20 anos no STJ

Asfor Rocha, o ministro que mais conhece o STJ

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21 de maio de 2012, 14h36

Spacca
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça elegeu, na semana passada, seu decano, o ministro Cesar Asfor Rocha, como diretor da ouvidoria do tribunal. A escolha coroa a carreira, do ministro que melhor conhece o STJ, como atestam seus próprios colegas. É também o ministro que mais tempo dedicou ao chamado Tribunal da Cidadania: nesta terça-feira (22/5), ele completa 20 anos de STJ.

Asfor Rocha é um articulador hábil, obcecado por gestão e tecnologia. Em sua passagem pela Presidência do STJ, entre setembro de 2008 e setembro de 2010, colocou a habilidade à serviço da obsessão e conseguiu vencer um dos maiores tabus do Poder Judiciário: a resistência à informatização dos processos (O processo digital e a gestão de Asfor Rocha são temas de um texto que será publicado nesta terça-feira na ConJur).

De maio de 1992, quando tomou posse como ministro do STJ, até esta data, Asfor Rocha decidiu, apenas como relator, 140 mil processos, dos quais quatro mil no TSE e quase três mil no Conselho Nacional de Justiça, onde também atuou como corregedor. Como vogal na turma julgadora, participou do julgamento de cerca de 700 mil processos.

Dentre eles, alguns que o deixaram “com o coração sangrando”, como afirma o ministro ao falar da decisão em que mandou instaurar processo contra seu colega de STJ, Paulo Medina, quando ocupava o cargo de corregedor nacional de Justiça no CNJ. O colega, acusado de venda de sentenças, acabou punido com a aposentadoria compulsória.

Foi no cargo de corregedor do CNJ que Asfor Rocha agiu para conseguir uma das decisões que mais lhe trouxe satisfação pessoal em seus 20 anos de carreira. Em dezembro de 2007, três dias antes do Natal, ele entrou em ação para que um inocente preso injustamente pudesse passar as festas de fim de ano com a família.

Vítima da burocracia

Em 1999, o caminhoneiro Aparecido Ferreira Batista perdeu todos os seus documentos em Uberlândia, Minas Gerais. Os papéis chegaram ás mãos de falsários que os usaram para cometer os mais diversos tipos de crime usando o nome de Batista. Acusado de roubo de cargas em Pernambuco, estado onde nunca havia posto os pés em sua vida, o caminhoneiro já estava preso havia 60 dias, quando chegou o Natal.

Desde que perdeu os documentos, Batista estava acostumado a ter de confrontar acusações injustas. Diante das cartas de cobrança que recebia de lojas do país inteiro, ele teve de apresentar inúmeras vezes o Boletim de Ocorrência em que registrou a perda dos documentos, para provar que ele também era vítima. Em 2000, apareceu como réu em dois processos em Pernambuco, nos quais era acusado de roubo de cargas. Em 2001, apareceu outra ação com a mesma acusação no mesmo estado. A empresa em que trabalhava contratou a defesa, depois de constatar que no dia do crime ele estava voltando de Brasília para São Paulo.

Toda a história do caminhoneiro foi contada pelo Jornal do SBT, na madrugada de sexta-feira, 21 de dezembro. Depois de tanto azar, o caminhoneiro teve a sorte de o ministro Cesar Asfor Rocha estar diante da televisão e não se conformar com a história. Um dia antes de o programa ir ao ar, a defesa de Batista conseguira um Habeas Corpus em seu favor que lhe garantiria passar o Natal em liberdade. Para que isso acontecesse, porém, era preciso que o juiz da comarca de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife, encaminhasse cópia do alvará de soltura ao juiz de São Paulo, o que só deveria acontecer depois do dia 10 de janeiro de 2008, quando ele voltasse do recesso de fim de ano.

Inconformado com a situação, na manhã do dia seguinte, Asfor Rocha ligou para o corregedor de Justiça de Pernambuco, para o corregedor de Justiça de São Paulo e diversas outras pessoas. Tirou muita gente da cama. O desembargador pernambucano foi até o Fórum e conseguiu encontrar o processo. Descobriu que o alvará já tinha sido expedido, mas não chegara a Santa Bárbara d’Oeste, cidade do interior paulista onde o caminhoneiro estava preso. Por fax, o ministro Asfor Rocha recebeu uma cópia e encaminhou ao Fórum da cidade. O corregedor de São Paulo encontrou o juiz da comarca e fez cumprir a decisão.

Batista estava preso desde 22 de outubro em Santa Bárbara d’Oeste (SP), na região de Campinas. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Recife já estava na luta pela liberdade do caminhoneiro. Um simples ato processual estava impedindo que o caminhoneiro fosse libertado. “Embora eu reconheça que este não seja um caso isolado no país, me chamou atenção por ser uma pessoa que tem direito à liberdade e continua presa por um ato de burocracia processual”, contou o ministro, na ocasião, pouco antes de ir comemorar o Natal e a passagem de mais um ano em paz, com a família. Assim como Batista, o caminhoneiro.

Fim da farra

Assessoria de Imprensa/TJSP
No TSE, um dos principais precedentes fixados pelo ministro Asfor Rocha fez o tribunal rever sua jurisprudência e acabar com a farra de candidatos a cargos eletivos que concorriam mesmo com as contas de suas administrações anteriores rejeitadas. Pela Súmula 1 do TSE, vigente na ocasião, bastava ao candidato ajuizar um processo contestando a rejeição de contas para garantir o registro da candidatura. 

Por seis votos a um, o tribunal reinterpretou sua própria jurisprudência provocado por voto do ministro, que era corregedor-geral da Justiça Eleitoral naquela altura. Desde aquela decisão, para conseguir o registro, o ex-prefeito ou ex-governador com as contas rejeitadas tem de obter a suspensão da decisão administrativa na Justiça comum, ou a Justiça Eleitoral deve reconhecer a idoneidade da ação que contesta a decisão do Tribunal de Contas.

O TSE mudou a orientação ao julgar o registro de um ex-prefeito, candidato a deputado estadual, que teve as contas rejeitadas em agosto de 2003 e dezembro de 2004, mas só contestou a rejeição um dia antes do fim do prazo legal para requerer o registro da candidatura. Não pôde concorrer. 

Ainda na esfera eleitoral, a decisão do Supremo Tribunal Federal que institui a fidelidade partidária pela via judicial, por exemplo, nasceu de um voto do ministro Asfor Rocha, no começo de 2007. Foi ele quem relatou a Consulta que proibiu o troca-troca de partidos no TSE e levou as legendas ao Supremo para pedir de volta o mandato dos infiéis. O STF não devolveu os mandatos, mas determinou que a partir da decisão do TSE só poderia trocar de partido quem tivesse bons motivos para isso. 

Denúncia anônima

Apesar de hoje compor a 2ª Turma do STJ, uma das mais recentes vitórias jurídicas de Asfor Rocha veio da 6ª Turma do tribunal, no ano passado. Em abril de 2011, por três votos a um, os ministros decidiram que denúncias anônimas não podem servir de base exclusiva para que a Justiça autorize a quebra de sigilo de dados de qualquer espécie. Com esse fundamento, decidiu-se que todas as provas obtidas na operação Castelo de Areia a partir da quebra generalizada do sigilo de dados telefônicos são ilegais. 

Em 14 de janeiro de 2010, o ministro, responsável por decidir todas as questões urgentes durante o recesso forense, recebeu pedido de Habeas Corpus que dava conta de um processo penal instaurado exclusivamente a partir de denúncia anônima, em que o juiz de primeira instância havia determinado a quebra de sigilo telefônico dos acusados sem qualquer apuração prévia da denúncia apócrifa. Com base na jurisprudência do STJ, Asfor Rocha suspendeu o andamento da ação penal. 

Em sua decisão, o ministro registrou que “o sistema jurídico do País e o seu ordenamento positivo não aceitam que o escrito anônimo possa, em linha de princípio e por si, isoladamente considerado, justificar a imediata instauração da persecutio criminis, porquanto a Constituição proscreve o anonimato (artigo 5º, IV), daí resultando o inegável desvalor jurídico de qualquer ato oficial de qualquer agente estatal que repouse o seu fundamento sobre comunicação anônima”. 

A decisão trouxe precedentes do Supremo Tribunal Federal e do próprio STJ no mesmo sentido: não se pode devassar a vida de cidadãos a partir de denúncias anônimas. Como observou o então presidente do STJ, a decisão de primeiro grau, do juiz Fausto De Sanctis, “excepciona, anula e afasta os sigilos assegurados na Carta Magna, que decorrem de conquistas civilizatórias, por isso mesmo que é diretriz uniforme da jurisprudência das Cortes e das lições da doutrina jurídica a sua exigência impostergável a não tolerar que o afastamento daquelas garantias se faça de modo banal ou simples, calcada apenas, por exemplo, na comodidade da coleta de indícios ou produção de provas”. 

Quatro dias depois, a decisão mereceu um editorial do jornal O Estado de S.Paulo intitulado Lição de Direito. No texto do diário paulista, “ao fazer críticas contundentes aos desmandos cometidos pelo titular da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, que é o atual porta-voz dos ‘juízes ativistas’, o ministro Cesar Rocha foi além de enquadrar quem usa a toga para fazer política. Ele deu uma verdadeira lição de Direito, reafirmando as garantias fundamentais, as liberdades públicas e a isenção da Justiça”. 

Meses depois, quando o nome do ministro estava cotado para o Supremo na vaga do ministro Eros Grau, que havia se aposentado, a decisão foi reavivada pela imprensa e bastante criticada. A insinuação era a de que a liminar só havia sido concedida porque um dos advogados dos investigados, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, apoiava o nome de Asfor Rocha para o STF. 

No STJ, ministros mostraram-se indignados. Nas conversas do lanche vespertino do intervalo entre as sessões, todos se solidarizaram e muitos apontavam, de cabeça, diversos precedentes em que o tribunal tinha vedado a utilização de cartas ou denúncias anônimas como fundamentação exclusiva para se deflagrarem ações penais e devassas nas vidas de cidadãos. 

Os precedentes foram, dias depois, publicados em um texto no site do Superior Tribunal de Justiça. Em um deles, o ministro Teori Zavascki citava decisão do Supremo no mesmo sentido, na qual o ministro Celso de Mello, decano daquela Corte, explicitava que “o procedimento investigatório não pode ser instaurado com base, unicamente, em escrito anônimo, que venha a constituir, ele próprio, a peça inaugural da investigação promovida pela polícia judiciária ou pelo Ministério Público”. 

O custo pessoal da decisão foi alto. Mas, como repete como um mantra o ministro Asfor Rocha, o pior defeito de um juiz é a covardia. “Tão grave quanto a venalidade”. 

Raízes na advocacia

Asfor Rocha começou a trabalhar com Direito logo no primeiro ano de faculdade, com 18 anos. Frequentava o curso noturno de Direito da universidade Federal do Ceará. Depois de dois anos de formado, abriu escritório em Fortaleza e passou no concurso para lecionar na faculdade em que se formou. Por quase 20 anos, ministrou aulas de Introdução ao Estudo do Direito, Teoria Geral do Direito e Direito de Família. 

Militava na área empresarial e de família. Foi quatro vezes indicado para compor o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará na vaga de jurista, destinada a advogados. Foi aí que tomou gosto pela política e chegou a ocupar o posto de procurador-geral do município de Fortaleza. 

A criação do Superior Tribunal de Justiça no lugar do Tribunal Federal de Recursos e o novo modelo do Judiciário brasileiro fizeram Asfor Rocha projetar a abertura de um escritório em Brasília. Já havia começado os preparativos, comprado um terreno para a construção quando o ministro baiano Washington Bolívar se aposentou seis anos antes da idade limite para a saída compulsória. A vaga era da advocacia. 

Asfor Rocha estava concluindo o mandato de vice-presidente da seccional cearense da Ordem dos Advogados do Brasil, na gestão comandada por Ernando Uchôa Lima. Colegas o incentivaram a disputar a vaga do quinto constitucional. O então advogado gostou da ideia.  

Intimamente, Cesar Asfor Rocha pensava em entrar na lista do quinto constitucional mais para fortalecer seu currículo e se tornar mais conhecido em Brasília, onde estava prestes a inaugurar seu escritório. Nas disputas em torno da vaga do quinto constitucional, sempre se conversa com muitos advogados e as visitas aos conselheiros federais o fariam sentir o clima da cidade. Ao mostrar seu conhecimento e se apresentar, entraria de uma vez por todas em Brasília. 

O ministro conseguiu 26 votos dos 27 possíveis para compor a lista do quinto constitucional. O placar, então, fez a rarefeita ideia de se tornar ministro ganhar substância. Ele, então, decidiu trabalhar com afinco para assumir a cadeira no STJ. Hospedado no Hotel Eron, no Setor Hoteleito Norte, desde a fase em que disputava um lugar na lista sêxtupla da OAB, o advogado saiu na tradicional peregrinação nos gabinetes de ministros do STJ. Depois de quase dois meses de trabalho, entrou na lista tríplice escolhida por seus futuros colegas. 

Asfor Rocha tinha como adversários dois colegas de peso: Amauri Serralvo, que havia presidido a OAB-DF entre 1987 e 1989, e Urbano Vitalino, pernambucano com reconhecida atuação profissional. Com o apoio do então ministro do Supremo Tribunal Federal Célio Borja e do ministro da Justiça Jarbas Passarinho, o futuro ministro confiava na nomeação. 

Um dia, no Hotel Eron, assistia a uma reportagem na TV que dava conta da saída de Passarinho do Ministério da Justiça e da nomeação de Célio Silva, que então era consultor-geral da República do governo Fernando Collor, o presidente responsável pela nomeação. O advogado pensou: “Perdi”. Célio Silva apoiava a nomeação de Amauri Serralvo para o STJ. 

Em seguida, a reportagem fez uma correção. O nomeado para assumir a pasta da Justiça era Célio Borja, o ministro do Supremo, que havia deixado o tribunal para servir ao governo Collor. Em 5 de maio de 1992, de Araxá (MG), onde estava, o presidente Fernando Collor de Mello nomeou Cesar Asfor Rocha ministro do Superior Tribunal de Justiça, aos 44 anos de idade — o mais novo ministro a tomar posse no STJ até hoje. 

Em 22 de maio seguinte, o ministro tomou posse do cargo. Teve 17 dias para encerrar as atividades do escritório no Ceará, desmobilizar a equipe que traria a Brasília. 

Lista da discórdia

Grato à OAB, que o indicou na lista sêxtupla, o ministro passou a almoçar todos os meses com os conselheiros federais da Ordem, de 1992 até fevereiro de 2008, quando o STJ rejeitou a lista sêxtupla enviada pela Ordem para preencher uma vaga de advogado na Corte. O afastamento foi necessário por conta do estranhamento entre a entidade de advogados e os ministros. 

Na ocasião, o ex-advogado Asfor Rocha ficou do lado dos ministros que rejeitaram a lista. Ministros e de advogados já haviam consolidado, à época, a convicção de  que as listas da Ordem estavam sendo feitas mais para agradar amigos do que para selecionar os melhores nomes da advocacia para compor o tribunal. Os ministros decidiram dar um basta e tinham duas formas para não escolher nenhum dos nomes.  

A primeira era devolver a lista de pronto, o que causaria um atrito ainda mais grave com a OAB. A segunda maneira era não votar nos candidatos, para que nenhum chegasse aos 17 votos necessários. Esta forma foi a escolhida por ser considerada a menos traumática. Os votos em branco não indicam inidoneidade dos candidatos, mas apenas que os ministros acreditam que eles não têm o perfil para ocupar uma vaga no STJ. 

O presidente da Ordem na ocasião, Cezar Britto, se recusou a fazer nova escolha e recorreu ao Supremo Tribunal Federal. Perdeu a causa. A polêmica em torno da lista durou três anos e só depois que três vagas destinadas aos advogados ficaram abertas STJ e OAB voltaram a conversar sobre a necessidade de um entendimento. O STJ encontrou, na nova direção da Ordem, interlocutores dispostos a resolver a questão. A OAB, então, fez novas listas. E, desta vez, as vagas foram preenchidas. Asfor Rocha voltou, então, a almoçar com os colegas de sua origem. 

Ao deixar a Presidência, Asfor Rocha voltou para a Seção de Direito Público do tribunal, onde começou sua carreira na Corte antes de ocupar por 13 anos a Seção de Direito Privado. Depois de passar por todos os cargos que um ministro do STJ poderia ocupar, hoje é presidente da Comissão Conjunta de Poderes Judiciários Europeus e Latino-Americanos. 

De todas as condecorações, comendas e homenagens que ganhou na carreira, o ministro guarda com especial carinho a Medalha da Abolição, das mãos do amigo e governador cearense Cid Gomes, em 30 de março de 2009. Recebeu a medalha junto com outro amigo, Fagner, com quem tem em comum, além do fato de ser cearense, a paixão pela música. 

Foi com o impulso de Fagner que o ministro decidiu, em 2008, tirar suas composições do papel de gravar um CD. Parceiros, o nome do disco, tem letras de Asfor Rocha, música de Amaro Penna e direção artística de Fagner, que também empresta a voz à canção que abre o trabalho. Geraldo Azevedo e Elba Ramalho, entre outros intérpretes, dão voz às músicas. 

Para o ministro, compor é uma tarefa muito mais complexa do que julgar: “Fazer letra de música é uma das mais difíceis formas de poesia. Na música, você tem mais de insinuar do que dizer. Mais ainda para quem trabalha com o Direito. Como juiz ou advogado, é necessário ser explícito, repetitivo até”.

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