Ideias do Milênio

Os desafios para a ordem geopolítica mundial

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4 de maio de 2012, 13h34

Entrevista concedida pelo estrategista do presidente americano Jimmy Carter, Zbiginiew Brzezinski, ao jornalista Luís Fernando Silva Pinto, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

O filme na cabeça de Zbiginiew Brzezinski parece ficção tão extraordinária são as cenas, mas é um documentário, e na primeira pessoa. Porque esse senhor de 83 anos presenciou, ou influenciou, acontecimentos que mudaram a história das últimas décadas. O crescimento econômico e militar da China, por exemplo, hoje é aceito como um fato consumado, mas Brzezinski lembra o momento em que essa realidade não existia. A invasão do Afeganistão, depois de 12 anos, parece um esforço militar inútil. Os bilhões de dólares gastos nem arranharam a estrutura tribal do país. Soldados continuam pagando o preço da aventura com a vida. Trinta anos atrás, Brzezinski já sabia que nenhum exército invasor conseguiria se manter nas montanhas do Afeganistão. E ele explorava precisamente esse tribalismo e essa disposição de luta quando apoiava o envio de dinheiro e armas aos afegãos. E dava certo. Eles atacavam os soldados da outra superpotência invasora da época: a União Soviética. E se hoje a preocupação é com um confronto militar entre Israel e o Irã, talvez envolvendo os Estados Unidos, Brzezinski lembra a dificuldade em dialogar com Teerã. Ele viveu a humilhação da crise dos reféns americanos, e a desastrosa tentativa de resgate que acabou custando, além das vidas perdidas, a reeleição ao presidente Jimmy Carter. Brzezinski foi assessor de segurança nacional de Carter durante quatro anos, a partir de 1979. Depois de deixar o poder em 1981, continuou a carreira no mundo acadêmico, se tornou professor de política externa na escola de estudos internacionais da Universidade Johns Hopkins, e escreveu nove livros. No mais recente, Visão Estratégica: os Estados Unidos e a Crise Global de Poder, ele afirma que depois da queda da influência dos Estados Unidos, o equilíbrio na política mundial dependerá das potências regionais. No Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, conversamos com ele sobre a queda do poder americano e o contexto geopolítico atual.

Luís Fernando Silva Pinto No seu livro, o senhor diz que uma crise de poder global, ou uma crise ética de poder global, está se aproximando. Qual é a sua visão quanto a isso? O que o senhor quer dizer com isso?
Zbiginiew Brzezinski Primeiro de tudo, acho que já há uma crise de poder global. Não é algo que está se aproximando. É algo que já está aqui. E ela está ligada ao desenvolvimento, talvez, em dois níveis diferentes. O primeiro são as mudanças históricas gerais e, depois, mais especificamente, a experiência dos últimos 20 anos. No nível histórico geral eu enfatizo a proposição de que toda a noção de um poder global dominante está ligada, historicamente, ao fenômeno do Ocidente. Foi o Ocidente e, particularmente, os impérios ultramarinos — o português, o espanhol, o francês e o inglês —, que, de fato, foram a primeira tentativa em algo que poderia ser chamado de “poder global”. Por sua vez, durante o século 20, isso levou a três contextos principais. O primeiro foi a Alemanha Imperial, depois, foi a Alemanha Nazista e, então, a União Soviética, e o resultado, em cada caso, teria envolvido, talvez, a ascensão da Alemanha como única superpotência global. Nós sabemos que isso chegou ao fim. O Ocidente não é mais tão dominante, os impérios acabaram, a China e a Ásia emergiram, então, agora o poder está disperso. E o segundo aspecto disso é que, em 1990, após o fim da União Soviética, os Estados Unidos, por pouco tempo, se tornaram a única superpotência global. Mas agora está claro que nem um estado tão poderoso quanto os EUA pode realmente dominar e, é claro, os EUA cometeram alguns erros graves, que enfatizaram mais ainda a proposição de que é demais para uma única potência ser uma potência global.

Luís Fernando Silva Pinto No pior dos cenários, era de se esperar, talvez, que uma potência global emergisse das cinzas após um grande confronto, uma grande guerra, mas isso não aconteceu. Os Estados Unidos emergiram como única potência global num cenário bastante positivo. E o senhor diz que a oportunidade foi perdida. Nas sua opinião, ela foi perdida por quê?
Zbiginiew Brzezinski Primeiro de tudo, houve um precedente para o domínio americano de 1990, que foi o papel proeminente que os EUA desempenharam depois de 1945, mas ele não foi tão dramático e tão supremamente dominante quanto o que os Estados Unidos desempenharam em 1990. Acho que depois disso, parte do problema foi que os EUA se tornaram mais preocupados com o seu bem-estar doméstico, com as suas satisfações domésticas e, talvez, até certo ponto, tenham se afastado do mundo. Os EUA relutaram muito, por exemplo, em participar do conflito dos Bálcãs, até que os nossos aliados praticamente nos pressionaram para nos tornarmos mais ativos. E, mais tarde, George Bush II se envolveu numa guerra trágica no Iraque, o que foi um erro, que foi justificado por falsas afirmações que colocaram os EUA num conflito prolongado, que tornou tudo mais complicado para os EUA devido ao fato de que, após o ataque da Al-Qaeda aos EUA, Bush entrou no Afeganistão não só para eliminar a Al-Qaeda e o Talibã, como também para criar uma sociedade democrática moderna usando armas. Consequentemente, nos atolamos em duas guerras muito caras, muito prejudiciais, com um custo econômico extremamente alto, com um custo substancial de vidas humanas e muito prejudicial ao prestígio e à disposição dos EUA no mundo.

Luís Fernando Silva Pinto O senhor parece não acreditar no conceito do nation-building.
Zbiginiew Brzezinski Não quando as nações não estão prontas para isso. Por exemplo, a Alemanha, em 1945, após a derrota do nazismo. Temos que reconhecer o fato de que, apesar do nazismo, que durou talvez, mais de dez anos, cerca de 12 anos, a Alemanha, nos cem anos precedentes, foi uma das principais democracias da Europa. Em 1902, numa Alemanha Imperial, o prefeito eleito de Berlim era socialista. No Japão, após a Restauração Meiji, que foi a decisão de tentar copiar, no Japão, um tipo de sistema político europeu, já havia uma predisposição à adoção de algumas práticas políticas ocidentais, às quais os militares puseram um fim nos anos 1930. Para construir uma tradição, você tem que ter uma base. Esse não foi o caso no Afeganistão. Esse não foi o caso no Iraque.

Luís Fernando Silva Pinto Qual é o quadro que o senhor no mundo?
Zbiginiew Brzezinski O quadro que eu pinto, que é a chamada “visão estratégica” e que eu tento articular é que, num cenário de crescente tumulto e confusão no mundo, e num cenário em que problemas domésticos estão se tornando cada vez mais importantes, para responder aos antecedentes eficazmente, você tem que ter uma noção ampla, uma visão estratégica, e o meu argumento é que o mundo precisa de um equilíbrio político básico naquele importante continente, que é a Eurásia, ao qual os EUA estão ligados por laços econômicos, sociais e culturais. Naquela grande área do mundo, é importante, simultaneamente, revitalizar o Ocidente, pois o Ocidente ainda tem uma mensagem democrática para o mundo, ele ainda tem um sistema político, que é mais maduro e melhor do que na maior parte do mundo. O Brasil se tornou parte dele com muito sucesso. E o Ocidente se tornará mais eficaz se ele se juntar à Turquia, e há razões específicas para isso, e, por fim, a uma Rússia democrata. E, no Extremo Oriente, os Estados Unidos, para manterem esse equilíbrio com o Extremo Oriente, têm que desempenhar um papel de envolvimento ativo na promoção da reconciliação entre a China e o Japão, da moderação entre a China e a Índia, de uma parceria mais próxima com a China, se possível, mas eles devem evitar qualquer envolvimento militar na Ásia. Uma política externa eficaz, como a da Inglaterra em relação à Europa no século XIX. A Inglaterra promovia o equilíbrio de fora, mas não intervinha internamente.

Luís Fernando Silva Pinto — Então, os EUA mantendo o seu papel como uma grande potência, a China, por tudo o que o senhor disse, passando a ter um papel mais ativo, a Rússia e a Turquia se voltando para o Ocidente… Esse é um eixo Oriente-Ocidente. E quanto ao Sul? E quanto às Américas, ou o resto do mundo, ou o sul da África?
Zbiginiew Brzezinski Primeiro de tudo, neste estágio da História, o Ocidente tem sido o mais engajado globalmente, não só economicamente, mas também politicamente e na propagação de um conceito de sociedade, regra constitucional da democracia. E o Oriente está recuperando o seu papel histórico de ser importante como séculos atrás. A Índia representava 17% do PIB mundial. Quando o império inglês acabou, ele caiu para 3%, mas, agora, ele está subindo. A China, há séculos e séculos, é uma grande potência regional, agora, com um alcance global maior. Esses ainda são os centros da influência e da propagação global. A América Latina é importante e se tornará ainda mais, mas, até agora, nenhum país da América Latina está altamente envolvido nas questões políticas do mundo. Isso pode ser bom para eles e sábio da parte deles, mas isso significa que o equilíbrio global para evitar uma turbulência global tem que partir, especificamente, desses dois centros do mundo, os quais têm uma influência global maior.

Luís Fernando Silva Pinto — O senhor não vê os Estados Unidos e a China como capazes de manter um tipo bem diferente de détente, uma espécie de equilíbrio nas próximas três ou quatro décadas?
Zbiginiew Brzezinski Pelo contrário. Acho que isso é bem possível, mas não é inevitável. A lógica, como o passado nos ensina, é que os dois que lutam pela supremacia vão colidir, como aconteceu com a Espanha e a França, a França e a Inglaterra, a Inglaterra e a Alemanha e a Rússia etc. Mas eu acho que, hoje, há tanta interdependência entre as duas maiores entidades — EUA e China —, que ambos sabem que, se elas não funcionarem bem juntas, as duas vão sofrer. Mas nunca devemos subestimar a burrice da raça humana. É possível que eles, mesmo sabendo que não devem, entrem em conflito.

Luís Fernando Silva Pinto — Nas últimas muitas décadas, ou séculos, países que eram considerados socialmente injustos e fiscalmente imprudentes, agora, estão se tornando, como o Brasil, o contrário: fiscalmente contidos e maduros e com uma grande preocupação social, e eles estão enriquecendo. O senhor viu isso quando estava na Casa Branca?
Zbiginiew Brzezinski Eu achava inevitável que países como o Brasil se tornassem proeminentes, mas ser proeminente não significa estar se saindo bem. Globalmente proeminente significa estar engajado globalmente. Engajado globalmente significa que você não está só na parte boa da agenda global: pompa e cerimônia, influência no G-20 etc. Isso também significa lidar com os piores problemas do mundo, incluindo violência regional, riscos, custos.

Luís Fernando Silva Pinto — Quando o senhor estava na Casa Branca, o relacionamento entre os Estados Unidos e o Brasil não era muito fácil. O presidente brasileiro tinha acabado de anunciar o acordo militar que o Brasil tinha com os EUA, e os EUA estavam anunciando as violações aos direitos humanos no Brasil. Para o senhor, como esse problema foi resolvido? Foi um problema simples?
Zbiginiew Brzezinski Não foi um problema muito sério, pois, embora nos preocupássemos com os direitos humanos, não víamos o Brasil como um adversário. É outra história quando os direitos humanos envolvem diretamente um adversário, pois há outras questões ligadas a isso, então a luta pelos direitos humanos se torna também, de certo modo, parte do conflito com a entidade hostil. Não víamos o Brasil como um inimigo. Nós víamos o Brasil como algo que fazia parte da tradição ocidental e com potencial para a democracia. Acho que o tempo provou que essa análise estava correta. Vocês são uma democracia muito bem-sucedida.

Luís Fernando Silva Pinto — Eu gostaria de voltar ao Afeganistão. Quando o senhor estava na Casa Branca, a União Soviética invadiu o Afeganistão. Um ciclo completo se passou. Vocês tiveram o 11 de setembro, vocês tiveram uma guerra que ainda nem mesmo acabou. Qual é a maior ideia errada sobre o Afeganistão?
Zbiginiew Brzezinski Nos EUA ou em que lugar?

Luís Fernando Silva Pinto — Nos EUA, na sua opinião.
Zbiginiew Brzezinski Na minha opinião, a maior ideia errada é a de que podemos, de certo modo, por meio de presença militar num país, estabelecer a democracia e criar um Estado moderno num curto período de tempo, num país que ainda está vivendo numa era diferente e que tem tradições políticas muito diferentes. Na minha opinião, não devemos repetir o erro dos soviéticos. Os soviéticos entraram no Afeganistão achando que podiam construir lá uma cópia do regime comunista, e sabemos o que aconteceu com ele. Na minha opinião, deveríamos ter entrado lá, ter eliminado o Talibã e a Al-Qaeda, termos saído e continuado com a ajuda econômica de fora, mas não termos nos envolvido em criar uma “democracia”. Nós podíamos ter feito o que eu recomendei, mas a decisão não era minha, cabia a outros. E um dos motivos pelo que foi tão fácil foi que ajudamos os afegãos a resistirem aos soviéticos, então, os afegãos nos viam como amigos e não como invasores, como forasteiros entrando lá. Nós agimos muito rápido e com poucos homens. Usamos 200 homens das forças especiais e da Força Aérea. Só isso. Mas, infelizmente, a decisão foi permanecer lá, continuar a lutar contra o Talibã e estabelecer a democracia e uma sociedade moderna. Para mim, isso foi arriscado. Embora tenhamos sido bem recebidos em dezembro ou novembro de 2001, como amigos estrangeiros que tinham voltado para expulsar a Al-Qaeda e o Talibã, em alguns anos, isso se virou contra nós. Acho isso muito trágico. Foi um caso de boas intenções apontadas na direção errada. O caso do Iraque é diferente, pois acho que não havia necessidade de entrarmos lá. E o governo Bush, tanto o alto escalão quanto os outros também, basicamente, enganou os americanos, dizendo: “Temos que entrar no Iraque…”

Luís Fernando Silva Pinto — Por causa das armas de destruição em massa.
Zbiginiew Brzezinski Das armas de destruição em massa, que não existiam. Aquela foi uma crise criada por nós mesmos. A outra, infelizmente, foi uma crise de boas intenções, mas de péssimo julgamento.

Luís Fernando Silva Pinto — Na mesma linha, há o Irã. Quais são as lições para essa situação, para essa crise, hoje, quanto ao seu programa nuclear? O que isso nos ensina?
Zbiginiew Brzezinski A lição que tiro disso, e talvez, você tenha me visto falando na TV americana, é que não cabia a nós começarmos a guerra contra o Irã, ou seja, nós nos envolvendo diretamente no conflito, ou porque o Irã foi atacado por Israel, que fez uma retaliação contra nós e fomos levados à guerra. Acho que é muito fácil começar uma guerra, mas nunca sabemos como acabar com ela.

Luís Fernando Silva Pinto — Então, qual é a saída?
Zbiginiew Brzezinski Saída para quê?

Luís Fernando Silva Pinto — Para uma crise que parece estar aumentando.
Zbiginiew Brzezinski Primeiro de tudo, é uma questão de liderança, particularmente, nos Estados Unidos, mas na comunidade global também. Vocês estavam envolvidos, e acho que construtivamente, na questão iraniana.

Luís Fernando Silva Pinto — Exato, como a Turquia.
Zbiginiew Brzezinski Isso foi excelente. E, segundo a minha intuição, era como deveríamos ter agido também. E tem mais uma coisa que não fizemos, que é o seguinte: os israelenses dizem que estão ameaçados, ou que serão ameaçados. Isso é uma especulação e, de certo modo, provavelmente, um grande exagero, mas entendemos os temores deles. Acho que teremos que fazer por eles o que fizemos, com sucesso, pelos japoneses e pelos sul-coreanos, que é uma garantia nuclear. Se eles forem ameaçados por uma potência nuclear como a Coreia do Norte, estamos envolvidos indiretamente. Isso é muito confiável. Fizemos isso pelos europeus, durante 34 anos, contra a União Soviética, que era muito mais poderosa do que o Irã poderá ser um dia. Estamos dispostos a fazer isso no Oriente Médio, inclusive, por Israel, ou seja, se o Irã ameaçar algum deles, será como se nós tivéssemos sido ameaçados.

Luís Fernando Silva Pinto — O senhor recebeu Deng Xiaoping em Washington.
Zbiginiew Brzezinski Eu o recebi em minha casa.

Luís Fernando Silva Pinto — Exato. O senhor esperava que a relação comercial entre a China e os Estados Unidos teria essa importância e ganharia essa velocidade?
Zbiginiew Brzezinski A magnitude do desenvolvimento chinês foi uma surpresa para mim. Ele foi muito mais rápido do que eu esperava. Talvez, esse seja um mau julgamento desculpável, pois, talvez, tenham sido os mais rápidos e maiores desenvolvimento e modernização de um país em toda a História. A escala é impressionante. Se você vai à China hoje e a comparar à China que eu vi há 30 anos, é um país totalmente diferente. Ele foi muito maior e mais intenso do que eu esperava.

Luís Fernando Silva Pinto — O senhor não teme a China?
Zbiginiew Brzezinski Não, eu não a temo. Eu temo a possibilidade de erros graves por parte deles e da nossa parte. Eles são humanos, nós também. É uma adaptação difícil. Nós temos sido o nº 1 e pretendemos continuar sendo. Se fizermos coisas certas, podemos continuar a ser durante um tempo, mas a China está ascendendo rápido. Ela pode nos superar. Então, naturalmente, há uma preocupação. Naturalmente, há alguma impaciência e triunfalismo por parte dos chineses, então, a chance de cálculos errados existe, mas acho que, como eu já lhe disse, a interdependência entre nós e os chineses é tanta, que a melhor sabedoria é, para nós, estarmos seriamente empenhados no esforço de fazer essa parceria funcionar. Acho que seremos capazes de encontrar uma fórmula nesse contexto que nos permitirá prosseguir inteligentemente. E, talvez, ter alguma estrutura que nos aproxime livremente. Uma espécie de condomínio vago é a realidade que permite colaboração global em larga escala.

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