Direito de Defesa

Jamais advogarei para um assassino culpado

Autor

  • Manoel Pastana

    é procurador regional da República no Rio Grande do Sul e autor do livro autobiográfico De Faxineiro a Procurador da República.

6 de junho de 2012, 11h35

A respeito do artigo “Direito de Defesa agoniza, mas não morre”, de autoria do advogado Fábio Tofic, publicado em vários órgãos de imprensa, criticando a representação que fiz para que seja apurada a origem dos recursos utilizados por Cachoeira para pagar seu advogado, tenho a dizer que o equívoco já começa pelo título. Com os inúmeros recursos previstos na nossa legislação, muitas vezes utilizados como expedientes meramente protelatórios, é irreal dizer que o direito de defesa agoniza, mormente para quem tem R$ 15 milhões para pagar advogado, que se utiliza muito bem das oportunidades legais, a fim de não enfrentar o mérito das imputações.

Aliás, a própria Defensoria Pública tem conseguido muitas vitórias, inclusive a que permitiu substituição da pena privativa de liberdade a condenados por tráfico de drogas. Talvez o que agonize seja a esperança do cidadão honesto em ver o fim da impunidade.

O segundo equívoco está na afirmação: “A proposta esconde objetivo claro: acovardar e desmoralizar a advocacia e fulminar, assim, o sacrossanto direito de defesa dos acusados!”. O advogado tenta me colocar como inimigo da advocacia e do direito de defesa. A título de informação, por mais de uma vez, atuando perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, fui responsável pela liberdade de advogados acusados, que se encontravam presos e o Tribunal não tencionava libertá-los.

Sempre que me convenço da inocência do acusado, manifesto-me favoravelmente à defesa. É que o Ministério Público é fiscal do cumprimento da lei, e se cumpre a lei não apenas quando se condena culpados, mas também quando se absolve inocentes. Essa é a minha concepção do direito.

Fui advogado público (Procurador Federal do INSS), embora na época fosse possível a advocacia privada, deixei o cargo para ingressar no Ministério Público Federal, inclusive com perda financeira, uma vez que no MPF é vedada a advocacia. Assim o fiz, porque no INSS eu tinha o dever de defender aquela Autarquia, ainda que o meu entendimento pessoal fosse contrário. Vim para o MPF, porque a independência funcional oportunizou-me agir de acordo com a lei e a minha consciência. Não foram poucas as vezes em que me manifestei em prol da defesa, mormente agora que atuo na segunda instância, como custos legis.

Estou escrevendo um livro, com o título Os bastidores das Carreiras Jurídicas, no qual falo de cada carreira da área jurídica. E a primeira que falo é a do advogado, ressaltando a importância do seu mister. Explico, por exemplo, que se o juiz errar, o tribunal corrige, mas se o advogado errar, mormente na advocacia cível, é muito difícil se corrigir, porquanto é o advogado que inicia a causa, e que direciona a prestação jurisdicional. Com efeito, ele deve ter todo o cuidado para escolher a ação correta e o meio postulatório adequado.

Pretendo advogar quando me aposentar, mas manterei o mesmo sentimento de justiça que sempre tive. Por exemplo, jamais advogarei para um assassino, que eu repute culpado, ainda que ele me oferecesse todo o dinheiro do mundo. Por outro lado, se considerá-lo inocente, advogarei até de graça. Inclusive, em 2002, no Amapá, invocando a condição de Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, impetrei Habeas Corpus, perante a Justiça Estadual do Amapá, e consegui a liberdade de duas pessoas condenadas injustamente a mais de 30 anos de reclusão — e que estavam presas fazia cinco anos.

Assim o fiz porque me convenci de inocência dos condenados. Preocupo-me com o cumprimento da lei, seja para condenar, seja para absolver. Por exemplo, deixou-me triste a condenação do pai e da madrasta da garota Isabela Nardoni. Minha experiência me diz que foi mais um grave erro judiciário cometido no Brasil (no livro a ser publicado sobre os bastidores da carreira jurídica comento esse caso).

Dentre outros equívocos presentes no artigo, o terceiro e derradeiro que comentarei está no trecho: “A proposta é tão demagógica e sediciosa que, se o procurador quisesse mesmo levá-lo a ferro e fogo, deveria mandar incinerar todo dinheiro que o grupo de Cachoeira transferiu para os cofres públicos nos últimos anos, por meio do pagamento de taxas, impostos, etc.” Em outras palavras, o articulista alega que, se o dinheiro produto de crime não serve para pagar os honorários de advogado, também não serviria para pagar impostos, taxas etc. A argumentação é absolutamente fora de propósito, pois a própria Constituição Federal prevê o confisco de bens e valores produtos de crime, permitindo a sua utilização pela sociedade.  

Por outro lado, a lei não dá imunidade aos advogados quanto à origem dos recursos recebidos a título de honorários. A imunidade que o advogado ostenta é no exercício da defesa, não quanto aos recursos utilizados na sua contratação. Fosse assim, seria lícito o assassino pagar o seu defensor com o dinheiro recebido para matar a vítima.

Nessa senda, imaginemos que um assaltante roubasse R$ 100 milhões de um banco. Assim que ele aparecesse como suspeito, corresse e contratasse um advogado, que lhe cobrasse R$ 50 milhões de honorários advocatícios.  O advogado recebesse o dinheiro, contabilizasse-o como verbas decorrentes de seu trabalho, pagasse os impostos e fizesse a defesa do suspeito.

Ao final, o assaltante acabasse sendo condenado, o dinheiro roubado fosse recuperado, exceto R$ 50 milhões, e o criminoso não dissesse o que fora feito com tal valor. Suponhamos que, por força do artigo 15 da Lei 9.613/98, o COAF informasse movimento financeiro tão alto na conta do advogado. O causídico estaria imune à investigação? Claro que não, pois não há nenhuma lei que o imunize de justificar a origem lícita de seus honorários.

Os recursos provenientes de crime devem ser confiscados e revertidos em favor da sociedade até porque tais valores, na maioria das vezes, são surrupiados da própria sociedade, que suporta carga elevadíssima de tributos. Tais recursos, contudo, não podem servir para pagar honorários advocatícios, serviços médicos, etc., porque vão contra o objetivo da Lei de Lavagem de Dinheiro, que visa impedir que o criminoso tire proveio do próprio crime. Assim, se o delinquente não tem recursos lícitos para pagar advogados caros ou serviços médicos particulares deve utilizar o serviço da Defensoria Pública, assim como os hospitais públicos, o que, aliás, faz a maior parte da sociedade brasileira.

Por outro lado, permitir o recebimento de honorários advocatícios, sem perquirir a origem, poder-se-á infringir outro objetivo da lei, que visa impedir que recursos do crime sejam branqueados. Evidentemente que a razoabilidade não obriga o advogado a investigar sempre a origem do pagamento dos seus honorários.

Assim, se o Cachoeira estivesse pagando, por exemplo, R$ 50 mil, com uma renda anual de R$ 200 mil, poder-se-ia cogitar ser de origem lícita. Todavia, R$ 15 milhões a título de honorários, para quem tem renda anual de R$ 200 mil e ainda está com os bens bloqueados, foge da razoabilidade. Em tal hipótese, tanto a Lei de Lavagem de Dinheiro como o Código Penal exigem que o causídico se preocupe em saber de onde seu cliente conseguiu tanto dinheiro, pois a norma penal, nesse caso, presume que seja de origem ilícita.

Contudo tal presunção é juris tantum (relativa), basta que o advogado prove o contrário. É isso que busco com a representação. Quero que o advogado prove a origem lícita dos recursos recebidos de Cachoeira, pois a presunção legal, pela situação jurídica dele, é que os recursos são de origem ilícita.

Jamais tentei interferir no direito de defesa, até porque seria ingenuidade da minha parte tentar intimidar um advogado com a experiência de quem defende Cachoeira. Apenas quero, como a lei exige, que seja esclarecida a origem de tão elevados honorários, recebidos ou a receber, de quem reconhecidamente não tem renda lícita para tanto.

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