Grandes contratações

LRF não impede licitação de obras no fim do mandato

Autor

  • Daniel Bulha de Carvalho

    é advogado especialista em Direito Público pela PUC Minas graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-Campinas e pós-graduando em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral Paulista.

25 de julho de 2012, 15h35

Tem o breve estudo o condão de analisar a contratação de obras públicas de grande vulto nos dois últimos quadrimestres de mandato ante as restrições balizadas pelo artigo 42 da Lei Complementar 101/00, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Sua criação veio disciplinar os artigos 163 e 169 da Constituição Federal que exigem lei qualificada para disciplinar as “finanças públicas”, ou seja, a entrada e saída de recursos financeiros dos cofres públicos.

Nesse diapasão, a LRF influenciou diretamente as licitações e contratos administrativos, acrescendo uma série de comandos, condicionamentos e cautelas nas suas estruturas jurídicas. É possível se verificar que as determinações específicas da LRF modificaram e sistematizaram ainda mais a geração de despesa nas licitações e contratos administrativos. Foram aduzidas novas cautelas, houve um crescimento da importância da fase interna dos certames, com especificações e controles adicionais.

Assim, como a maior parte dos processos de licitação terá ao seu fim uma despesa, e a decisão de seguir ou não com o certame se dá ainda na fase interna, esta deverá adequar-se a algumas normas da LRF.

O artigo 16, parágrafo 4º, inciso I, menciona expressamente que todos os ditames contidos no caput constituem condições prévias para o empenho e licitação de serviços, fornecimentos de bens ou execução de obras.

O principal objetivo das restrições descritas no artigo 16 da LRF é evitar que o excesso de contratações comprometa o equilíbrio orçamentário. O conteúdo do artigo 16, caput, dispõe que o aumento de despesa gerado a partir da criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental será acompanhado de:
I — estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes;
II — declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

Observa-se a partir da leitura do inciso I, que não basta a medição do impacto sobre o exercício corrente e sim sobre três exercícios, o vigente e os dois subsequentes. Há também uma referência não somente do impacto orçamentário, mas também do financeiro, demonstrando uma preocupação com o lastro financeiro que extinguirá, através do pagamento, a obrigação criada.

O inciso II exige a declaração formal do ordenador da despesa, que é “toda e qualquer autoridade de cujos atos resultem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou pela qual esta responda”[1], cria um comprometimento direto do ordenador pelo rigoroso acompanhamento do aumento de despesa. Como decorrência de tal medida, o gerenciamento orçamentário e financeiro tem mais um elemento de checagem obrigatória antes de emitir qualquer empenho ou autorizar movimentações financeiras: verificar se implica ou não aumento de despesa.

Importante destacar que a previsão de recursos orçamentários não se confunde com a disponibilidade de recursos financeiros, sendo que a primeira é uma previsão de gastos estabelecida na lei orçamentária e, a segunda, refere-se à existência de numerário disponível para pagamento no momento oportuno.

Assim, ambas são exigidas para a realização das licitações de obras, serviços e compras, apesar de diferidas no tempo: os recursos orçamentários como pré-requisito da licitação e os recursos financeiros como decorrência.

Neste esteio, outro dispositivo da LRF impôs regras acerca do dispêndio de recursos no ultimo ano de mandato, mais precisamente nos dois últimos quadrimestres, objeto da presente análise e fruto de enormes discussões e divergência doutrinária. O artigo 42, da LRF, assim dispõe:
Art. 42 — É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos 2 (dois) quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.

A ideia do dispositivo em comento é que o dispêndio de recursos não comprometa o orçamento do exercício vindouro e, mais do que isso, não se comprometa o orçamento do novo titular do Poder ou órgão referido no artigo 20 da LRF, com despesas inscritas em “restos a pagar”.

Assim, o mencionado dispositivo disciplina que a obrigação de despesa deve ser cumprida integralmente até o término do mandato eletivo, ou seja, paga em sua integralidade no exercício vigente ou, ao menos que, no ultimo dia do exercício, haja disponibilidade de caixa para pagamento no próximo exercício financeiro vigente.

Desse modo, a interpretação do caput do artigo 42, está em conformidade com os dispositivos dos artigos 7º, 14 e caput do artigo 57 da Lei 8.666/93 e com o comando constitucional esculpido no artigo 167, parágrafo 1º, da Constituição Federal, ou seja, o contrato deve estar atrelado à respectiva vigência do crédito orçamentário.

Se a despesa deve ser paga no exercício, não há como assumir obrigação acima de tal período, considerando, por óbvio, que as despesas mencionadas sejam aquelas para as quais não há previsão específica. Se tal despesa, por exemplo, estiver prevista na lei orçamentária e há recursos disponíveis, não há qualquer obstáculo por parte da lei.

Entretanto, neste momento, dúvidas são recorrentes quanto a restrição da LRF face a necessidade de início de obras públicas de grande vulto nos dois últimos quadrimestres de mandato do chefe do Poder Executivo, cujo custo total e execução da obra excederá o exercício financeiro.

Neste sentido, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, respondendo a consulta formulada pela Prefeitura Municipal de Curitiba, em julho de 2004, decidiu que os prefeitos podem assinar contratos para a realização de obras que ultrapassem o mandato, desde que tenham recursos para o pagamento das parcelas que vencerão no último exercício. [2]

Ou seja, no caso de obras de grande vulto, aquelas em que sua execução ultrapasse o exercício financeiro, não há qualquer restrição no mencionado dispositivo, eis que as parcelas das obras previstas para outros exercícios serão custeadas com recursos consignados também nos próximos orçamentos. A restrição atinge somente aquelas parcelas previstas para o último exercício do mandato, que deverão ser custeadas no próprio exercício ou inscritas em “Restos a Pagar”.

Ressalte-se, se estivermos falando de obra “plurianual”, ou seja, aquela em que sua execução será custeada com recursos em mais de um “orçamento anual”, o chefe do poder executivo não está obrigado a prover recursos financeiros para pagar a parcela da obra que será executada com dotação do orçamento do ano seguinte[3].

Aqui vale a pena trazer à colação trechos de uma excelente análise realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul em seu Manual de Procedimentos para Aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, que corroboram nosso entendimento, já expresso anteriormente em diversos eventos sobre a LRF:
“Outra situação prática, que tem levantado tormentosa dúvida de interpretação, é a que se refere à contratação de execução de obra pública ou de serviços nos últimos oito meses de mandato. A interpretação desse caso, a exemplo da situação anterior, deve propiciar a integração do princípio do equilíbrio e da continuidade da administração destacado pela LRF, com os princípios e normas constitucionais orçamentárias e legislação correlata, de forma que preserve a razoabilidade das ações de governo.

Nesse sentido não poder-se-ia interpretar que, em relação a uma determinada obra de vulto considerável ou a um contrato para prestação de serviços de engenharia de 60 meses, cuja execução do respectivo objeto fosse iniciada nos últimos oito meses de mandato, fosse o administrador compelido a dispor de todo o recurso financeiro necessário quando da celebração do contrato de execução. Não é esse o interesse da Lei, e nem poderia ser. O primeiro aspecto que deve ser observado é a relação orçamentária do art. 42 com o que dispõe a Lei de Licitações, Lei 8.666/93, que estabelece:
“Art. 7º. As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao disposto neste artigo e, em particular, à seguinte sequência:
“I
projeto básico;
“II
projeto executivo;
“III
execução das obras e serviços.
“(…)
“§ 2º. As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando:
“I
houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório;
“II
existir orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários;
“III
houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem executadas no exercício financeiro em curso, de acordo com o respectivo cronograma”.

Convém destacar, por importante, que para uma obra ser licitada, preliminarmente, deve ser atendido o princípio constitucional do planejamento integrado (CF, art. 165), ou seja, essa obra deve ser objeto de previsão no plano plurianual, na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária. De acordo com o transcrito art. 7º da Lei de Licitações, deve haver, ainda, projeto básico, projeto executivo e normas de execução dessa obra, que incluirão um cronograma de execução. Um dos principais dispositivos que elucidam o impasse encontra-se na Lei 8.666/93, que, no art. 7º, § 2º, III, prevê, acertadamente, que a dotação orçamentária necessária à licitação deve ser conjugada com o planejamento da execução a ser realizada no exercício financeiro, tão somente.

Esta disposição da Lei de Licitações está em conformidade com o princípio da anualidade previsto no art. 2º da Lei 4.320/64 e no art. 165 da CF/88, que determina que a receita e a despesa devem referir-se, sempre, ao período coincidente com o exercício financeiro. Por consequência, se o crédito orçamentário deve limitar-se àquelas parcelas da execução da obra que forem planejadas para o exercício, o mesmo ocorrerá em relação aos respectivos empenho da despesa, liquidação e pagamento.

No que tange às parcelas subsequentes, além de a obra estar incluída no PPA, deverá haver previsão da mesma tanto na LDO, quanto na LOA relativas a cada exercício ao qual a mesma se estenda, tudo nos limites financeiros em consonância com o cronograma de execução físico-financeiro. Em conclusão, os contratos para a execução de obras ou prestação de serviços serão empenhados e liquidados no exercício, não pelo valor total, mas, somente, as parcelas do cronograma físico-financeiro que correspondam ao executado no exercício financeiro.”

Fica evidente que de outra forma não poderia ser interpretada a restrição do artigo 42 da LRF, visto que obras de grande vulto, em sua maioria, são de grande interesse e necessidade dos administrados e não pode o administrador deixar de fazê-lo com o subterfúgio de impedimento legal.

Por óbvio que o ato de iniciar uma grande obra nos dois últimos quadrimestres de mandato deva ser devidamente motivado, cabalmente justificada sua necessidade e até mesmo a procrastinação de seu início, caso o haja, eis que as etapas prévias como o planejamento, captação de recursos financeiros e/ou financiamento externo e elaboração de estudos de viabilidade são ações de curto a médio prazo, que por muitas vezes excedem mais da metade do mandato eletivo para sua conclusão.

Assim, com a brevidade que tal instrumento requer, sem a intenção de esgotar a matéria, entendemos que o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal não veta a contratação de obras públicas de grande vulto nos dois últimos quadrimestres do mandato do chefe do Poder Executivo, ante a necessidade de dispêndio de recursos nos anos subsequentes ao término do mandato eletivo.

Bibliografia
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CARVALHO, Daniel Bulha de. As influências da Lei de Responsabilidade Fiscal nas Licitações e Contratos Administrativos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2347, 4 dez 2009. Disponível em <http://www.jus.com.br/revista/texto/13949>
CRETELLA JR, José. Das licitações públicas. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
CRUZ, Flavio da. et al. Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada. ed. 5ª.São Paulo: Editora Atlas S.A, 2006. 353p.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. ed.21ª. São Paulo: Atlas, 2008. 824p.
FIGUEIREDO, Carlos Maurício. NÓBREGA, Marcos. Responsabilidade Fiscal: Aspectos Polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2006. 249p.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. ed 14ª. São Paulo: Malheiros, 2006. 482p.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. ed 19ª. São Paulo: Malheiros, 2005.1016p.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A lei de responsabilidade fiscal e seus princípios, in Revista de Direito Administrativo, Vol. 221, Rio de Janeiro : Editora Renovar, Jul/set 2000.


[1] Artigo 80, §1º, do Decreto-Lei 200/67

[2] CRUZ, Flávio da Cruz (coordenador). Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada, p. 171

[3] A contratação da obra deve ser precedida da verificação do cumprimento das exigências constitucionais (a obra deve estar prevista no plano plurianual) e da lei de diretrizes orçamentárias , dos artigos 5º, § 5ºe 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Licitações. Constituição – Art. 167, § 1º – Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade.

Autores

  • Brave

    é advogado e consultor na área de Licitações e Contratos Administrativos, assessor jurídico na Secretaria de Transportes e Trânsito da Prefeitura Municipal de Guarulhos (SP).

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