Leis injustas

Direito de Estado ou Direito de juristas?

Autor

  • Kelly Susane Alflen

    é advogada doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade do Porto (Portugal) e professora da Faculdade de Direito de Santa Maria (RS).

30 de maio de 2012, 5h48

Antes de tudo, o imperativo: sê pessoa e respeita os outros como pessoas!

Nesse sentido pode ser compreendida a afirmação de todo Direito e de sua indispensabilidade. Numa paráfrase à concludente Hannad Arendt, último e verdadeiramente fundamental direito do homem é, afinal, o “direito ao direito”. Assim sendo, o Direito só concorre para a epifania da pessoa se o homem logra culturalmente a virtude para esse fundamental direito.

Só que, se a decorrência é essa, poderá se dizer: sentido e condições difíceis! De fato!

Mas nos parece que o mais nobre é sempre o mais difícil. E, como apelante tarefa para além das palavras (sentido), estas, sobretudo, significam algo. Porém, a vida, nas suas últimas exigências em que verdadeiramente se é, está para além delas. Mas essa é uma concepção! Uma outra é acentuada dentre pensadores medievais como Ockam, para o qual o Direito não corresponde a esse fundamento intrínseco. É, em vez disso, produto de uma potestas. Como assim é, portanto, o legislador quem determina o direito e, também, o anti-direito. Essas são duas concepções contrapostas, desde os fatores que lhes são originários e determinantes.

A primeira concepção se dispõe a um direito prudencial — em que o Direito se desvela pela autoridade do “prudens” que diferencia o justo do injusto — ; a segunda, tem o seu ponto angular na potestas a partir da qual podem decorrer todas as normas e, por consectário, a própria configuração da ordem jurídica. Diante disso, pode-se inferir, muito sinteticamente, que a contraposição dessas concepções é a própria contraposição da consideração do Direito como expressão cultural à consideração do Direito como manifestação política. Com o prevalecimento da segunda concepção, desde a Idade Média, não surpreende que o Direito tenha passado a existir apenas no Estado e para o Estado. Não surpreende que o jurista tenha deixado de ser prudens — conditor iuris — para se converter num servil aplicador da lei.

É deste modo que, se por um lado, as atividades interpretativas foram formalmente limitadas ao jurista, por outro lado, ocasionou-se a progressão da política como elemento necessário à própria compreensão do que seja Direito. É deste modo, também, que, aos poucos,  brocardos como na clareza da lei cessa a interpretação e dura lex sed lex tiveram constância tal ao ponto de uma proibição da interpretação das leis (v.g., o A .I.R. prussiano, além de tantos outros exemplos possíveis). Destarte, não é nem um pouco incompreensível como actualmente a prudência — enquanto prudência dos juristas, que deliberava sobre o justo e o injusto — tenha passado a significar a pletora das atividades dos tribunais.

A propósito de se aludir mais, se considerada a circunstância reminiscente de um Estado liberal ou, mesmo, iluminista, também não é incompreensível a concepção da atividade judicial como tão só observância cega pensante da atividade legislativa. Portanto, o juiz tem de ser mais do que apenas um his master voice (ditor da lei)!

Mas é na II Guerra Mundial que se encontra um exemplo elucidativo para se colocar em questão a suficiência do Estado, já que evidencia a insuficiência da autoridade (poder) política para determinar o Direito. Ao passo que os Estados alemães que sucederam ao III Reich postularam a existência de um dever de desobediência em relação à ordem jurídica antecedente, portanto, de uma legítima resistência aos preceitos considerados delituosos, os tribunais desses Estados não só desconsideraram uma tal alegação como também a alegação de uma atuação sob estado de necessidade. Nesse sentido não só os atos praticados foram considerados ilícitos como as ordens concretas e mesmo os preceitos abstratos. Os julgadores que os aplicaram foram responsabilizados criminalmente.

Vê-se, pois, que se uma dada lei é expressão da vontade geral ou, em outros termos, de um corpus político, in abstrato, não poderia se contar com leis injustas, porque ninguém é injusto para consigo próprio. Todavia, quando a lei é colocada em causa, o tribunal é chamado a dizer o que designadamente é direito. Neste ponto, a resposta já não tem condição de ser proporcionada pelo Direito de Estado, porque quando o Direito de Estado se coloca acima de todos os integrantes da sociedade, já está colocado o temor. A resposta, aqui, tem de ser colocada pelo cultor iuris: o jurista. Portanto, saber se a ordem jurídica é justa ou injusta é uma questão para juristas, devendo ser, inclusivamente, o juiz, bem mais do que um his master voice, eis que na construcção jurisprudencial que se realiza o Direito vivo se dá vida aos direitos.

Além disso, a própria lei só pode de algum modo conter Direito se sufragada pela opinião comum. Deste modo, a impugnação de uma norma ou ordem jurídica pelos juristas retira-lhe toda a possibilidade de se apresentar senão como expressão de uma potestas. Num momento em que se encontra uma verdadeira sorte de mortificação espiritual da Ciência Jurídica, somente uma degenerescência do legalista e uma regeneração do jurista possibilitará uma optmização necessária ao direito com vistas à concretização do desiderato da Justiça em vez de ser serventuário da política.

Evidentemente, a problemática não tem só um caráter exemplar histórico, mas, conduz à interrogação de se uma ordem jurídica pode ser elevada pelo reconhecimento dos juristas como fator de legitimação dela quando o poder político  tantas vezes lhes subjuga. Em face de tudo isso, há de se pensar o essencial: primeiro sê pessoa!"

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