Radicalismo desnecessário

A tolerância zero da Lei Seca é o avesso da eficiência

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14 de maio de 2012, 15h03

Os projetos de Lei Seca em avançado estágio no Congresso Nacional apresentam sérios equívocos.

Expõem até mesmo erros de origem, pois que partiram indisfarçavelmente da filosofia implantada pela Prefeitura de Nova York no início da década de 1990, denominada Lei de Tolerância Zero que, entretanto, ao contrário do que se pretende aqui, não cuidou de criminalizar novas condutas humanas, mas de impor efetiva punição a todas as condutas já criminalizadas, sem exceção, independentemente de sua gravidade.

Inspiraram-se também, ainda que no apelido, em Aditamento à Constituição dos EUA, que aprovou em 1919 a popularmente chamada Lei Seca, que vigorou por mais de 10 anos e que nada tinha a ver com acidentes de trânsito. Concebida oficialmente como The Noble Experiment, essa norma constitucional, abandonando radicalmente a ali sempre tão proclamada democracia, proibiu nacionalmente fabricação, transporte e venda de bebida alcoólica, sob o pretexto da defesa da ordem e saúde públicas.

Não há, por certo, quem não aprove maior punição a quem dirige veículo em via pública depois de embriagar-se com bebida alcoólica. O radicalismo da tolerância zero, todavia, pode produzir leis inválidas, já que não há lugar para a tolerância zero num regime constitucional fundado nos princípios da eficiência, razoabilidade e proporcionalidade impostos aos Poderes Públicos. 

Note-se que o PL 48/2011, do Senado, chega a impor até 16 anos de reclusão a quem, conduzindo veículo sob influência de álcool ou substância psicoativa que determine dependência (nem é preciso estar embriagado), causa a morte de alguém. Se o condutor bebeu muito ou pouco, se ingeriu apenas um bombom com licor ou se comeu uma salada temperada com vinho, no restaurante, sem que soubesse ou, ainda, se ingeriu medicamento por ordem médica, sem ter esclarecimento sobre reações adversas, nada importa. Correrá o gravíssimo risco de, em virtude de um acidente, amargar uma reclusão quase tão longa quanto a imposta a um criminoso por índole que, tendo ou não ingerido bebida alcoólica, mata alguém por ato de maldade.

Sob esse raciocínio, quem sabendo estar com sono, dirige veículo em via pública, deveria ter tratamento igualmente rigoroso. Não é razoável, pois, que a lei aplique sanções iguais ou muito próximas aos homicídios doloso e culposo, sem considerar nem mesmo a intenção dos agentes.

Já o PL 3.559/2012, da Câmara, por sua vez, chega a inverter absurdamente o ônus da prova que, em matéria penal, deve ser sempre do Estado. De fato, por essa proposta, se numa blitz o guarda de trânsito afirmar que o condutor estava sob o efeito do álcool, mesmo sem prova material, caberá ao acusado apresentar contraprova.

É necessário compreender que o princípio da presunção de inocência tem por objetivo defender o cidadão contra os abusos do Estado e, como é sabido, os abusos de agentes públicos ainda ocorrem com muita frequência. Aliás, como os próprios projetos de lei sob exame evidenciam, até mesmo agentes públicos do Poder Legislativo praticam grave abuso ao desobedecerem a princípios da Lei Fundamental.

Ademais, desengavetar ou apresentar projeto de lei, sob o regime de prioridade, com o publicamente confessado intuito de opor retaliação a recente decisão do STJ, que restringiu a validade das provas para a finalidade de caracterizar embriaguez no trânsito, configura patente desvio de finalidade a atentar contra o regime democrático e a autonomia do Poder Judiciário na interpretação da lei e na valoração das provas em cada processo judicial.

Com efeito. O projeto de lei deve inspirar-se na constatação da necessidade de alteração legislativa, depois da realização de profundos estudos científicos multidisciplinares e amplo debate social, nunca podendo servir de instrumento para a exploração do poder pessoal de autoridades na mídia, já que, à evidência, o mais importante para a sociedade não é saber quem manda mais no comando republicano.

Um animal acuado ou se torna agressivo ou encontra uma saída clandestina. Não é diferente com o ser humano. A propósito, há levantamentos no sentido de que o consumo de bebida alcoólica aumentou consideravelmente durante a vigência da Lei Seca norte-americana, em todo o território sob sua égide.

A tolerância zero, como pretendida, ao que se vê, é o avesso da eficiência e razoabilidade.

Por fim, se o que quer o povo é a felicidade, cabe ao Estado Democrático de Direito, como regime de governo teoricamente mais próximo da vontade popular, orientar antes de reprimir e, sobretudo, garantir a busca do bem estar de todos, inclusive daqueles que, sem nunca terem se envolvido em acidente de trânsito, depois de muito tempo de habilitação e prática, passaram a ser parados pela polícia de trânsito e considerados criminosos até prova em contrário, infelizmente com o grande risco de, injustamente, serem punidos (não se deve descartar a possibilidade) em razão de diagnósticos extraídos de aparelhos defeituosos ou da palavra de agentes autoritários ou corruptos.

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