Presumidamente Inocente

Preso provisório deve participar das eleições

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27 de julho de 2012, 13h49

Sempre que se aproxima o período eleitoral vem à tona a questão do direito de voto de apenados condenados e dos presos preventivos.

Em primeiro lugar, temos a restrição ao direito de voto concernente aos presos condenados. A Constituição Federal (artigo 15, inciso III) prevê a suspensão dos direitos políticos de sufrágio ativo (direito de voto) e passivo (direito de ser votado) dos condenados presos como consequência automática da sentença condenatória com trânsito em julgado (independentemente da natureza ou espécie de infração — crime doloso ou culposo, ou contravenção — e qualquer que seja a espécie de pena aplicada), enquanto durarem os efeitos da sentença condenatória, isto é, terá incidência a suspensão inclusive no período de suspensão condicional da pena (‘sursis’), livramento condicional, prisão albergue ou domiciliar. A suspensão somente cessa com o cumprimento ou a extinção da pena pela ocorrência de prescrição da pretensão executória[1].

Ademais dessa hipótese de suspensão dos direitos políticos em decorrência de condenação criminal transitada em julgado, há também uma hipótese de inelegibilidade legal (impede o registro da candidatura) — prevista no parágrafo 9º, artigo 14, da CF, e nas LC 64/1990, 81/1994 e 135/2010, aplicável aos que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, portanto, nesta última hipótese, sem a necessidade do trânsito em julgado, pelos crimes:(a) contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;(b) contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; (c) contra o meio ambiente e a saúde pública;(d) eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; (e) de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; (f) de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; (g) de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; (h) de redução à condição análoga à de escravo; (i) contra a vida e a dignidade sexual; (j) praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.

Na verdade, as restrições legislativas ao direito de voto dos condenados configuram uma prática anacrônica e sem justificação, ao menos como regra geral. É mais uma relíquia de uma concepção arcaica da inaptidão moral dos criminosos. Atualmente, o direito de voto não tem nenhuma relação com a questão de saber se o eleitor é um bom ou mau cidadão. A virtude do coração e do espírito não está mais vinculada ao caráter sagrado do gesto de votar. Esta concepção elitista, arbitrária e discriminatória, invocada no passado para justificar a exclusão das mulheres, dos pobres ou dos negros, cedeu lugar a uma concepção igualitária do direito de voto. Ademais, segundo a concepção mais moderna do liberalismo, a finalidade do contrato social não é simplesmente a de suprimir os impulsos individuais, mas, sobretudo, de promover a liberdade humana e a igualdade.

A jurisprudência comparada de diversos tribunais considera inconstitucional a exclusão do direito de voto aos presos condenados. A Corte de Apelação do Canadá considerou que não está justificado que o Estado exclua simbolicamente as pessoas presas para reforçar o conceito de cidadão responsável e, em consequência, para valorizar o direito de voto aos olhos da população. A exclusão simbólica é ilusória. A preservação do Estado e o valor do direito de voto não é seguramente posto em perigo pela outorga do direito de voto a uma fração ínfima de pessoas que cometeram um crime, e não basta para justificar a supressão de direitos constitucionais. Uma violação única e isolada não implica um repúdio integral do contrato social e o criminoso paga o preço que é a sentença imposta. É mais plausível que a verdadeira razão da exclusão seja satisfazer um estereótipo muito difundido segundo o qual o preso representa uma forma de vida inferior e nociva da qual todos os direitos devem ser retirados sem distinção. Quando muito, a exclusão deveria ficar reservada aos delitos mais graves, como a traição ou a insurreição e não pode ter um caráter absoluto[2].

A jurisprudência recente do Tribunal Europeu de Direitos Humanos estabelece a seguinte distinção: (a) por um lado, considera que a proibição genérica do direito de voto que atinge um grupo de presos condenados de modo geral, automático e indiscriminadamente, baseada exclusivamente no fato de que estão cumprindo uma pena de prisão, para um amplo âmbito de crimes e penas, portanto, independentemente da duração da sua pena e da natureza ou gravidade do seu crime e de suas circunstâncias pessoais, constitui uma violação do Convênio Europeu de Direitos Humanos, por ofensa ao princípio da proporcionalidade[3]; (b) por outro lado, o TEDH declara admissível a proibição — temporária ou permanente — do direito de voto do preso condenado quando a medida não é aplicada a todos os indivíduos sentenciados a uma pena de prisão, de modo que um grande número de presos condenados não fica privado do direito de voto nas eleições, mas somente para aqueles condenados a uma pena de prisão de três anos ou mais. Não há violação da CEDH quando a restrição é proporcional à gravidade do crime e à conduta do ofensor e à severidade da pena aplicada[4].

A PEC 65/2003, de autoria do senador Pedro Simon e de relatoria do senador Álvaro Dias, propôs nova redação ao artigo 14 e revogação do inciso III do artigo 15 da Constituição Federal, para permitir o voto facultativo dos presos condenados, mantendo, porém, sua inelegibilidade. Assim, os condenados aprisionados em regime fechado, semiaberto ou aberto terão os mesmos direitos que os analfabetos, maiores de 70 anos e maiores de 16 e menores de 18 anos, cuja participação nos pleitos é facultativa.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) aprovou parecer, em 27 de outubro de 2005, elaborado por Carlos Lélio Lauria Ferreira, manifestando apoio à PEC em tramitação no Congresso Nacional, visando atribuir o direito de voto também aos condenados com sentença condenatória com trânsito em julgado, ficando suspenso apenas o direito político negativo, ou seja, o direito de ser votado, enquanto durarem os efeitos da sentença condenatória, colocando-os na mesma categoria de inelegíveis[5].

Em segundo lugar, historicamente se observa também a restrição ao direito de voto dos presos preventivos (incluídos os adolescentes internados, maiores de 16 anos), que, todavia, deveriam conservar seus direitos políticos, porquanto não há qualquer restrição ao direito de voto na Constituição Federal nem no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A Recomendação Rec (2006) 13, adotada em 27 de setembro de 2006, pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa, estabelece em seu item 39 que “os detidos devem poder votar durante as eleições e referendos públicos que ocorrem durante o período de prisão provisória”.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária aprovou parecer, em 27 de outubro de 2005, no sentido que “o preso provisório, não tendo ainda sido condenado, tem o direito de votar, não havendo qualquer razão para a supressão desse direito com justificativas de caráter meramente administrativo”. Ademais, considerou que “o voto do preso provisório poderia ser viabilizado com mudança da legislação eleitoral, com a flexibilização do domicílio eleitoral”.

A Resolução 23.219, do TSE, de 2 de março de 2010, relator ministro Arnaldo Versiani, determinou que os juízes eleitorais, sob a coordenação dos TREs, criassem seções eleitorais especiais em estabelecimentos penais e em unidades de internação de adolescentes, a fim de que os presos provisórios (sem condenação criminal transitada em julgado) e os adolescentes internados (submetidos à medida socioeducativa de internação ou à internação provisória) tivessem assegurado o direito de voto nas eleições de 2010.

O direito constitucional de sufrágio dos presos provisórios sempre ficou condicionado a argumentos burocráticos, tais como risco para a segurança, impossibilidade logística de instalar urnas, inclusive eletrônicas, nos estabelecimentos prisionais, falta de recadastramento em tempo hábil conforme o calendário eleitoral, ausência de endereço fixo (!); inviabilidade ante o atual sistema eleitoral informatizado; impossibilidade de levá-los às suas respectivas seções eleitorais, etc.

No estágio atual em que já se consolidou o sistema de votação eletrônica, o direito de voto (sufrágio ativo e passivo) dos presos provisórios não pode ser limitado em nenhum caso, mas devem ser criados mecanismos que viabilizem esse direito constitucional ou, pelo menos, confiram aos detidos a possibilidade de votar pessoalmente em urnas instaladas nos presídios. Uma vez que os presos provisórios são presumidamente inocentes, seu status custodiae não pode representar uma causa de ‘indignidade moral’ e devem ser colocados em condição de exercitar o seu direito constitucional de registro da candidatura (sufrágio passivo), bem como de participação nas eleições (sufrágio ativo), ressalvadas as hipóteses de incapacidade civil ou de inelegibilidade e impedimento de registro da candidatura expressamente previstas nas LC 64/1990, 81/1994 e 135/2010, e restrita a um rol limitado de crimes.

Tendo em vista que atualmente o Brasil tem 217.146 mil presos preventivos (42,2%), conforme dados do Depen do Ministério da Justiça de 10 de abril de 2012, seria interessante que a classe política contasse efetivamente com os votos desse expressivo segmento de eleitores.


[1] A Súmula n. 09 do TSE dispõe que a suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou extinção da pena, independendo de reabilitação ou prova de reparação dos danos”.

[2] Vide, casos Belczowiski v. Canadá (1992); Sauvé v. Canadá (nº 1), de 1992; Sauvé v. the Attorney General of Canadá (n. 2), de outubro de 2002; August and Another v. Electoral Commission and Others, de 1999, da Corte Constitucional da África do Sul; O Tribunal Superior da Austrália também já decidiu contra a proibição de votação geral que previa a perda do direito de voto no caso de penas de prisão de três anos ou mais (caso Roach Comissário v. Electoral Commissioner, j. 26 de setembro de 2007); LANDREVILLE, Pierre; LEMONDE, Lucie. “Le Droit de vote des personnes incarcérées au Canadá”. Revue de Science Criminelle et de Droit Penal Comparé, n. 2, abril/junho, pp. 307-310, 1994; SANGUINÉ, Odone. Prisión provisional y derechos fundamentales, Tirant lo blanch, Valencia, 2003, pp.74-75; ID. Efeitos colaterais da prisão cautelar. In: Diogo Rudge Malan; Flávio Mirza. (Org.). Setenta Anos do Código de Processo Penal Brasileiro – Balanço e Perspectivas de Reforma – 2011. Rio de Janeiro: Livraria e editora Lumen Juris, 2011, pp. 309-360.

[3] SSTEDH, casos Hirst v. Reino Unido (nº 2, Grande Câmara), de 06/10/2005, §§ 32-61 e 77 e 82; Scoppola v. Itália (nº 3), Grande Câmara, j. 22/05/2012, § 96.

[4] STEDH, caso Scoppola v. Itália (n. 3), Grande Câmara, j. 22/05/2012, §§ 105-107.

[5] FERREIRA, Carlos Lélio Lauria. “O voto do preso”, RBCCrim, n. 61, julho/agosto, 2006, pp.275-315.

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