Coragem para absolver

“Para o juiz, a covardia é tão nefasta quanto a venalidade”

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20 de maio de 2012, 9h03

Spacca
Há 20 anos, juiz corajoso era o que condenava. Hoje, diante do aplauso fácil da sociedade que experimenta uma sensação de impunidade a ponto de defender processos sumários, o juiz precisa ter coragem para absolver. E serenidade para suportar críticas ácidas, muitas vezes, por ter cumprido bem seu papel de aplicar a lei e garantir direitos fundamentais ao réu, como o da ampla defesa e do devido processo legal.

O decano do Superior Tribunal de Justiça, ministro Francisco Cesar Asfor Rocha, acompanhou essa transformação por dentro. Chegou ao chamado Tribunal da Cidadania exatos três anos após sua criação e tornou-se o juiz mais longevo da corte. Na próxima terça-feira, 22 de maio, ele completa duas décadas de atuação no STJ, nas quais acumulou mais de 140 mil processos julgados, contados somente aqueles dos quais foi relator.

Parte destas transformações se deu graças à visibilidade social que a Justiça ganhou e ao novo desenho institucional, que alçou o Poder Judiciário ao papel de protagonista da vida cotidiana. “O Judiciário vivia como um molusco dentro de sua própria concha, isolado em uma torre de marfim, distante da realidade social”, afirmou o ministro em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Na opinião do ministro, a abertura foi essencial. Um acompanhamento mais atento da imprensa, apesar de ainda defasado e pouco especializado, revelou os vícios da Justiça e ajudou a depurá-la. Mas, como em tudo na vida, trouxe também dores de cabeça. O saldo, para Asfor Rocha, é positivo: “Creio ser essa descoberta benéfica para o Judiciário, pois enseja a correção de muitos vícios, os que já tínhamos e estamos corrigindo, outros que ainda temos”.

Nesta entrevista, que inaugura uma série de textos sobre a trajetória e o trabalho de Asfor Rocha, o ministro fala sobre os principais desafios encontrados ao longo dos anos, analisa as transformações do Judiciário, faz um balanço sobre o protagonismo do poder e revela que já teve muitas dúvidas sobre se valeu a pena deixar uma bem sucedida carreira na advocacia para vestir a toga. “Eu já me perguntei muitas vezes, e ainda hoje me pergunto, se fiz a escolha certa. A resposta eu só vou obter, talvez, ao final da minha vida”, afirma.

Leia os principais trechos da entrevista:

ConJur — Qual a principal diferença da magistratura de hoje para aquela de quando o senhor tomou posse, há 20 anos?
Cesar Asfor Rocha — Em 1992, era preciso coragem para condenar um réu. Hoje é preciso muita coragem para absolver. Estávamos nos primórdios da redemocratização e valores que foram postergados e até, em certos momentos, aniquilados no período anterior, passaram a ser exaltados. O princípio que preponderava naquele instante, que reclamava maior atenção, era o da segurança jurídica, que se contrapõe ao princípio da celeridade. Hoje, com tantos e frequentes casos apontados de corrupção, que transmitem frustração que culmina com uma sensação de impunidade, a sociedade reclama por celeridade. Mas, nem por isso podemos deixar de lado as franquias democráticas, fragilizar o direito de defesa, que são conquistas da civilização. Hoje, o juiz precisa de muita coragem para absolver pelo receio de ser rotulado de fomentador de impunidades.

ConJur — Condenar é mais fácil…
Asfor Rocha — Condenar é muito fácil porque no inconsciente coletivo há expectativa de que, uma vez apontados certos desvios, não haveria necessidade de processo. E se o processo contiver algum vício, por grave que seja, teria que ser superado. É como se dissessem: “Mas está evidente que essa pessoa é culpada. Não precisa haver o devido processo legal”. Até porque, muito comumente, a imprensa investiga, processa e condena a um só tempo. Daí o juiz sente-se acossado a condenar também. Mas o papel do Judiciário é outro. O juiz precisa ter muito compromisso com as regras constitucionais e muita coragem cívica para aplicá-las, conduzindo o processo com isenção e serenidade.

ConJur — O que um juiz não pode ser?
Asfor Rocha — Covarde. Para um magistrado, a covardia é uma característica tão nefasta quanto é a venalidade.

ConJur — O senhor citou a imprensa. Há 20 anos, a imprensa já havia descoberto o Poder Judiciário?
Asfor Rocha — Não. O Judiciário vivia como um molusco dentro de sua própria concha, isolado em uma torre de marfim, distante da realidade social. Ademais, o dia-a-dia do Judiciário não despertava nenhum interesse jornalístico, já que o Judiciário não tinha o protagonismo de hoje. Os tribunais não tinham sequer setor de imprensa ou de comunicação social. E a imprensa não destacava profissionais para cobrir o Judiciário. Além do que os profissionais das duas áreas guardavam uma espécie de distância regulamentar.

ConJur — Os juízes também eram muito reclusos, não?
Asfor Rocha — Sim. Os juízes falavam praticamente apenas no processo. São conhecidas as máximas: “o juiz só fala nos autos” e “o que não está nos autos não está no mundo”. É certo que o juiz só pode julgar tendo em conta o que está nos autos, mas não deve e não pode desconhecer o que está no mundo.

ConJur — A imparcialidade existe?
Asfor Rocha — O juiz tem o dever de ser imparcial. O que não significa dizer que se deve exigir dele a neutralidade, até porque não existe neutralidade absoluta. Todo profissional, de qualquer área, na sua, na minha, que trabalhe com os fatos da vida, os vê, os intepreta com a carga de suas vivências, de suas ideologias, de seus sentimentos de frustração, de realização, de tristeza, de alegria, acumulados ao longo da vida. Nós, juízes, também. Por isso é que, em um colegiado, um mesmo fato, julgado tendo em conta uma mesma lei, gera debates que despertam interpretações conflitantes.

ConJur — E como foi a abertura para a imprensa? Como os ministros do STJ, por exemplo, reagiram à exposição?
Asfor Rocha — Eu sempre entendi que o Judiciário não tinha como deixar de se mostrar à imprensa. Ela é a principal lente de percepção do que ocorre na sociedade. Eu guardo a convicção de que só há um fato que não pode ser descoberto: o que não aconteceu. Se é assim, devemos nos mostrar logo, pois quando a imprensa quer, ela descobre tudo. Creio ser essa descoberta benéfica para o Judiciário, pois enseja a correção de muitos vícios, os que já tínhamos e estamos corrigindo, outros que ainda temos. Tendo o Judiciário sido lançado no contexto das análises diuturnas da mídia, esses vícios ficaram muito mais notados.

ConJur — Que vícios?
Asfor Rocha — O nepotismo, por exemplo. O nepotismo era reinante. Outro exemplo são os gastos excessivos, desnecessários que nós tínhamos. O juiz leniente, o desidioso, o venal — que, graças a Deus, são poucos —, que antes não eram notados, hoje não conseguem se manter escondidos.

ConJur — O senhor sempre se relacionou bem com a imprensa, mas já foi bastante criticado por ela também. Como é esse relacionamento hoje? Há algum ressentimento?
Asfor Rocha — É claro que em alguns momentos fiquei aturdido porque não compreendia a veiculação de certas notícias falsas, conjecturas maliciosas serem lançadas sem qualquer cuidado. Mas esses equívocos, eventualmente cometidos, sempre foram por mim particularizados lançando-os na coluna da precariedade profissional e de carátrer do seu autor. Nunca coloquei isso no colo da imprensa, apontando a ela a culpa. Tanto que eu nunca promovi nenhuma ação contra qualquer um desses eventuais agressores. Quando eu compunha a 4ª Turma, que julga Direito Privado, estavam em voga as ações de indenização por danos morais. Inclusive contra jornalistas. E eu sempre tive a visão de que a honra tem de ser reparada, mas não se pode fazer disso uma indústria para enriquecimento daqueles que são ofendidos. Creio que o jornalista, como qualquer outro profissional, constrói sua credibilidade com base na sua produção. Assim, um jornalista que lança aleivosias sem qualquer fundamento vai terminar desacreditado pelos seus próprios colegas e leitores. A história demonstra isso.

ConJur — O Judiciário deve ouvir a voz das ruas?
Asfor Rocha — Claro que sim. E ouvimos diuturnamente. Primeiro, porque as ruas estão hoje em nossas casas trazidas pelos diversos instrumentos da mídia. Segundo, porque pelos nossos pais, nossos cônjuges, nossos filhos, irmãos, amigos, e por nós mesmos, tomamos conhecimento do que ocorre no mundo. Mas não podemos ser conduzidos por isso. Não por soberba ou desídia, mas porque o nosso compromisso republicano é julgar de acordo com a lei. Eu assumidamente tenho uma formação garantista, filiado que sou àquela linha de atuação que prestigia os direitos e garantias individuais. Mas, mesmo com esse espírito, eu já afastei — com o coração sangrando, é certo — colega aqui do STJ e vários colegas da magistratura. Meu compromisso é com a lei.

ConJur — Quais são suas influências?
Asfor Rocha — A primeira influência foi meu pai. Ele tinha uma formação jurídica sólida, era professor de Direito, advogado. Era um homem de princípios rigorosos, mas também muito cioso dessas garantias fundamentais. Na minha família, meu pai e minha mãe se completavam. Ele muito rigoroso e ela mais dócil, embora também soubesse fazer as suas reprimendas. No campo profissional, minhas maiores influências foram os meus 87 colegas do STJ, com quem já trabalhei ao longo desses meus 20 anos de tribunal. Todos, de uma forma ou de outra, me influenciaram. Com Ernando Uchoa Lima, que foi presidente do Conselho Federal da OAB, meu querido amigo, de uma lisura a toda prova, de um caráter extraordinário, aprendi a nunca me arredar da palavra empenhada, nunca deixar de cumprir um compromisso assumido.

ConJur — Como o Direito surgiu na sua vida?
Asfor Rocha — Trabalho desde os 16 anos de idade e — digo com humildade — não precisava trabalhar para viver. Minha família tinha uma boa condição para pagar meus estudos, mas desde cedo eu comecei a trabalhar. Fiz o curso de Direito noturno e comecei a freqüentar o foro no primeiro ano da faculdade. Nunca fui líder estudantil, mas também não era uma pessoa alienada. Nunca tive a pretensão de conduzir multidões, certamente por não ter vocação política.

ConJur — O senhor nunca teve a pretensão de conduzir multidões, mas conduziu o tribunal por muito tempo. Como se formou essa liderança?
Asfor Rocha — Eu comecei muito cedo no STJ. Tinha acabado de completar 44 anos quando aqui cheguei. Fui o ministro que entrou no tribunal com menor idade até hoje. O tempo não perdoa quem o despreza, mas ajuda muito quem o considera. E eu sempre procurei ter o tempo como meu aliado. Sempre vivenciei o tribunal muito intensamente. Há muitos colegas que se dedicam ao tribunal tanto quanto eu, quase todos. Contudo, mais do que eu, nenhum. Quando fui nomeado, queimei as caravelas, vindo morar em Brasília. Resido em Brasília desde o primeiro momento. Isso fez com que eu conhecesse muito profundamente o STJ e sempre soubesse o que estava acontecendo aqui.

ConJur — Isso o ajudou na Presidência…
Asfor Rocha — Sem dúvidas. Consegui fazer algumas reformas. A mais notada foi a implantação do sistema processual eletrônico, que fez com que o STJ se transformasse no primeiro tribunal nacional do mundo a acabar com o papel. Todo o Judiciário foi arrastado para isso. Para fazer essas mudanças, evidentemente, era preciso garantir a governabilidade interna. Para tanto, precisava contar com a maioria dos colegas. Quebrar paradigmas é muito difícil.

ConJur — Houve muita resistência?
Asfor Rocha — Extrema resistência. Porque acabou com o poder do burocrata de controlar a informação processual, além do que todo mundo tem medo do novo, da quebra de paradigma, de trocar o certo pelo duvidoso. Mas muito pouco tempo depois, é preciso reconhecer, houve absoluta adesão de todos os ministros e servidores do tribunal, a partir do momento em que eles perceberam que a mudança seria saudável. Hoje, está tudo informatizado.

ConJur — Mas o senhor já estava acostumado com resistências, não? Quando foi corregedor do CNJ, o senhor denunciou os chamados juízes TQQ. Ou seja, que só trabalhavam terças, quartas e quintas, e instalou o programa Justiça Aberta, que media a produtividade dos juízes. Na época, houve uma grita?
Asfor Rocha — O Justiça Aberta, programa por nós implantado, passou a acompanhar a atividade de todo o Judiciário estadual do Brasil. Porque só os juízes estaduais? Porque a Justiça Federal e a Justiça do Trabalho têm os seus conselhos e já faziam mais ou menos o seu controle. Graças ao programa, ao final do mês qualquer cidadão poderia saber quantos processos cada juiz tinha, quantos processos foram recebidos, quantos julgados, quantas audiências marcadas e quantas foram realizadas efetivamente, em cada uma das varas do país.

ConJur — Até então, não se sabia nem o número de juízes que havia no país…
Asfor Rocha — Nem isso. Também não tínhamos qualquer informação ordenada sobre cartórios. Isso causou certo mal estar entre os cartorários, porque pensavam que o CNJ queria persegui-los. Depois eles notaram que a ideia era apenas a de racionalizar a atividade.

ConJur — Foi na sua Presidência que o tribunal passou a exigir dos candidatos a ministro uma declaração de que se comprometiam a residir na cidade?
Asfor Rocha — Sim. Quando entrei em 1992, todos os ministros, sem exceção, moravam em Brasília com suas famílias, fincando raízes, tanto que muitos se aposentaram e continuaram morando na cidade. Tinham, inclusive, filhos nascidos em Brasília. A cidade é boa, agradável, de altíssima qualidade de vida. Eu me lembro que toda sexta-feira, final da tarde, todos nos reuníamos na sala de lanche do tribunal. Até que um dia um ministro, por razões familiares, viajava todo final de semana para sua cidade. Viajava nas noites de sexta. Depois, às sextas pela manhã. Em seguida, passou a viajar às quintas-feiras. Começou chegando domingo à noite, depois segunda à tarde, depois à noite. Terminou viajando quinta-feira e voltando terça na hora das sessões. Outro ministro recém chegado passou a imitá-lo. E aquilo criou precedente. Em determinado momento, alguns pensaram que a regra era trabalhar em Brasília e morar fora, como é o caso, por exemplo, dos congressistas, que têm que voltar às suas bases, porque lá é que está a vida de renovação dos seus mandatos. Mas nós somos vitalícios.

ConJur — Os congressistas têm que prestar conta aos eleitores…
Asfor Rocha — E vão lá trabalhar. Nas suas bases, os parlamentares trabalham muito, nós sabemos disso.

ConJur — Mas ministro não tem base eleitoral.
Asfor Rocha — Exatamente. E os processos cada vez em ritmo mais crescente. E, andando por aí, eu também via muitas queixas de advogados que não eram recebidos por magistrados, ou da demora de meses para serem recebidos. Então, foi feito um trabalho de convencimento junto a todos findando por aprovar uma resolução implantando regime de plantão aos finais de semana. Foi difícil, evidentemente. Mas a resolução terminou sendo aceita. Foi um período em que o tribunal produziu muito.

ConJur — Houve algum momento em que o senhor pensou que não valia a pena ser ministro?
Asfor Rocha — Muitos. Eu era um advogado bem sucedido, sem as amarras que o magistrado tem, sem as renúncias de vida às quais o juiz tem que se submeter. Sobretudo, sem ter de lidar com as incompreensões, que não são poucas. Muitas críticas são absolutamente procedentes, é certo. Mas há muitas que não são nada justas. Eu já me perguntei muitas vezes, e ainda hoje me pergunto, se fiz a escolha certa. A resposta eu só vou obter, talvez, ao final da minha vida. A renúncia pessoal é muito grande e repercute no âmbito de toda sua família. Essas angústias todas são vividas também pelos nossos familiares.

ConJur — Durante toda a sua Presidência o tribunal trabalhou com três cadeiras de ministros vagas, que foram ocupadas por desembargadores convocados, por conta de uma crise com a OAB na gestão do presidente Cezar Britto. O STJ se recusou a votar uma das listas do quinto constitucional por não concordar com os nomes enviados. Como foi lidar com isso?
Asfor Rocha — Sempre prestigiei muito os advogados. Sou egresso da advocacia e respeito a OAB…

ConJur — O senhor almoçava no Conselho Federal todo mês?
Asfor Rocha — Todo mês, nas reuniões do Conselho, desde que fui nomeado ao STJ.

ConJur — Mas parou ali…
Asfor Rocha — Parei. Hoje, voltei a almoçar por lá, para enorme satisfação minha. E eu ia com o espírito aberto para ouvir queixas da advocacia. Porque o advogado é o juiz do juiz. É ele quem pode eleger os melhores, os bons e os maus magistrados. É evidente que todo juiz, quando julga uma causa contra a pretensão do advogado, este irá dizer que aquele não decidiu bem. Já proferi mais de 140 mil decisões. Eu não recebi 20 mensagens de parabéns. Nem espero recebê-las. Mas apenas para mostrar como as criticas são mais frequentes.

ConJur — Mas recebeu 140 mil críticas?
Asfor Rocha — Não por escrito. Mas certamente muita gente me criticou por aí. Isso faz parte da nossa realidade. É preciso ter humildade para reconhecer que a vida é assim. Ninguém se conforma com a sua derrota, evidentemente. Mas, sobre a lista, havia um descontentamento em quase todos os tribunais do país de que a OAB não estaria escolhendo os nomes mais representativos da advocacia para compor o chamado quinto constitucional. A ponto de muitos bons advogados, com vocação para a magistratura, não se candidatarem para não se submeterem ao crivo da eleição. Naquele momento, o tribunal não escolheu três nomes para compor a lista por esse motivo. Foi uma reação espontânea de muitos colegas, que não viam naquela lista de seis nomes remetida pela Ordem três advogados que pudessem efetivamente representar bem a classe da advocacia aqui no STJ. Claro que os ânimos ficaram acirrados, porque a Ordem não admitia isso. Mas, curiosamente, a quantidade de mensagens que recebemos de advogados aplaudindo a atitude do STJ foi muito, mas muito superior àquelas que chegavam com críticas. A questão foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, que nos deu razão. Depois, a Ordem mandou três listas com nomes notáveis, que hoje são ministros extraordinários aqui do tribunal.

ConJur — Como o senhor percebe a imagem do Judiciário junto à população hoje?
Asfor Rocha — Não podemos deixar de reconhecer que a imagem das instituições, de forma geral, está abalada. Todas as instituições passam por uma fase de desconfiança da população. Há muita cobrança e, na verdade, as instituições precisam buscar formas de se reinventar. E o Judiciário também está nisso. É claro.

ConJur — O Judiciário é a bola da vez?
Asfor Rocha — É. Eu tenho a compreensão que o Século XXI é o Século do Judiciário. Nós tivemos o Século do Legislativo e o do Executivo. E esse movimento é mundial, não ocorre só no Brasil. Com déspotas, o Executivo sofreu um abalo no seu prestígio. Depois, com a demora na formulação das leis, houve quase como que uma superação da visão parlamentar da lei. Agora, a vez é do Judiciário. E, naturalmente, quanto mais atuante for um poder, mais ele será submetido a análises e críticas. O Judiciário deixa de ser aquele mero intérprete da lei e passa, de certa maneira, a preencher as lacunas da lei, que são cada vez mais notadas. Os fatos da vida são muito mais velozes do que a elaboração normativa. No caso brasileiro, a exposição é maior. Aqui, todas as sessões são públicas. Em grande parte do mundo as sessões são reservadas ou secretas. Depois que as sessões do Supremo passaram a ser mais do que públicas, porque são televisionadas, os ministros passaram a ter uma visibilidade que não tinham antes.

ConJur — Isso é bom ou ruim?
Asfor Rocha — Há defeitos e virtudes nisso. É como um caleidoscópio, por cada ângulo que se vê, uma cor diferente é percebida. A trasmissão ao vivo permite que a crítica seja feita pelo voto efetivamente proferido, que é visto pela televisão, não pelo que poderia ser conjecturado. Esse é um aspecto extremamente saudável. Mas há o lado ruim. Os juízes ingleses usavam peruca para não serem reconhecidos na rua, para julgar sem o risco de serem xingados ou aplaudidos quando saíssem do tribunal. Mas, entre críticas e aplausos, está se iniciando uma coisa boa, nova. Em regra, o bacharel em Direito é conservador, porque ele se volta para as leis postas. Olha pelo retrovisor. Agora, começa a ter uma visão mais avançada, que em certos pontos acho até exagerada. Como, por exemplo, muitos magistrados praticamente interferirem na gestão pública.

ConJur — O Judiciário vem invadindo o espaço do Legislativo e do Executivo?
Asfor Rocha — Vamos colocar essa relevante questão sem desvio de enfoque. Acho até que a postura do Judiciário não pode ser a de antes, tradicional, em que o ato administrativo, por exemplo, só poderia ser exeminado sob o aspecto formal, mas também não pode ser a ponto de pretendermos interferir na gestão pública, até porque não temos formação para isso. Reclama-se, ademais, que o Judiciário estaria atuando muito na esfera política e que estaria interferindo na atividade legislativa. E aí se diz que o Judiciário estaria avocando para si competências que seriam do Congresso. Mas, veja bem: há poucos anos, houve uma disputa entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, que terminou desaguando no Judiciário. Quer dizer, duas casas políticas por excelência não chegaram a um acordo. Depois disso, não pode haver muita queixa.

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