Segunda Leitura

A globalização impõe novo conceito de soberania

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

27 de maio de 2012, 11h19

Coluna Vladimir [Spacca]Spacca" data-GUID="coluna-vladimir.png">Vivemos momento único na história da humanidade, ou seja, a concretização da aldeia global de que falava Marshall McLuhan na obra A Galáxia de Gutenberg. Correntes migratórias de refugiados políticos ou ambientais avançam sobre países desenvolvidos. Executivos moram em um continente e trabalham em outro. A internet não respeita fronteiras e um jovem boliviano se veste e se comporta da mesma forma que um ucraniano.

Neste novo desenho dos povos, em que um padrão internacional a todos aproxima, as regras de jurisdição dos países precisam ser reestudadas, adaptando-se aos novos tempos. Vejamos.

Na esfera penal, se um brasileiro cometer um crime no exterior, independentemente da competência da Justiça do país em que se encontre, aqui também poderá ser processado e julgado (Código Penal, artigo 7º, inciso II, alínea “b”). A competência será do juiz da capital do estado onde ele residia (Código de Processo Penal, artigo 88). Se assim é, torna-se imprescindível que a Polícia seja dotada de estrutura adequada e que a investigação dispense qualquer interferência do Judiciário e as demoradas rogatórias. Neste sentido, a Lei 9.605,98, que trata dos Crimes Ambientais, deu o primeiro passo (artigo 77).

Em situação oposta, se um estrangeiro aqui comete um crime, responderá como um brasileiro, no Juízo competente, federal ou estadual. Exceção à regra é dos agentes diplomáticos, ou seja, o embaixador, cônsul, os familiares que com ele vivam, que gozam de imunidade da jurisdição brasileira (artigos 29, inciso I e 37, ns. 1 e 2 da Convenção de Viena, celebrada em 18 de abril de 1961, aprovada pelo Decreto Legislativo 6/1967.). Contudo, não gozam de imunidade os criados particulares (artigo 37, n. 4) ou os cônsules honorários, que não pertencem ao quadro de carreira do Ministério de Relações Exteriores.

Na área criminal, a grande inovação foi dada pela Convenção de Palermo (2002), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015/2004, que permite, nos casos de criminalidade organizada internacional, que diversas medidas sejam tomadas a título de cooperação, diretamente entre os juízos ou tribunais, independentemente de rogatória (por exemplo, tomada de depoimentos, artigo 18, item 3, alínea “a”).

Na esfera administrativa, merece especial atenção o antigo Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815, de 1980, época do regime militar. O estrangeiro poderá sofrer sanção administrativa de deportação caso esteja em situação irregular (artigo 67/1974) ou expulsão, caso atente contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública, economia popular ou tiver procedimento que o torne nocivo ou inconveniente aos interesses nacionais (artigos 65 a 75).

Ora, é preciso que o Estatuto do Estrangeiro seja atualizado, adaptando-se à nova realidade, abandonando o viés da segurança nacional típico do tempo do regime militar. A situação e os problemas são outros. Há uma intensa movimentação nas zonas de fronteira, fruto de relações interpessoais que se consolidam. Há situações outrora não previstas, como a dos imigrantes do Haiti. E há também milhares de clandestinos trabalhando em condições precárias, principalmente em São Paulo, vítimas de sua própria condição de ilegais.

Do ponto de vista civil, persiste a importância da antiga Lei de Introdução ao Código Civil de 1942. Assim, um contrato cuja obrigação deva ser cumprida no Brasil rege-se pela nossa legislação, e a sucessão, pela lei do país do finado (LICC, artigos 9º e 10). As inovações, todavia, surgem na forma dos contratos, por exemplo, via mensagens eletrônicas.

Ainda sobre os agentes diplomáticos, registre-se que eles gozam também de imunidade civil, com exceção das ações que versem sobre direitos reais sobre imóvel, sucessórias, envolvendo profissão liberal ou atividade comercial (artigo 31, inciso I, alíneas “a”, “b” e “c” da Convenção de Viena).

Vejamos agora a execução das decisões judiciais.

No crime, a execução da pena pode ser cumprida no país do condenado, desde que haja Tratado. No dia 8 de março passado, paraguaias, presas em Foz do Iguaçu, foram autorizadas a cumprir a pena em seu país. O estrangeiro condenado poderá ser expulso por decreto do presidente da República, antes mesmo de cumprida a pena.

No cível, a competência do Juízo estrangeiro para execução pode ser uma barreira intransponível à maior parte de brasileiros. A rigor, cartas rogatórias devem ser expedidas na forma do artigo 210 do CPC, ou seja, no idioma do país a que se dirigem, com versão feita por tradutor juramentado, remessa ao Ministério da Justiça, que verá de sua conformidade e as enviará ao ministério das Relações Exteriores, daí para o equivalente do país rogado e depois ao Juízo competente, segundo as regras locais.

Fácil é ver que se trata de medida cara, complexa e que dificulta o acesso à Justiça. Por isso, em cidades limítrofes, o juiz brasileiro poderá tentar simplificar esse procedimento protocolar. É o caso do Oiapoque (Amapá com Guiana Francesa), Tabatinga (Amazonas com Colômbia), Guajará-Mirim (Rondônia com Bolívia), Foz do Iguaçu (Paraná com Argentina e Paraguai) e Santana do Livramento (Rio Grande do Sul com Uruguai). Em locais como estes, o juiz deve tentar, por meio de acordos com os colegas do exterior, atento às peculiaridades locais, estabelecer regras que facilitem a execução dos atos mais simples (por exemplo, convite para a testemunha estrangeira vir depor em audiência) — vide a respeito artigo de Ricardo Pippi, Rev. Ciências Jurídicas, ULBRA, v.1, n. 2, pgs. 243/244.

Em que pesem as dificuldades naturais, as regras de processo vêm avançando. Por exemplo, o Protocolo de São Luiz, Argentina, promulgado pelo Decreto 1.901/1996, permite que nas ações de responsabilidade civil por acidentes de trânsito o autor escolha o foro do local do acidente, do seu domicílio ou do demandado (artigo 7º). O Protocolo de Ouro Preto (Brasil), em 1994, tentou dispensar Rogatórias nos casos de medidas cautelares e execuções. Todavia, o STF entendeu ser imprescindível a promulgação do Tratado (ministro Celso de Mello, Carta Rogatória nº 8.279, Argentina, 4 de maio de 1998). A Emenda Constitucional 45/2004, transferiu do STF para o STJ, tribunal menos congestionado, a competência para homologar rogatórias.

Vê-se de todo o exposto que, diante da nova realidade internacional, cabe ao intérprete, principalmente ao Poder Judiciário nas suas decisões, flexibilizar a soberania nacional, a fim de assegurar a efetividade da Justiça.

Em suma, como afirma a professora Juliana Jota, “não ocorre o menosprezo ao princípio da soberania estatal; ocorre, todavia, a mitigação de sua densidade axiológica, não mais configurada como prioridade para o Estado e respectiva sociedade” (A Soberania Nacional e a Proteção Ambiental Internacional, Ed. Verbatim, p. 105).

Ao futuro.

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