Licença para matar

Leis com efeitos indesejáveis preocupam americanos

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28 de maio de 2012, 10h30

A Flórida criou a receita que dá a qualquer cidadão uma licença para matar. Desde que tudo seja feito da maneira certa, não há risco de processo criminal e nem mesmo de o cidadão ser levado pela Polícia para a cadeia. Basta explicar aos policiais que atirou na vítima porque sentiu medo de perder a vida ou de ser gravemente ferido, em decorrência de um confronto, por qualquer razão, em qualquer lugar. E invocar a proteção da lei Stand your Ground (Não ceda terreno), que substituiu a doutrina da legítima defesa pela doutrina do "homicídio justificável". A lei retirou a obrigação de o cidadão tentar se retirar e evitar o uso de "força letal". 

O diretor-executivo da "Coalisão da Flórida para Parar a Violência com Arma", Arthur Hayhoe, explicou a receita ao jornal USA Today: para escapar da Justiça, basta confrontar a vítima em um lugar ou em um momento em que não haja testemunhas. Depois, provocar o confronto e esperar que o outro ataque ou pelo menos tente se defender. Se ela tiver alguma coisa na mão, melhor ainda. Ajuda a mostrar que o perigo existia. Atire para matar. "A ironia dessa situação é que é preciso matar, para se safar de uma investigação criminal", disse a professora da Faculdade de Direito de Savannah Elizabeth Megale. Se não há testemunhas, é uma palavra contra a outra. Mortos não falam. Muitas vezes, o agressor acaba preso quando a vítima não morre", declarou. 

A National Rifle Association (NFA), a associação americana que reúne os fabricantes de armas dos EUA e que conseguiu convencer políticos da Flórida a aprovar a lei Stand your Ground, se encarregou de levá-la a outros estados. No todo, 24 estados adotaram a lei. E, em todos os eles, os americanos estão se debatendo com o monstro que criaram. A lei impede, na maioria dos casos, a ação da Polícia, que teme ser processada se abrir investigação criminal ou, pior, colocar na cadeia um assassino que invoca a proteção dessa lei. Inibe a ação dos promotores, que não podem processar um criminoso que alega estar protegido por essa lei. E obriga juízes a rejeitarem ações criminais, antes que elas se iniciem, quando a denúncia é feita. 

A justificativa para a criação dessa lei foi a de que ela inibiria crimes, como assaltos, porque os criminosos saberiam que os cidadãos poderiam estar armados e poderiam reagir com tiros. Mas o efeito foi diverso. Enquanto não se tem notícia de assaltantes tenham sido contidos, amontoam-se os casos de criminosos que escapam da Justiça, porque mataram com a licença que a lei lhe concedeu. 

Mãos atadas
Membros do Judiciário americano e juristas também se queixam das leis que criaram um sistema exageradamente duro de fixação de sentenças. E ainda das leis que permitem aos promotores negociarem com os réus e seus advogados a confissão de culpa, em troca de uma pena menor. Essas leis transferem o poder de fixação de penas dos juízes ou dos jurados para os promotores. E os juízes ficam de mãos atadas. 

De acordo com o jornal The New York Times, apenas um, em cada 40 casos criminais, realmente chega ao tribunal do júri. Assim, 39 réus em 40 preferem aceitar a pena proposta pelos promotores, em vez de correr o risco de ser sentenciado a penas muito altas, preestabelecidas em lei. Nesses casos, quem realmente decide que sentenças devem ser dadas aos réus são os promotores, reclamam os juízes. Ao juiz, cabe apenas referendá-las. Em 1970, quando se fez o primeiro registro oficial desse tipo de acordo, essa relação foi de 1/12. 

Essas situações, em muitos casos, estão atadas a leis que estabelecem penas mínimas para determinados tipos de crime. Recentemente, uma mulher negra, também da Flórida, foi sentenciada a 20 anos de prisão porque deu um tiro de advertência, contra a parede, para assustar o ex-marido que, segundo ela, a ameaçava. Ela recusou um acordo proposto pela promotoria de pegar apenas três anos de cadeia, em troca da confissão de culpa, por se considerar inocente e por não querer seu nome comprometido por uma condenação judicial. 

Ela não foi beneficiada pela lei Stand your ground, porque não matou o marido. Vivo, ele foi ao tribunal do júri e testemunhou contra ela. Com a ajuda dele, a Promotoria convenceu os jurados de que ela foi a parte agressiva na história. Ela foi condenada por "agressão com circunstâncias agravantes pelo uso de arma fatal". Pena mínima predeterminada pela lei: 20 anos de prisão. De mãos atadas pela lei, o juiz sequer pode levar em consideração circunstâncias atenuantes ou fixar uma pena proporcional a sua avaliação da gravidade do crime. Acabou, de certa forma, pedindo desculpas à ré, ao dizer que, infelizmente, não poderia fazer o que muita gente lhe pediu para fazer e o que ele faria: aplicar uma pena bem mais branda. "O Legislativo me negou o arbítrio para decidir sobre a sentença", declarou. 

A justificativa para a criação dessas leis, que estabelecem penas de prisão extremamente altas, foi a de coibir a criminalidade. E, se crimes são cometidos e descobertos, as leis podem desestimular longos julgamentos no tribunal do júri, ao dar poder de negociação à Promotoria, que oferece uma pena muito menor em troca da confissão de culpa, encerrando-se o caso com a anuência do juiz. Elas não coibiram a criminalidade, mas esvaziaram os tribunais. No entanto, a negociação da pena é um benefício que favorece as pessoas que realmente cometeram crimes, que aceitam de pronto a oferta da Promotoria, e prejudicam as inocentes, que se recusam a confessar crimes que não cometeram. Muitas vezes, elas vão ao julgamento, são condenadas, e pegam penas exageradamente altas.

A lei que mais incomoda toda a comunidade jurídica americana, no entanto, é a que estabelece pena de prisão perpétua para crianças e adolescentes que são condenados por crimes de morte e alguns outros tipos de crime grave, como o de estupro. A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, recentemente, que essa lei tem de ser revista. A corte aceitou avaliar o caso de um menino negro que, aos 11 anos, foi considerado culpado por participar de um assalto em uma loja, que terminou com o assassinato de uma funcionária. 

Na verdade, o menino ficou do lado de fora da loja, quando seus dois amigos adolescentes entraram e tentaram roubar um CD. A funcionária percebeu, pegou o telefone para chamar a Polícia. Um dos adolescentes atirou nela. Os jurados consideram que o menino participara do assalto, dando cobertura, do lado de fora, à dupla que entrou na loja. Condenado por um crime, que envolveu um assassinato, o juiz foi obrigado a fixar a pena estabelecida pela lei: prisão perpétua. Ele tem 17 anos, agora. 

Essa lei já foi amenizada pela Suprema Corte dos EUA. Antes, em alguns estados, a lei previa pena de morte para os menores. A Suprema Corte desautorizou a aplicação da pena capital e, agora, quer que ela seja revista, para ser colocada dentro do razoável — e dar poder aos juízes para avaliar o caso dentro de seu contexto real e examinar circunstâncias agravantes ou atenuantes.

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