País desenvolvido

É hora de descriminalizarmos a evasão de divisas

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17 de maio de 2012, 14h23

Spacca
Haveria razão para, ainda hoje, a evasão de divisas (assim como a manutenção de depósitos no exterior à míngua de declaração) caracterizar um ilícito penal?

À primeira vista, uma resposta negativa à indagação poderia parecer alarmante e provocar certa histeria no meio jurídico. Um exame mais aprofundado do problema, contudo, pode nos trazer gratas surpresas.

Em 1986, ano em que editada a Lei 7.492, a economia brasileira era essencialmente fechada. A política cambial vigente afugentava investimentos externos em nome de uma falaciosa proteção da economia interna. A indústria brasileira, por não estar compelida à concorrência com produtos importados, andava a passos jurássicos (“nossos carros são carroças”, afirmou alguém certa feita). Pesquisa e tecnologia eram diretrizes de somenos importância. O câmbio não seguia a lógica do mercado, sendo taxado artificialmente (quem não se recorda de os telejornais anunciarem, diariamente, três cotações para o dólar: paralelo, oficial e turismo?). Eram severas as limitações para a saída da moeda. Houve tempo em que um brasileiro que fosse viajar para o exterior só poderia adquirir US$ 100 no mercado oficial; o restante de sua necessidade teria de ser suprida, com a conivência do Estado, no mercado paralelo. Com tamanhas restrições à saída de recursos (e, consenquentemente, à realização de lucros pelas multinacionais), investimentos estrangeiros tornavam-se minguados.

Compreende-se que, a partir de diretrizes econômicas dessa dimensão, o Direito Penal fosse chamado para tutelar apenas a saída de divisas de nosso país, assim como a manutenção clandestina de valores por brasileiros no exterior. O ingresso ilegal de ativos não foi erigido à condição de crime porque, em 1986, esse não era um motivo de preocupação.

Os anos se passaram e o Brasil, a caro custo, abriu-se à economia de mercado. Faz pelo menos dez anos que nos acostumamos a viver com relativa estabilidade econômica e controle da inflação. Nesse novo contexto — consolidado principalmente ao final do século passado —, a política cambial teve de se submeter às regras do mercado internacional. Hoje, podemos afirmar que o Brasil, à semelhança de países desenvolvidos, também pauta sua política econômica a partir do tripé básico de uma economia de mercado: câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação.

Em 1986, seria impensável cogitarmos algum prejuízo econômico advindo do ingresso excessivo de moeda estrangeira. Lógica diversa impera nos dias atuais: uma oferta exagerada de dólares em nossa economia pode causar desestabilidade na mesma dimensão que o excesso de demanda por moeda estrangeira. Uma saca de soja ou um carro importado com valores defasados são tão problemáticos quanto uma saca de soja ou um carro importado demasiadamente caros. O dinheiro segue a mesma sorte de qualquer outro produto: havendo excesso de oferta, seu preço cai; havendo excesso de demanda, seu preço sobe.

É indubitável que a intervenção penal sobre o mercado de câmbio era legítima em 1986 (de acordo com a política econômica da época) e — talvez — também tenha se mostrado legítima no início do século XXI. Hoje, porém, com o nosso país atingindo níveis satisfatórios de estabilidade econômica e inserção no mercado mundial, não há mais razão para a persistência do crime definido no artigo 22 da Lei 7.492/1986.

A economia brasileira já deu algumas provas de estar suficientemente aparelhada para reagir ao excesso de entrada e saída (legais) de capital. Essa mesma economia já está em condições de se acomodar autonomamente às distorções resultantes da mesma entrada e saída, ainda que à margem de controle estatal.

Com efeito, em economias sólidas, a remessa de US$ 1 milhão numa valise é compensada (no âmbito de uma política cambial) pelo ingresso de outra valise com algo próximo de US$ 1 milhão. E esse equilíbrio é observado tanto no caso de o ingresso ser regular quanto irregular.

Pense um pouco: até hoje convivemos com a ausência de tutela penal sobre o ingresso ilegal de recurso no país sem que tal omissão legislativa tenha sido percebida (com a devida licença daqueles que cogitam, mediante o uso de um “fórceps hermenêutico”, a adequação típica de casos tais ao artigo 21 da Lei 7.492/1986). Ora, se o Direito Penal jamais foi demandado por não se ocupar do ingresso de recursos à margem do SISBACEN, por que teria de prosseguir sendo demandado para tutelar a saída ilegal de recursos?

Tranquilizemos, contudo, os mais exaltados: não estamos a sustentar a desnecessidade de tutela penal sobre ingresso/saída ilegal de recursos. Pelo contrário, há amplo espaço de legitimidade para que tais práticas sejam reprimidas criminalmente, quando ofensivas à política fiscal (crimes de sonegação fiscal) ou à política econômica stricto sensu (crimes de “lavagem” de dinheiro). Hoje, a identificação do real titular de ativos que ingressam ou saem do Brasil interessa muito mais à Receita Federal e ao COAF do que ao Banco Central (este, caminha a passos largos rumo à extinção do SISBACEN). Você nunca se perguntou por que o formulário que preenchemos no retorno de nossas viagens ao exterior é endereçado à Receita Federal?

Na Europa, há muito que os crimes monetários foram abolidos. Isso porque, na síntese de Luis Arroyo Zapatero, “lo que antes se entendía como beneficioso resulta ser ahora disfuncional al desarrollo económico. De este modo la supervivencia de estas infracciones, al menos en el marco de Derecho penal, carece de sentido en cuanto que ahora la única finalidad de un sistema de control de cambios es la de evitar otros delitos, principalmente, el delito fiscal o el blanqueo de capitales.” (‘Derecho penal económico y Constitución’. In Revista Penal, Barcelona: Praxis, vol. 1, ene./1998, p. 3).

Se o Brasil pretende ser um país desenvolvido, está na hora de pensar como um país desenvolvido.

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