Direito de defesa

Na CPI, cidadão tem mesmo direito de falar ou calar-se

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5 de junho de 2012, 9h36

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em recente decisão na qual rejeitou pedido dos advogados do empresário de jogos ilegais, Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, que tentavam impedir seu depoimento à CPMI que investiga suas atividades, entre outras coisas, lembrou que o investigado tem três deveres: comparecer à comissão quando convocado, responder às indagações e dizer a verdade. 

Em contrapartida, tem um direito inalienável: o de permanecer em silêncio, “como expressão da prerrogativa constitucional contra a autoincriminação”. Dias depois, o ministro Dias Toffoli concedeu Habeas Corpus para Gleyb Ferreira da Cruz, apontado como “laranja” de empreendimentos de Cachoeira, que lhe garantiu o direito de ser assistido por seus advogados, de se comunicar com eles durante a inquirição e de permanecer em silêncio sem ser submetido a qualquer medida privativa de liberdade ou restritiva de direitos por conta do exercício dessas prerrogativas constitucionais. 

O próprio ato de investigados recorrerem ao STF para ter garantido um direito fundamental pode parecer perda de tempo. Mas fatos recentes mostram que não é bem assim. A discussão em torno do direito de um investigado permanecer calado como expressão da garantia de não produzir prova contra si mesmo voltou à tona graças ao bate boca entre o deputado federal Silvio Costa (PTB-PE) e o senador Pedro Taques (PDT-MT) durante o depoimento do senador Demóstenes Torres (sem partido-GO) à CPMI, na semana passada — clique aqui para ver o vídeo no Youtube

Silvio Costa entende que o silêncio significa culpa — talvez pela falta de formação jurídica. Técnico agrícola e empresário da educação, conforme consta de sua biografia no site da Câmara dos Deputados, Costa atacou Demóstenes, que avisou que iria usar seu direito constitucional de permanecer em silêncio. “O seu silêncio é a mais perfeita tradução da sua culpa. Esse seu silêncio, ele escreve em letras garrafais: ‘Eu, Demóstenes Torres, sou, sim, membro da quadrilha do senhor Cachoeira. Eu, senador Demóstenes Torres, sou, sim, o braço legislativo da quadrilha do senhor Cachoeira’.”

O senador Pedro Taques, ex-procurador da República e professor de Direito Constitucional, se viu obrigado a intervir para colocar ordem na desinformação: “Nós todos aqui, como parlamentares, devemos obedecer a Constituição da República. Um senador da República não pode tratar um parlamentar, não pode tratar quem quer que seja, com indignidade. Não me interessa quem seja o investigado. Pessoas morreram no mundo em razão do direito constitucional ao silêncio”.

Não custa registrar que Taques é um dos integrantes mais ativos da CPMI do Cachoeira. Fato que demonstra que é possível investigar sem atropelar garantias fundamentais de qualquer dos investigados, como se faz na maior parte dos países civilizados do mundo. Não fossem parlamentares como Silvio Costa, os depoentes investigados sequer necessitariam recorrer ao Supremo em busca de Habeas Corpus preventivos, já que estudantes de Direito aprendem, desde o primeiro ano dos bancos acadêmicos, a importância do direito de permanecer calado.

Além do mais, como lembra o procurador de Justiça no Rio Grande do Sul e constitucionalista Lênio Streck, o deputado que escracha um acusado por este estar ao abrigo de uma garantia fundamental comete falta funcional. “Ou seja, também ele poderia ser processado por falta de decoro. Quer maior falta de decoro do que fazer escárnio com um direito fundamental? Além de tudo, é um péssimo exemplo. Um legislador deve ser o guardião das garantias e não o seu algoz!”, defende Streck.

Garantia universal
O direito de permanecer em silêncio, de o réu não se autoincriminar durante as fases de um processo penal — investigação e julgamento — sem que isso sirva de indício contra ele próprio é consagrado como direito fundamental em incontáveis sistemas jurídicos de todo o mundo.

Nos Estados Unidos, onde o enunciado “você tem o direito de permanecer calado” migrou para a cultura popular, a garantia constitucional é petrificada na exigência de que o cidadão seja correta e inequivocamente informado do seu direito de não se pronunciar, de se recusar a colaborar com as autoridades. Ou seja, naquele país, tornou-se imprescindível à efetivação da garantia constitucional que o cidadão detido em custódia e o réu sejam informados previamente de que “calar não implica em consentir” e nem em assumir a responsabilidade de uma acusação que lhe seja imputada.

A Suprema Corte americana decidiu, na década de 1960, que os direitos assegurados pela quinta e sexta emendas de sua Constituição só encontram plena vigência se o cidadão souber que dispõe deles. São as chamadas Advertências Miranda, estabelecidas em 1966 pela Suprema Corte depois que um réu acusado de sequestro e estupro, Ernesto Miranda, teve a prisão revogada porque suas garantias asseguradas pela Constituição foram ignoradas. Somente mais tarde, após reformulação do inquérito e da ação judicial, ele voltou para trás das grades.

Tratava-se, desde o início, de um réu confesso. Porém, nem mesmo por ter assumido o crime, seus direitos constitucionais poderiam ser negligenciados, de acordo com o entendimento dos juízes do alto tribunal à época. As Advertências Miranda também devem comunicar ao suspeito de que ele tem direito a dispor dos serviços de um advogado.

O direito de não se pronunciar tornou-se tão paradigmático que, além de ser matéria de Direito Penal, foi amplamente irradiado para o campo dos Direitos Humanos. O advogado colombiano Juan David Riveros-Barragán, professor da Universidad del Rosario de Bogotá, e da Faculdade de Ciências Jurídicas da Pontifícia Universidade Javeriana, em Cali, lembrou, em um estudo comparado sobre o assunto, que a garantia está universalizada em um sem número de documentos e estatutos internacionais. É o caso dos estatutos da Corte Penal Internacional, do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, do Tribunal Penal para Ruanda, da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional dos Direitos Civis.

Avalia-se que, nos EUA, um milhão de ações penais sejam anualmente canceladas porque os réus não foram previamente informados do seu direito de não se pronunciar quando inquiridos por autoridades. A questão do direito ao silêncio é tão ampla no país que a preocupação com a incapacidade dos cidadãos de compreendê-lo assumiu uma posição central no Direito penal americano na última década.

Ciência do silêncio
Em razão da ausência de parâmetros para a leitura dos direitos e por conta de um amplo histórico de abuso policial, o problema tornou-se tão complexo que acabou repercutindo no desenvolvimento de um subcampo da ciência forense no país. A revista Consultor Jurídico entrevistou, em 2010, o maior especialista sobre o assunto nos EUA, o psicólogo forense Richard Rogers — clique aqui para ler a entrevista.

Seus estudos avaliam o impacto para o sistema judicial americano da incompreensão, por parte dos réus, do direito de não se autoincriminar. Com recursos financiados pela renomada National Science Foundation, os estudos do professor Rogers já foram citados, em sessão de argumentação oral, pelos juízes da Suprema Corte (no caso Flórida contra Powell, de 2010), influenciaram também a formulação de políticas promovidas pela American Bar Association (a Ordem dos Advogados dos EUA) e são comumente mencionados em tribunais de apelação (segunda instância) em todo o país.

Em 2011, numa decisão polêmica, a Suprema Corte acabou estendendo a interrogatórios realizados com não-suspeitos a prerrogativa de se informar sobre o direito de se permanecer em silêncio. No caso J.D.B versus o Estado da Carolina do Norte, juízes da Suprema Corte decidiram que o depoimento colhido por policiais de uma criança que conhecia dois suspeitos, realizado em uma escola e com anuência do diretor e professores da instituição, deveria ser retirado dos autos de um processo que condenou dois réus por arrombamentos de casas. Isso porque os dois agentes que conduziram o interrogatório na sala de reunião do colégio não informaram previamente ao estudante de 13 anos que ele não era obrigado a falar.

Na França, até mesmo um famigerado e controverso símbolo da cultura policial será reformulado em favor da reafirmação da garantia constitucional de não se produzir provas contra si mesmo. O tradicional garde à vue, expediente legal que estabelece que o suspeito tem o direito de consultar seu advogado logo nos primeiros 30 minutos de detenção pela Polícia, mas que, depois, pode ser submetido a interrogatórios, num período entre 48 e 96 horas, sem a presença do mesmo, será mudado para abranger a comunicação, ao investigado, de que ele não é obrigado a falar. 

O Parlamento francês aprovou uma lei que passa a vigorar neste mês obrigando os investigadores a informarem os réus de que estes podem usufruir o direito de não se pronunciar sem que isso incorra em indícios de culpabilidade. Em abril, um tribunal francês decidiu que a mudança, na verdade, devia entrar em vigor imediatamente naquele momento.

Fábrica de pizza
A estratégia de atacar os investigados pode ser boa para somar votos, mas costuma ser contraproducente para o objetivo de uma CPI, qualquer uma: além de municiar o Ministério Público com eventuais descobertas, aperfeiçoar o ordenamento jurídico para evitar que os fatos que deram à luz a comissão se repitam.

Um bom exemplo de contribuição legislativa resultante de uma CPI é a do projeto que que aumenta o prazo de prescrição de crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes. De acordo com o texto, a prescrição do crime começa a contar somente depois que a vítima completar 18 anos de idade. A prescrição segue a contagem normal nos casos em que já haja ação penal contra o acusado do crime. O projeto aprovado modifica o artigo 111 do Código Penal, que regula as hipóteses de prescrição criminal, e contou com o apoio do Ministério da Justiça. A proposta surgiu das inbestigações e debates ocorridos na CPI da Pedofilia.

Uma CPI tem os mesmos poderes de investigação de autoridades policiais e da Justiça. Pode convocar investigados para depor, pode quebrar sigilos de pessoas físicas e jurídicas e fazer interrogatórios com amplo acesso ao material colhido por outras autoridades, como Polícia, Ministério Público e órgãos administrativos, como Receita Federal e Coaf, por exemplo.

Por isso mesmo tem de proceder dentro dos mesmos limites dos demais órgãos de investigação. Só pode quebrar sigilos com fundamentação razoável e tem de permitir que o investigado use suas garantias constitucionais quando achar que deva, sob pena de ver anulado depois, pelo Judiciário, boa parte de seu trabalho.

Mas a impressão de que tudo acaba em pizza nas CPIs vem de outra peculiaridade desse instrumento de investigação parlamentar: é que as comissões parlmentares de inquérito não têm poder de condenar criminalmente. Por mais crimes que tenha cometido o investigado, não são os deputados que vão mandá-lo para a cadeia. O máximo que uma CPI pode fazer é encaminhar para a Polícia ou para o Minstério Público o relatório final com suas conclusões. Caberá à polícia e ao MP instruir o processo que será levado à justiça e aí sim, haverá um juiz para julgar e, se for o caso, condenar.

Mais produtivo seria se deputados e senadores, no lugar de discursos tão contundentes quanto rasos — como dizer, por exemplo, que Demóstenes Torres deveria ser processado pelo Conar por propaganda enganosa —, fizessem a análise de provas e questionassem os depoentes sobre os crimes que ali encontram indícios. E perguntassem se ele quer se defender das acusações. Não usar a Comissão como palanque para atacar quem quer que seja.

Tiro no pé
De outro lado, a história mostra que a investigação parlamentar pode render melhores resultados quando o depoente se sente encorajado a “abrir seu coração”. Sem ser atacado e humilhado por deputados e senadores blindados com a imunidade parlamentar, o marqueteiro Duda Mendonça, em agosto de 2005, confessou a prática de ao menos dois crimes: evasão de divisas e sonegação fiscal. Não foi preso ou humilhado e, agora, terá de acertar as contas com a Receita Federal. Bom para o erário e melhor para as investigações.

De cara limpa, Duda deu mais pistas aos parlamentares sobre os fatos investigados do que todos os depoentes que o precederam munidos de Habeas Corpus preventivos contra uma eventual prisão em flagrante por falso testemunho. Também foi tratado com muito mais cordialidade por seus inquiridores.

O respeito às garantias de investigados em CPIs foi construído por muitos embates. Um dos primeiros advogados a pedir ao Supremo um Habeas Corpus preventivo para seu cliente depor no Congresso foi o mineiro Marcelo Leonardo, que representa o publicitário Marcos Valério. Em julho de 2005, durante à CPI dos Correios, que investigava, na verdade, o mensalão, Leonardo entrou com pedido de Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal para garantir que Valério pudesse se calar para não se auto-incriminar durante o interrogatório no Congresso Nacional.

A iniciativa de Marcelo Leonardo foi seguida por todos os advogados cujos clientes tivessem o silêncio como melhor opção nos interrogatórios. Nem Leonardo, nem nenhum de seus colegas inventaram qualquer novidade. Como bons conhecedores da lei, simplesmente lançaram mão de um dispositivo da Constituição que garante a todo cidadão o direito de não se auto-incriminar. Diz a Constituição em seu artigo 5º, inciso LXIII: "O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permancer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado".

O mesmo artigo 5º da Constituição, que enfeixa os direitos e garantias fundamentais do cidadão, no inciso LV, garante ao preso o direito — não o dever, mas o direito — de falar para se defener: "aos aucsados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa". Ou seja, a mesma Constituição que garante o direito de ficar calado para não se incriminar, garante também o direito de falar para se defender. Calar e falar são, portanto, direitos do investigado. Obrigação, mesmo, têm os investigadores de produzir provas. A prática inquisitorial de arrancar confissões da idade média já não cabe no ordenamento jurídico de países civilizados contemporâneos. 

O presidente da CPI à época, senador Delcídio Amaral (PT-MS), solicitou ao Supremo que não mais concedesse os Habeas Corpus aos depoentes da CPI para não atrapalhar o bom andamento das investigações. Os Habeas Corpus continuaram sendo concedidos, mesmo quando para boa parte das pessoas parecesse um absurdo garantir aos interrogados o suposto “direito de mentir” na CPI. Na verdade, tratava-se apenas de garantir um direito constitucional.

Luiz Guilherme Vieira, advogado do ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes, durante audiência da CPI do Sistema Financeiro, em 26 de abril de 1999, foi quem inaugurou o papel fundamental do advogado na CPI aconselhando seu cliente a ficar calado, já que estava ali como investigado e não como testemunha. Por seu comportamento, Vieira foi agredido e acabou expulso do recinto, provocando o protesto da OAB. Mas fez escola.

Na ocasião, ainda não havia um Pedro Taques no Parlamento para lembrar aos colegas parlamentares que investigados têm de ser tratados com decência, não importa a gravidade do crime pelo qual estejam sendo investigados. Políticos estão acostumados com palanques, frases contundentes e o aplauso fácil de correligionários e eleitores. Tudo como parte do jogo democrático. Mas para o aperfeiçoamento das instituições do país, é de bom tom que saibam diferenciar a hora de fazer campanha daquela de trabalhar para valer e ajudar a depurar os maus costumes.

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