Direito sem papel

Caso Carolina Dieckmann move PL sobre crime cibernético

Autor

  • Alexandre Atheniense

    é sócio de Alexandre Atheniense Advogados coordenador do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) membro das Comissões de Proteção de Dados Pessoais da OAB-MG e Direito Digital no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

17 de maio de 2012, 5h08

Spacca
Caricatura: Alexandre Atheniense - 20/07/2011 [Spacca]Há dezesseis anos estudo, por dever acadêmico e profissional como advogado que atua diariamente no enfrentamento dos crimes cibernéticos, a tramitação de diversos projetos de lei sobre a tipificação dos crimes cibernéticos no Brasil.

Após participar de audiências públicas no Congresso Nacional, vários eventos debatendo sobre o tema e manter contato direto com todos os grupos envolvidos na defesa de seus interesses, percebi há muito tempo que esta discussão havia se afastado do plano técnico, jurídico e filosófico para se tornar apenas um nítido confronto político.

De um lado o PSDB, representando pelo deputado Eduardo Azeredo, que sustenta a aprovação do PL 84/1999, cuja atual redação foi compilada a partir de outros projetos sobre o mesmo tema, que já tramitam no Congresso Nacional há 16. O primeiro deles foi o PL 1.713, de 1996, de autoria do deputado Cássio Cunha Lima, que havia sido arquivado em decorrência do término da sua legislatura.

Em contraponto se situa o PT, alinhado com os interesses do governo federal, notadamente com maior peso na negociação política, além do comando de toda a infraestrutura de tecnologia da informação em nosso país.

Fica claro que este grupo político age com uma estratégia de articulação bem mais proativa, sustentada com campanhas ilustradas com palavras de efeito midiáticas como: AI-5 Digital, Ciberativismo, Política 2.0, Mega Não. Estas táticas geram mais relevância na presença online, além de promoverem articulação e engajamento de seguidores mais eficiente da defesa de uma causa no meio digital, dinamizando a propaganda ideológica e política na defesa de seus interesses. Esta causa é fundamentada, dentre outras hipóteses, na aplicação da Teoria do Direito Penal Mínimo para os crimes praticados no meio eletrônico. Os princípios que norteiam esta teoria são os seguintes:

1. Princípio da insignificância – somente os bens jurídicos mais relevantes é que devem ser tutelados pelo Direito Penal;

2. Princípio da intervenção mínima do Estado, por meio do Direito Penal – em outras palavras, o Estado não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, de forma a tirar-lhe a liberdade e autonomia, deve sim, só fazê-lo quando efetivamente necessário.

Nesta tema, pode parecer, a priori, que o governo federal esteja de fato preocupado em defender as liberdades individuais, para sustentar que a internet é um mundo à parte e nem todas as condutas ilícitas existentes no mundo presencial devam ser criminalizadas quando praticas pelo meio eletrônico.

Mas na prática, a situação pode ser analisada por outra ótica. É sempre bom lembrar que, em se tratando do exercício de poder no meio digital, quem detém exclusividade do comando da infraestrutura de tecnologia da informação, a exerce de forma muito mais eficiente ante qualquer garantia assegurada em texto de lei. Lawrence Lessig, meu ex-professor no Berkman Center na Harvard Law School me ensinou há vários anos: “The Code is Law”, ou seja, quem exerce o poder e tem sob o seu controle da arquitetura da rede e o código de programação de sistemas, sempre poderá tomar medias mais eficientes do que qualquer tutela assegurada na legislação.

Em outras palavras, o exercício do poder do controle sistêmico é muito mais eficiente do que a efetividade da lei. Os comandantes das estruturas sistêmicas que gerenciam a informação na mídia digital, se sobrepõem aos interesses de terceiros para monitorar, efetuar cruzamento de dados, efetivar decisões em defesa dos seus próprios interesses, não deixando indícios de acessos não autorizados e na manipulação ilícita de dados de forma anônima, sem perder o controle dos acessos e limitação de condutas.

Portanto, se o governo federal já exerce este controle da infratestrutura da tecnologia da informação, é natural que defenda a aprovação do menor número de crimes cibernéticos, ou mesmo que seja mantido uma legislação inadequada e omissa para apuração de autoria de ilícitos no meio eletrônico, bem como o abrandamento das penalidades, que na prática só teriam o efeito de mitigar o exercício do seu poder.

3. Princípio da Ofensividade – Isto é somente podem ser considerados como crimes as condutas que obstruam o convívio social. Diante da incidência desta hipótese é que se aplicaria a intervenção penal para punir o ilícito;

4. Princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos – o Direito Penal deve ser restringir apenas à tutela de bens jurídicos, não sendo legítimo a defesa da da moral, funções estatais, credo ou ideologia;

5. Princípio da Fragmentariedade – poderá ser compreendido em dois sentidos: a) Somente os bens jurídicos mais relevantes merecem tutela penal; b) Exclusivamente os ataques mais intoleráveis devem ser punidos com sanção penal.

6. Princípio da Adequação Social – preceitua a tese de que, apesar de uma conduta possa estar em concordância ao tipo penal, é recomendável deixar de considerá-la um ilícito quando socialmente adequada, ou seja, quando estiver de acordo com a ordem social.

Por esses motivos, o grupo petista defende estas estratégias, por meio da aprovação do PL 2.793/2011, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), cuja íntegra retrata a adoção do menor número possível das condutas ilícitas originadas no meio eletrônico.

Essa defesa se sustenta no argumento de que várias condutas previstas no PL 84/1999 não violariam o ordenamento jurídico, seja pela irrelevância ou insignificância da conduta praticada.

Por este motivo, quanto menos tipos de crimes cibernéticos forem aprovados de imediato, e houver um retardamento propositado para aprovação de medidas eficientes para solucionar a investigação de autoria dos ilícitos praticados no meio eletrônico, irá favorecer aos interesses do grupo político que está alinhado ao governo federal, pois está estratégia irá blindar qualquer forma de mitigar o poder do comando sobre a estrutura de tecnologia da informação no país.

Daí se justificam as constantes medidas políticas do governo em retardar a tramitação do PL 84/1999 e a supressão de vários artigos que criavam tipos penais, com manobras para o adiamento de votações, sob o pretexto de que o tema ainda precisa ser debatido em audiências públicas após 16 anos de tramitação do projeto original tratando do tema. Não há mais controvérsia jurídica sobre o tema, mas a tão somente a prevalência do interesse político governamental de não criar uma lei adequada para os crimes cibernéticos.

O PL 84/1999 é muito mais abrangente em termos de criação de tipos de crimes cibernéticos em comparação com o PL 2.793/2011. Em contrapartida, o governo federal já anuncia na mídia que pretende aprovar a toque de caixa o PL 2.126/2011, o Marco Civil da Internet, em meados de 2012, sendo que o seu trâmite iniciou-se apenas há nove meses, em 24 de novembro de 2011. Várias audiências públicas estão sendo convocadas, mas os indicados para os debates são, em larga maioria os ciberativistas, para validar os interesses do governo federal.

O suposto motivo que teria causado o desate para este impasse político sobre a tramitação destes projetos teria sido causado a partir da repercussão do escândalo envolvendo o vazamento das fotos da atriz global Carolina Dieckmann. Como sabemos, a atriz foi vítima de acesso não autorizado ao seu computador por crackers, causando o vazamento das suas fotos íntimas na internet. Este foi o estopim para a convocação de um acordo entre os líderes dos partidos que objetivou a votação do projeto de Paulo Teixeira (PT-SP) na sessão desta quarta-feira (16/5), com a garantia simultânea que o projeto 84/1999, relatado pelo deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) na Comissão de Ciência, Tecnologia Comunicação e Informática na Câmara.

Segundo o regimento do Congresso Nacional, no estágio atual da tramitação do PL 84/1999, só seria possível modificar a atual redação pela supressão de alguns artigos. Por este motivo, para negociar o avanço do PL 84/1999, foi necessária a retirada deste projeto do dispositivo relativo a obrigatoriedade da guarda de logs dos provedores de acesso e aplicativos, para que este tema fosse tratado apenas no Marco Civil da Internet (PL 2.126/2011) e o crime de acesso não autorizado que será discutido no PL 2.793/2011.

Quem trabalha no enfrentamento jurídico dos crimes cibernéticos sabe das vulnerabilidades existentes na atual condução do processo de identificação de autoria a partir dos indícios dos crimes praticados pelo meio eletrônico, causada pela não obrigatoriedade da guarda dos logs pelo provedores. Estes dados são indispensáveis para a investigação criminal. Se a obrigatoriedade de preservação, a grande maioria dos incidentes poderá terminar sem solução quanto à autoria. A atual redação em debate no PL sobre o Marco Civil da Internet é bem mais protetiva aos interesses dos provedores e não das vítimas dos crimes cibernéticos se comparado à versão que constava originariamente no PL 84/1999.

Diante desta negociação, a redação do PL 84/1999 foi mais uma vez reduzida, para manter apenas quatro pontos do texto original, ou seja: tipificar os crimes de clonagem de cartões de credito, racismo na internet, crimes militares e a criação de delegacias especializadas. Depois de aprovado na Comissão de Ciência e Tecnologia, o PL 84/1999 vai para a Comissão de Constituição e Justiça e segue para a sanção presidencial. Já o projeto do deputado Paulo Teixeira e PL do Marco Civil da Internet precisarão ainda de mais tempo para aprovação, pois ainda serão necessárias várias etapas para concluir o trâmite regimental e aprovação no Senado.

O resultado desta negociação deixa claro que o PT conseguiu êxito ao reduzir a amplitude do PL 84/1999, com a supressão de várias condutas ilícitas que poderiam ser aprovadas desde já, além de retardar a aprovação de outras, que ainda prescindirão da tramitação dos projetos de leis que se alinham com seus interesses.

Ao contrário do que foi noticiado pela mídia, o efeito Carolina Dieckmann não causou a aprovação da lei de crimes cibernéticos, a partir de um projeto já existente, para definir desde já como crime a conduta de devassar dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores ou ainda adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização do titular.

De fato, houve apenas um acordo para colocar o projeto de lei em votação em uma comissão do Congresso. Se depender do governo federal, essa tramitação ainda será bem demorada, até que o PL do Marco Civil da Internet seja aprovado antes dos projetos de lei sobre crimes cibernéticos.

Essa negociação entre os partidos, visando desatar o nó do impasse político e avançar a tramitação dos projetos sobre crimes cibernéticos, ao que me parece, foi apenas uma manobra política casuística para desviar a atenção da sociedade quanto à necessidade da aprovação imediata do PL 84/1999.

Dessa forma, foi amenizando o impacto de suposta impunidade aos agressores do escândalo Carolina Dieckmann na opinião pública, mas teve como pano de fundo a estratégia de manutenção dos interesses do governo federal em continuar a estratégia de criar todas as barreiras possíveis para manter a ineficiente legislação brasileira no combate aos crimes digitais em atraso de pelo menos 16 anos em relação aos países desenvolvidos.

Essa manobra governamental vem deixando a sociedade brasileira impotente e insegura, sem falar nos enormes prejuízos já registrados pela falta de punição dos infratores.

A permanecer a situação como está não teremos meios de mitigar ou controlar o poder daquele que tem legitimidade e efetivo comando sobre as nossas vidas no meio eletrônico.

O desvio de atenção da opinião pública quanto à divulgação de notícia inverídica de que havia sido aprovada uma lei para punir os infratores do mesmo tipo penal que vitimou a atriz Carolina Dieckmann é só um jogo de cena. O objetivo é desviar a atenção da necessária aprovação imediata de vários crimes previstos no PL 84/1999. E ao mesmo tempo continuar blindando o governo federal contra os riscos da eventual aprovação imediata do PL 84/1999, justificada pelos interesses já narrados anteriormente.

Apesar dessa situação, ainda sou otimista, embora fique indignado como o fato de que a tramitação de um projeto de lei tão relevante para a sociedade tenha que ser alavancada a partir de um escândalo de mídia nacional envolvendo uma atriz global…

Obrigado Carolina Dieckmann! A sociedade brasileira, a comunidade acadêmica e os profissionais que atuam no enfrentamento dos crimes digitais no Brasil lhe agradecem pela sua valiosa contribuição em prol da tutela dos direitos do cidadão brasileiros vítimas dos ilícitos praticados no meio eletrônico.

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