desde aquilo que venho desenvolvendo enquanto teoria da decisão judicial.

Convém destacar, ainda a título introdutório, que a comunidade jurídica não tem dado a devida atenção à matéria, mantendo um distanciamento preocupante com relação à necessária crítica que deve ser desferida, já no seu nascedouro, à questão (por isso, repito a frase de uma das Colunas anteriores, em uma imitatio de Martin Luther King: não me preocupa o pensamento geral da comunidade jurídica; o que me preocupa é o silêncio dos bons!). Refiro-me à PEC 3/2011, aprovada no dia 25 de abril de 2012 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Nos termos do projeto, quer-se dar nova redação ao inciso V do artigo 49 da CF que define as competências do Congresso Nacional. A alteração modificaria a competência atribuída ao Congresso de sustar atos normativos do Poder Executivo que extrapolem sua competência regulamentar ou os limites da delegação legislativa. O novo texto substituiria a expressão “Poder Executivo” por “Outros Poderes”, deferindo ao Legislativo a possibilidade de sustar atos decisórios do Poder Judiciário que adentrem na seara da inovação legislativa “criando” (sic) uma regra jurídica nova.

Efetivamente, nada é gratuito. Não é difícil perceber que esse sucesso inicial da referida PEC na CCJ da Câmara representa um sintoma da patologia que vem se alastrando no Judiciário brasileiro. Trata-se de um “troco” do Legislativo ao Judiciário… Sintomas, à evidência, do “estado de natureza interpretativo” que se estabeleceu no Judiciário de terrae brasilis, onde cada um decide como quer, inventam-se princípios, aplicam-se teses sem contexto, além da “escolha” que tribunais fazem acerca de “cumprir a lei ou não cumprir a lei”… Isso para dizer o mínimo.

É claro que isso nem sempre foi assim. Nossa história constitucional é marcada por longos períodos ditatoriais e alguns poucos suspiros democráticos. Se lermos, por exemplo, a literatura que trata da República Velha, podemos nos indagar: como foi que sobrevivemos?[1] O maior período de estabilidade institucional e funcionamento das instituições democráticas é o atual. Alvíssaras! Mas, é preciso dizer para as gerações mais jovens, nem sempre foi assim. Um famoso livro, escrito por Aliomar Baleeiro ainda na década de 1960, pode nos auxiliar nessa reflexão. O livro se chama O Supremo Tribunal Federal, esse Outro Desconhecido. O sugestivo título apontava para dois fatores internamente implicados: em primeiro lugar, ao descobrimento que o seu autor, ainda infante, teve desse importante órgão de nossa República. Nas eleições presidenciais de 1919, peleavam Rui Barbosa e Epitácio Pessoa. A Bahia, de Rui e Aliomar, estava em polvorosa e havia grande temor de que as autoridades do estado impedissem a manifestação e circulação dos correligionários políticos de Rui. Muitos familiares de Aliomar estavam entre essas pessoas. Um dia, a família do jovem Aliomar despertou festejante: o Dr. Rui havia conseguido, perante o Supremo Tribunal Federal, uma ordem de Habeas Corpus, que garantia a liberdade de expressão e a circulação de seus partidários políticos. Assim, o Supremo Tribunal Federal — até então um Outro Desconhecido — aparece para Aliomar como o garantidor dos direitos e das liberdades individuais.

O segundo fator, mais fácil de ser reconhecido, deve-se a intenção de Baleeiro de apresentar para a comunidade política esse Órgão que, na história brasileira, mantinha certa descrição institucional até 1988. De se dizer, até 1988 — com um frágil sistema de fiscalização de constitucionalidade e sem efetiva democracia — o STF desempenhava um papel, até certo ponto, coadjuvante no cenário político nacional. No nosso contexto atual, a realidade é bem distinta. O STF protagoniza, diuturnamente, questões que afetam interesses políticos nacionais. Já não pode ser um “Outro Desconhecido”; mais do que isso, o Supremo Tribunal é hoje um “ex-desconhecido”. E isso decorre, em princípio — e há que se reconhecer isso — de um fator de consolidação de nossa democracia. Sendo mais claro: em uma democracia constitucional é necessário que exista um Judiciário forte, que funcione como efetivo garantidor dos direitos fundamentais e das regras do jogo político que são estatuídas pela Constituição. Nesse sentido, basta ver o que escreve Alexis de Tocqueville, em seu A Democracia na América, sobre as funções da Suprema Corte e a democracia estadunidense.

Nos últimos anos o STF tem participado, cada vez mais incisivamente, da vida política nacional. Isso deveria ser alvissareiro uma vez que — como veremos a seguir — a existência de um Poder Judicial independente que funcione como efetivo garantidor dos direitos fundamentais é um marco definidor de um Estado Democrático de Direito. Vale dizer, em uma democracia constitucional, o Judiciário tende a aparecer mais porque as demandas pela concretização de direitos (civis, políticos e sociais) são efetivamente reconhecidas pelo Estado e a sua proteção cabe, efetivamente, ao guardião da Constituição.

Todavia, em diversos casos, o STF adentra nas veredas da política proferindo decisões que acabam sendo, numa análise rigorosa, estritamente políticas (e, com isso, indiretamente incentiva as demais instâncias a fazerem o mesmo). Um aviso: por certo que o papel de Tribunal guardião da Constituição desempenha uma atividade que, numa perspectiva mais geral, encontra uma justificativa política. Quando afirmo e defendo, a partir de Dworkin e da matriz hermenêutica, a autonomia do direito e a necessidade de que as decisões judiciais sejam decisões de princípios e não de política, não quero — e nunca quis — afirmar uma separação exclusivista entre direito e política. Como afirma Dworkin em seu Levando os direitos a sério, a justificativa mais geral e abrangente para o direito é política uma vez que, dessa justificativa, deriva a “doutrina da responsabilidade política” que rege a jurisdição constitucional. Nos termos da doutrina da responsabilidade política, os juízes têm para si o dever de, no momento da decisão judicial, decidir conforme o direito segundo argumentos de princípios e não argumentos de política.


Repitamos isso, com vagar: argumentos de princípios e não de política! Esse é o ponto fundamental da questão: a responsabilidade política dos juízes se materializa na produção de decisões segundo o direito (na coluna passada, que pode ser acessada aqui, expliquei o que entendo por direito). Insisto: juiz não escolhe; juiz decide! Explicitando melhor: discussões que envolvem projetos futuros, bem-estar social, consequências que resultaram da aplicação do direito em questão, não são decisões que pertencem à esfera do Judiciário, mas que devem ser tomadas pelos meios políticos adequados (legislativos e/ou executivos). No Judiciário devemos levar o direito a sério, decidindo segundo argumentos de princípios.

Assim, é de se perguntar: qual o argumento de princípio que sustenta a decisão exarada pelo Pretório Excelso no julgamento da ADI 4.029/DF que julgava a constitucionalidade da Lei 11.516/2007 resultante da conversão da Medida Provisória 366/2007 que criou o “Instituto Chico Mendes”? Na ocasião, o STF reconheceu que a medida não havia cumprido o que determina o parágrafo 9º do artigo 62 da CF (submissão a uma comissão mista de deputados e senadores para avaliar o cumprimento dos requisitos da urgência e relevância). Na mesma ocasião, verificou-se, ainda, que muitas outras medidas provisórias (estima-se que mais de 400) haviam sido convertidas em lei sem que o parágrafo 9º do artigo 62 tivesse sido observado no decorrer do processo legislativo. Logo, haveria aqui uma enxurrada de leis que tiveram origem pelo procedimento de conversão de medidas provisórias, vigendo entre nós em regime de flagrante inconstitucionalidade formal. A decisão do Supremo Tribunal, apesar de reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 11.516/2007, operou uma modulação de efeitos pro futuro, para que os efeitos da pronúncia de nulidade viessem a ocorrer depois de 24 (vinte e quatro) meses…! A decisão atingiu, ainda, outras tantas leis que tiveram o mesmo vício de procedimento que acometia a lei do instituto Chico Mendes. Nos termos do voto do ministro relator Luiz Fux: “No que atine à não emissão de parecer pela Comissão Mista parlamentar, seria temerário admitir que todas as leis que derivaram de conversão de Medida Provisória e não observaram o disposto no art. 62, § 9º, da Carta Magna, desde a edição da Emenda 32 de 2001, devem ser expurgadas ex tunc do ordenamento jurídico. É inimaginável a quantidade de relações jurídicas que foram e ainda são reguladas por esses diplomas, e que seriam abaladas caso o Judiciário aplique, friamente, a regra da nulidade retroativa”.

Vê-se que, neste caso, o Judiciário decidiu segundo padrões estritamente políticos, a partir de argumentos utilitaristas/consequencialistas. No limite, é possível dizer que a discricionariedade judicial chegou a tal magnitude que, para todos os efeitos, foi suspensa a vigência do parágrafo 9º do artigo 62 (estado de exceção?), na medida em que medidas provisórias convertidas em lei sem sua efetiva observância foram convalidadas pelo referido acórdão, caso em que a Corte se transformou em uma espécie de poder constituinte derivado de fato, alterando formalmente o texto constitucional. Alguém dirá: e querias que o STF fizesse o quê? A resposta é simples: as decisões do STF valem também por seu aspecto simbólico, às vezes mais do que real… O que quero dizer é que os efeitos colaterais desse tipo de decisão podem ser perniciosos à democracia, coisa que, no mínimo, deveria ter sido frisada, com letras garrafais, nos votos dos ministros. Mas, não vi nada disso. Não vi qualquer “blindagem” contra a proliferação do vírus.

Há casos em que a discussão envolve questões de princípios — reconhecimento de direitos — só que os fundamentos lançados pelos ministros em seus votos apontam para o fato de que a decisão foi pautada em argumentos de política e não de princípios. Veja-se o caso da ADI 4.424/DF, que questionava dispositivos da chamada “Lei Maria da Penha”. No caso, o STF alterou – via interpretação conforme a Constituição (na verdade, o correto teria sido utilizar a Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung, ou seja, uma nulidade parcial sem redução de texto) – a ação penal do crime de lesão corporal tutelado pela lei, estabelecendo que, nos casos em que o crime for cometido no âmbito da violência doméstica, a ação penal seria pública incondicionada (e não condicionada à representação, como se previa anteriormente). Nesse caso, não estou preocupado — para efeitos destas reflexões — com o mérito do julgamento (se existia ou não argumentos de princípio a sustentar essa sentença interpretativa da Corte). Preocupa-me, sobremodo, o fato de que, em inúmeros votos, os ministros mencionaram o fato de que as estatísticas sobre a violência doméstica são “alarmantes”, estando a necessitar de um meio mais rigoroso de persecução criminal. Pergunto: manejar estatísticas e planejar ações futuras não seria tarefa pertencente ao âmbito da política legislativa? Seria esse um argumento jurídico suficiente para adicionar um sentido à lei?

Também no emblemático julgamento da ADI 3.510/DF — no interior do qual o atual presidente do tribunal, ministro Carlos Ayres Britto, chegou a afirmar que o STF teria se tornado uma “casa de fazer destinos” — os mais diversos votos enveredaram para a discussão de questões que são alheias à atividade de concretização de direitos que a função contramajoritária da Corte Constitucional comporta. No caso, o próprio voto do ministro relator já citado acima, questiona — numa perspectiva ontológica clássica até — o que é a vida, ou seja, uma espécie de reificação do conceito de vida. Anota-se que, nos termos da CF, os juristas e o Judiciário podem divergir sobre o direito a vida, seu exercício, sua plenitude, etc. Entretanto, parece-me exagerado deixar a uma Corte — composta por 11 ministros — a definição do que seja a vida. Esse tipo de discussão envolve vários atores sociais, de várias especialidades que não podem ser submetidas ao estrito espaço do Poder Judiciário. De se perguntar: se a decisão incorporasse no dispositivo uma definição de vida, esta faria coisa julgada? Estaria a comunidade científica vinculada à definição determinada pelo Judiciário? E poderia, aqui, ainda, apresentar um elenco considerável de questões de política decididas pelo STF. Todos sabem.

O STF não tem culpa de essas questões a ele serem submetidas. Isso é óbvio. O problema é que não conseguimos, ainda, fazer um diagnóstico acerca das razões pelas quais isso vem sendo assim. De certo modo, o STF acaba tendo que atender às demandas de vários segmentos, como que a institucionalizar uma espécie de “coalização político-judiciária”, repetindo, no mínimo como metáfora, o modelo de presidencialismo de coalização do Poder Executivo: veja-se, nesse sentido, os diversos grupos que leva(ra)m as suas reivindicações ao Tribunal Maior — demarcação de terras indígenas, a questão das cotas, a questão do aborto, as questões homoafetivas, embriões, demandas coletivas de saúde, etc. Suas “reivindicações” foram atendidas pelo Judiciário (e não pelo Executivo ou o Legislativo). Há, nisso, porém, um ponto problemático: mesmo atendendo a todas essas demandas, por assim dizer, populares-sociais, a Suprema Corte chega às vésperas do julgamento do Mensalão ainda com problemas que, de um modo ou de outro, arranham a sua legitimidade (discussão sobre rito, pressões acerca da conveniência da data de julgamento, risco de prescrição — este considerado o mais sério problema, além do velho problema, já não relacionado ao processo do Mensalão, decorrente das ações penais originárias, que até hoje resultaram em apenas uma condenação, etc).


Enfim, todas essas questões apontam para um acentuado protagonismo do STF no contexto político atual. Nos termos propostos Ran Hirschl (Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitucionalism), esses exemplos são demonstrativos de que nosso grau de judicialização atingiu a mega política (ou, a política pura, como o autor gosta de mencionar). Por certo que este fenômeno não é uma exclusividade brasileira. Há certa expansão do Poder Judiciário a acontecer, em maior ou menor grau, em um cenário mundial. O próprio Hirschl apresenta situações nas quais as decisões, tradicionalmente tomadas pelos meios políticos, acabaram judicializadas, como no caso da eleição norte-americana envolvendo George W. Bush e Al Gore; a decisão do Tribunal Constitucional Alemão sobre o papel da Alemanha na Comunidade Europeia, e o caráter federativo do Canadá.

Todos esses fatores deveriam produzir uma autorreflexão — uma espécie de catarse — por parte do Poder Judiciário sobre as suas decisões. É por isso que insisto: precisamos desenvolver/implementar uma Teoria da Decisão Judicial. Urgentemente. E, antes que alguém critique a falta de soluções, quero dizer que, em Verdade e Consenso, proponho uma Teoria da Decisão. Esse é o projeto da Teoria do Direito contemporânea que responde à necessidade de se construir anteparos para a autoridade judicante, na perspectiva de tornar mais democrático o Poder Judiciário. Na verdade, a intensidade da judicialização da política (ou de outras dimensões das relações sociais) é a contradição secundária do problema. A grande questão não é o “quanto de judicialização”, mas “o como as questões judicializadas” devem ser decididas. Este é busiles. A Constituição é o alfa e o ômega da ordem jurídica. Ela oferece os marcos que devem pautar as decisões da comunidade política. Uma ofensa à Constituição por parte do Poder Judiciário sempre é mais grave do que qualquer outra desferida por qualquer dos outros Poderes, porque é ao Judiciário que cabe sua guarda.

Nesse contexto, aproveito o ensejo dessa discussão para esclarecer uma dúvida que cerca os leitores de minha obra. Como sintoma, cito um Congresso realizado além-mar, em que um ex-ministro do STF chegou a dizer que minha teoria seria uma “proibição de os juízes interpretarem as leis” (sic). Ora, ora (e ora!). Indago: fosse eu um defensor do positivismo exegético (sintático, primitivo ou paleojuspositivismo — vejam os diversos nomes que essa “coisa” foi adquirindo), não deveria eu, por coerência, defender a PEC 3/2011? Elementar. Claro. E fácil. Afinal, o Legislativo, como no exegetismo francês do século XIX, é que passaria a cuidar da perfeita obediência à “letra da lei”…! Pois, então, que de agora em diante fique bem claro que não há resquícios de exegetismo em minha obra (alguns chegam a me acusar de “originalista” – sic [e sic] – ao modo norte-americano).

Vou deixar isso mais claro, na “forma da lei e da Constituição”. Com efeito, para um exegeta, certamente seria uma tarefa possível de ser levada a cabo pelo Legislativo a análise da validade das decisões judiciais, na medida em que a aplicação seria um processo mecânico, derivado da interpretação que o órgão judicante — previamente — faz do direito legislado. Bastaria identificar em que lugar o Judiciário deixou de proceder mecanicamente para corrigir o “erro” identificado… e, bingo, alterar-se-ia a decisão (nem quero falar aqui do problema da subsunção, na medida em que tem muita gente que ainda acredita que “casos fáceis se resolvem por subsunção” — sic — e “casos difíceis por ponderação” — sic). Todavia, na hermenêutica, sabemos, de há muito (mas de há muito tempo mesmo), que a interpretação é um ato construtivo. No campo hermenêutico, qualquer iniciante que tenha sobrevivido à mediocridade do senso comum, sabe da existência da ultrapassagem da Auslegung (reprodução de sentido) para a Sinngebung (atribuição de sentido). Deriva ela da compreensão, que é um existencial, cuja função é abrir para o intérprete a possibilidade da interpretação.

Sim, não interpretamos para compreender. Ao contrário, compreendemos para interpretar. Também a interpretação não acontece em tiras (as três subtilitas intelligendi, explicandi e aplicandi — estão superadas). Ela se manifesta na applicatio (aplicação). Por isso, fundamentação e decisão são co-pertencentes. Ninguém fundamenta primeiro para depois decidir, simplesmente porque, no momento em que decide, já aconteceu a fundamentação. Esse é o círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel), que quer dizer que, de algum modo, o intérprete sempre está à frente de si mesmo, porque a sua condição de existente antecipa sentidos. Definitivamente, a interpretação não é um ato de vontade. Mas, não é mesmo. A partir da hermenêutica, enfim, da Crítica Hermenêutica do Direito, nem de longe é possível dizer isso.

Sigo. O “controle” das decisões é um controle que se opera hermeneuticamente. Aquele que interpreta deve (de)mo(n)strar que sua construção é a melhor segundo o direito da comunidade política. Aqueles que são destinatários da interpretação, por sua vez, têm o dever de questioná-la, apontando os fracos argumentos e as construções mal alicerçadas. Essa é a tarefa que venho chamando, há algum tempo, de “constrangimento epistemológico”, cujo ator jurídico fundamental é a Doutrina. Por isso que, em hipótese alguma, podemos admitir uma doutrina que, diante das decisões dos mais diversos tribunais, assume uma postura de “imparcialidade”, apenas descrevendo as posições que estão na última moda, sem questionar, na sua raiz, os argumentos apresentados pelo Poder Judiciário — na verdade, isso nem é imparcialidade; é, sim, servilismo! Sendo mais claro: a doutrina deve doutrinar!

Outro ponto absolutamente fundamental desse controle hermenêutico das decisões é a exigência de que elas sejam proferidas de forma consistente, segundo critérios de integridade da jurisprudência. É absolutamente inadmissível que, em um dia, o STJ entenda (defina?) o princípio da insuficiência de um modo (negando REsp em um caso de furto de R$ 84) e, não muito depois, explicite-o de outro modo (trancando, via Habeas Corpus, uma ação penal em uma sonegação de tributos de mais de R$ 3 mil); ou que uma Turma daquela Corte afirme a validade do artigo 212 do CPP e outra a negue, sem qualquer menção à jurisdição constitucional. Como é possível que um tribunal negue a validade de uma lei votada democraticamente sem utilizar — e fixo-me na questão do princípio-sistema acusatório — uma argumentação constitucional? Trata-se de uma exigência de equanimidade (fairness, como quer Dworkin), no sentido de que todos os cidadãos recebam tratamento igualitário quando buscarem a tutela jurisdicional. É o mínimo que se quer em uma democracia.

E como se faz isso? Trabalhando com algo que se chama de “Teoria da Decisão”. Nesse sentido, permito-me aqui, mais uma vez — até porque aqui não há espaço para desenvolver amiúde uma questão tão complexa[2] — remeter os leitores interessados nesta discussão para o meu Verdade e Consenso, assim como para livros como Decisão Judicial e o Conceito de Princípio, de Rafael Tomaz de Oliveira, Levando o Direito a Sério, de Francisco Borges Motta, Crítica à Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro, de Mauricio Ramires, Fundamentos para uma Compreensão Hermenêutica do Processo Civil, de Adalberto Narciso Hommerding, Elementos de uma Teoria da Decisão Judicial, de Orlando Faccini Neto e Hermenêutica Jurídica Heterorreflexiva, de Walber Araujo Carneiro, todos críticos em relação ao ativismo e à discricionariedade, demonstrando uma preocupação com o controle das decisões judiciais, a partir daquilo que hoje é chamado de CrÍtica Hermenêutica do Direito.


Por isso tudo, é preciso separar alho de bugalhos. Se é certo que a atividade jurisdicional deve ser exercida segundo uma rigorosa fundamentação e se é certo que é necessário problematizarmos, pela via da teoria do direito, os limites interpretativos de modo a construir anteparos para a atividade jurisdicional, também é igualmente verdadeiro que esses limites não podem — de forma alguma — ser feitos por um outro Poder da República, como que a repristinar um perigoso “controle político” do poder judiciário, como o constante no art. 96 da Constituição de 1937 (a nossa “polaca”). O relevante controle das decisões judiciais — que, registre-se, é uma necessidade democrática — deve ser hermenêutico e de forma alguma poderá ser aceito um controle político das decisões.

Voltemos a Cícero: Historia magistra vitae. A experiência do constitucionalismo — que é um processo histórico com raízes no século XI, permeado de lutas sociais e teóricas — nos legou muitas coisas: a independência do Parlamento, as limitações ao poder do Rei e a definição de Estado de Direito (Rechtstaat), são algumas dessas importantes contribuições. Esse mesmo processo histórico — e, insisto nisso, o constitucionalismo é essencialmente histórico — ofereceu um reforço que acentuou ainda mais a ideia de Estado de Direito, a partir da afirmação de um Estado Constitucional (Verfassungstaat). Quando falamos em limitação do poder e democracia, um grande ensinamento do passado nos diz que o elemento central, para o Estado de Direito (ou, se preferirem, Estado Constitucional) é exatamente a independência do Poder Judiciário.

Sim, a independência do Poder Judiciário é uma conquista democrática. Parece óbvio isso, mas há que se comunicar esse óbvio ao Parlamento. Conquista, sim, porque não foi o resultado de uma autorização cartorial. Muito mais do que isso, por oito séculos a humanidade lutou para construir os mecanismos de limitação de poder com os quais hoje estamos habituados. Para enfrentarmos os perigos de um governo dos juízes ou de uma juristocracia, precisamos de uma consistente teoria do direito e agentes jurídicos aptos a trabalharem na construção de bons argumentos e na desconstrução dos argumentos ruins.

Sendo bem mais claro: em hipótese alguma, a juristocracia pode ser vencida pela instituição de uma espécie tardia de Polizeistaat. Nesse caso, o problema apenas mudaria de endereço na praça dos três poderes: do Poder Judiciário em direção ao Congresso Nacional. Ou seja, se o ativismo do Poder Judiciário se mostra perigoso ao ponto de o Poder Legislativo pretender limitá-lo via EC 3, não é a simples transferência do polo de tensão para o Poder Legislativo que resolverá a “questão da democracia”. Ao fim e ao cabo, a PEC 3, apontando de volta para o século XIX, não merece mais do que uma onomatopéia que é dita pressionando a língua entre os dentes.

Numa palavra final: para resolver os problemas do ativismo judicial, da vontade de poder (Wille zur Macht) ou do voluntarismo, não precisamos voltar ao hermetismo do século XIX, como querem os parlamentares que aprova(ra)m a PEC 3 na CCJ. Para tirar a água suja, há que se cuidar para não jogar a criança junto… E nem vamos resolver o problema da traição tirando o sofá da sala… Não podemos nos comportar como o sujeito que, tendo perdido o relógio, pôs-se a procurá-lo debaixo de um poste de luz, longe do lugar da perda…porque ali era mais fácil!

Podemos fazer melhor do que isso. Mas, para tanto, necessitamos, primeiro, entender que o direito é um fenômeno complexo (insisto, pois, na luta contra os “simplificadores” e os adeptos de argumentos prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler). Para isso, temos que estudar o processo histórico e como se forjou o positivismo, respondendo perguntas como “o que é isto, um paradigma”, “o que é isto, a autonomia do direito”, “o que é isto, o solipsismo judicial”, “o que é isto, o discricionarismo”… E, assim, entender que a pretensão de controlar as decisões a partir de uma teoria da decisão, não é, nem de longe, proibir a interpretação… Autores que dedicaram a vida a estudar esse fenômeno e a criticar o solipsismo (graças ao qual se espalha o mantra de que “sentença vem de sentire” e que a decisão é um ato de vontade), como Dworkin, Habermas, Gadamer, Luhmann, para falar apenas destes, não podem ser tidos como ingênuos, imbecis, mal-intencionados, autoritários ou, quiçá, “conspiradores contra a independência do poder judicial”… Em alguma coisa essa gente está(va) certa, pois não? E não consta que o direito esteja blindado às teorias sofisticadas como a desses autores (na verdade, o que há de melhor em termos de teoria do direito passa, indubitavelmente, por esses autores). Peço, pois, que lhes sejam dadas ao menos algumas migalhas de vossa confiança. Sim, peço um crédito de confiança. Não a mim, mas a eles!

[1] Sugiro, desde logo, Fogo Morto, de José Lins do Rego.

[2] Um esclarecimento de caráter universal para o sentido do limite e o limite do sentido desta Coluna: não tenho a pretensão de detalhar soluções dos problemas que aponto. A Coluna não se destina a ser a extensão de uma sala de aula. As indicações de leitura que faço são exatamente para suprir essa (inexorável) lacuna. Outra coisa: ela, a Coluna, tem o nome de “senso incomum” e não “senso comum”. Portanto, que o leitor não espere que a Coluna resolva questões de concurso público… Na verdade, a Coluna serve para criticar esse imaginário prêt-à-porter que se formou no ensino jurídico e nas práticas jurídicas. Por isso, em breve dedicarei uma Coluna para falar sobre o “senso comum” e imaginário dos juristas.

 

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!