Embargos Culturais

O realismo na política e a invenção de Maquiavel

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

22 de julho de 2012, 8h00

Nicolau Maquiavel afastou da teorização política a fabulização da realidade. Não nos vendeu nenhuma utopia. Mas também não nos legou nenhuma premonição de um mundo distópico. O futuro não é sombrio, e nem nirvânico. É apenas o resultado de nossa ação, pautado por nossos cálculos, e também influenciado por eventos externos, que fogem a nosso controle. A principal preocupação de Maquiavel consistia no esforço em influenciar a condução dos negócios públicos[1]. Era um prático.

Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, no dia 3 de maio de 1469. Seu pai chamava-se Bernardo; sua mãe, Bartolomea. O pai era advogado; pouco conhecido, teria exercido a profissão sem nenhum brilho; acrescentava aos parcos ganhos algum recurso que ganhava na administração de seus escassos bens; parece também que Bernardo fora um rígido pai de família[2].

Maquiavel estudou latim, gramática e cálculo[3]. Foi aluno da conceituada escola de Battista da Poppi. Estudou também com o latinista Paolo de Ronciglione. Em 1497, com 28 anos, Maquiavel esteve em Roma. No início do ano seguinte tentou sem sucesso um cargo no governo de Florença. No fim daquele ano, 1498, foi nomeado secretário na Segunda Chancelaria de sua cidade de nascimento.

Maquiavel defendeu a República florentina, a ordem estabelecida, inspecionava pessoalmente as fortalezas da cidade[4]. Maquiavel era um homem de costumes simples, de hábitos plebeus e anticonvencionais (…) gostava da boa conversa e sentava-se com desembaraço com qualquer tipo de gente (…)[5].

Em 1500 partiu para a França em missão diplomática, com Francisco della Casa. Casou-se em 1501 com Marietta di Luigi Corsini. Teve seis filhos. Teria sido amante da cantora Barbara Salutari. Em 1502 esteve em Pistóia. Em 1504 esteve novamente na França. Em 1506 acompanhou os aliados do Papa Julio II em Perúgia e Bolonha. Em 1510 teria mediado uma disputa entre o Papa e o Rei da França.

Com a queda da república florentina em 1512 Maquiavel viveu seu inferno. Em 1513 foi preso e torturado. Tinha 44 anos. Segundo um biógrafo,
Maquiavel foi submetido a uma verdadeira tortura: seus braços foram amarrados às costas, ele foi pendurado no teto, solto de repente e o movimento só se interrompia quando estava rente ao solo. Foi submetido a essa barbárie por seis vezes, mas não se deixou incriminar, nem confessou coisas que não havia feito. Ainda assim, apesar de toda sua coragem, não podia ter a menor ideia quanto a se os verdadeiros conspiradores estavam mentindo e dando seu nome como cúmplice para ajudar na resolução de seus próprios casos[6].

Retornou aos negócios públicos de Florença em 1519. Em 1521 teve de abandonar a vida pública. Dedicou-se a literatura. Morreu em 21 de junho de 1527, aos 58 anos. Era pobre e não exercia nenhuma influência política.

Maquiavel é personagem emblemática do Renascimento, época que se opunha ao misticismo, ao coletivismo, ao antinaturalismo, ao teocentrismo e ao geocentrismo. O Renascimento era marcado por intensa defesa do racionalismo, do individualismo, do antropocentrismo, do heliocentrismo. O humanismo foi também um dos traços definidores daquele tempo, centrado na retomada dos valores greco-romanos, circunstância muito característica na obra de Maquiavel.

O Príncipe, segundo um dos maiores historiadores da Renascença, representa a objetividade renascentista e a ideia de Estado como obra de arte[7]. O Príncipe não é um trabalho de ideologia e de proselitismo, é a expressão dos projetos de um grupo[8].

E embora nos pareça que Maquiavel tenha rompido com toda a tradição de pensamento político que o precedia, há também fortes motivos para supor que tenha retomado uma linhagem romana. Maquiavel seria o restaurador de uma tradição esquecida[9].

Realista, Maquiavel procurou explicar com exemplos suas conjeturas. Continuou uma tradição de historiografia que remontava a Cícero, e que via a história como mestra da vida. A história foi por Maquiavel utilizada como recurso retórico para compreensão do presente[10]; trata-se de uma sabedoria de onisciência quase divina, secularizada em favor de uma causa[11].

Maquiavel seguia os preceitos literários dos autores clássicos: inculcava lições morais por meio de um estilo recorrentemente exemplificativo[12]. No Príncipe há miríade de personagens da antiguidade greco-romana e oriental[13], hauridas em Tito Lívio, Plutarco e nas Escrituras.

Há também um desfile interminável de contemporâneos de Maquiavel, ou de personagens muito próximos de seu tempo[14]. Seu método é histórico e comparativo. É inegável a influência de Cícero nos humanistas florentinos[15]; e Maquiavel é da assertiva a prova mais eloquente.

A recepção de Maquiavel decorre também da capacidade de apreensão e das necessidades dos leitores que encontrou. E porque o destino dos livros depende da capacidade de seus leitores[16]; não se pode negar que a putativa acusação de que Maquiavel sufraga todas as tiranias depende menos do diplomata florentino do que dos tiranos que o leram, ou que o aplicaram, sem jamais o terem lido.

Na tradição ocidental Maquiavel é a própria encarnação da astúcia, da hipocrisia, da crueldade[17]; é lugar comum lembrar que o substantivo próprio transformou-se em adjetivo prenhe de antropologia negativa. O substantivo próprio desdobrou-se num substantivo comum, maquiavelismo, e num adjetivo, maquiavélico[18]. E assim,
Maquiavélico e maquiavelismo são adjetivo e substantivo que estão tanto no discurso erudito, no debate político, quanto na fala do dia-a-dia. Seu uso extrapola o mundo da política e habita sem nenhuma cerimônia o universo das relações privadas. Em qualquer de suas acepções, porém, o maquiavelismo está associado à ideia de perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões pejorativas sobreviveram de certa forma incólumes no tempo e no espaço, apenas alastrando-se da luta política para as desavenças do cotidiano[19].

Maquiavel é o ponto de inflexão de uma época, o Renascimento; de uma nação, a Itália; de uma cidade, Florença; de uma missão: o bom funcionário florentino[20]. Há Nicolau Maquiavel para todos os gostos, projetos e regimes políticos; há quem impute a Maquiavel a culpa de tentar conduzir a humanidade para a perdição; e há quem acuse Maquiavel de tentar conduzir a humanidade para a salvação[21].

Maquiavel serviu a líderes e correntes políticos distintas[22]e concorrentes. A razão de Estado não é certamente uma invenção maquiaveliana[23]; a ação política, porém, em seu sentido utilitário, é uma originalidade do florentino[24]. Sua doutrina é relativamente simples: as circunstâncias da vida tornam inaceitável para a vida prática o moralismo político das teorias clássicas[25].

Maquiavel não especulava. De fato enfrentava as divisões internas que enfraqueciam a Itália, tornando-a presa fácil de potências estrangeiras, como, por exemplo, Espanha e França[26]. A Itália da época de Maquiavel era dividida em mais de uma dúzia de reinados independentes, ducados, feudos, cidades-estado e repúblicas[27].

O célebre florentino deixou de fabulizar a realidade política, como o fizeram Platão e Morus, por exemplo, intervindo na vida real, aliás, a única que nos permite algum espaço de ação prática. Menos do que as prosaicas e úteis instruções deixadas no Príncipe, talvez o maior legado de Maquiavel seja o próprio exemplo, no sentido de que entendamos que a vida nos exige muita ação e muita energia.


[1] Cf. Haddock, B.A., Uma Introdução ao Pensamento Histórico, Lisboa: Gradiva, 1980, p. 19. Tradução de Maria Branco.

[2] Cf. Ridolfi, Roberto, Biografia de Nicolau Maquiavel, São Paulo: Musa Editora, 2003, p. 18. Tradução de Nelson Canabarro.

[3] Cf. Gaille-Nikodimov, Marie, Maquiavel, Lisboa: Edições 70, p. 29. Tradução de Pedro Elói Duarte.

[4] Cf. Ribeiro, Marcelo, Maquiavel- o espelho da Renascença, Porto Alegre: Dacasa, 2008, p. 19.

[5] Aranha, Maria Lúcia de Arruda, Maquiavel- a Lógica da Força, São Paulo: Moderna, 1993, p. 34.

[6] White, Michael, Maquiavel – um homem incompreendido, Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 211. Tradução de Julián Fuks.

[7] Burckhardt, Jacob, A Cultura do Renascimento na Itália- um ensaio, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 25. Tradução de Sérgio Tellaroli.

[8] Cf. Pocock, J. G. A., The Machiavellian Moment- Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, Princeton: Princeton University Press, 2003, p. 156.

[9] Cf. Strauss, Leo, Niccolo Machiavelli, in Straus, Leo e Cropsey, Joseph, History of Political Philosophy, Chicago: The University of Chicago Press, 1992, p. 297.

[10] Cf. Collingwood, R.G., The Principles of History and other Writings in Philosophy of History, Oxford: Oxford University Press, 2001.

[11] Cf. Muller, Herbert J., The Uses of the Past- Profiles of Former Societies, New York: Galaxy Book, 1957.

[12] Cf. Mitre, Emilio, Historia y Pensamiento Historico, Madrid: Cátedra, 1997, p. 42.

[13] Exemplifico, pela ordem de aparecimento na narrativa de Maquiavel: Antíoco, Felipe, Dario, Alexandre Magno, Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu, Hierão, Agátocles, Amílcar, Nábis, Tibério Graco, Caio Graco, Epaminondas, Davi, Saul, Golias, Filopêmenes, Aquiles, César, Cipião, Xenofonte, Virgílio, Teseu, Dido, Nigro, Albino, Fábio Máximo, Cipião, Aquiles, Quíron, Marco Aurélio, Cômodo, Pertinax, Juliano Severo, Caracala, Heliogabalo.

[14] Entre contemporâneos e relativamente contemporâneos a Maquiavel recolhe-se no Príncipe, também pela ordem de aparição, a lista que segue, com indicação dos que reputo como os mais relevantes: Francesco Sforza, o Duque de Ferrara, o Papa Júlio II, Luís XII da França, Ludovido de Milão, Carlos VIII, o Marquês de Mântua, o Papa Alexandre VI, o Cardeal de Ruão, César Bórgia, Savonarola, o Duque de Milão, Giovanni Colonna, Raffaello Riario, Ascânio Sforza, Oliveratto de Fermo, Giovanni Fogliani, Paulo Vitelli, Giorgio Scali, o Papa Sisto, Bartolomeu de Bergamo, Ruberto de San Severino, o Conde de Pitiglano, Nicollo Vittelli, Guido Ubaldo, Fernando de Aragão, Barnabó de Milão, Luca Rinaldi, entre outros.

[15] Cf. Bignotto, Newton, Maquiavel Republicano, São Paulo: Loyola, 1991, p. 15.

[16] A imagem é de Terêncio Mauro. No original, pro captu lectoris havent sua fata libelli. A citação é colhida em Cassirer, Ernest, The Myth of the Staten, New Haven: Yale University Press, 1974, p. 116.

[17] Cf. Cassirer, Ernest, cit., p. 117.

[18] Cf. Chevalier, Jean-Jacques, Les Grandes Ouvres Politiques de Machiavel à nos Jours, Paris: Armand Colin, 1996, p. 13.

[19] Sadek, Maria Tereza, Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù, in Weffort, Francisco C. (org.), Os Clássicos da Política– vol. 1-, São Paulo: Ática, 2006, p. 13.

[20] Cf. Chevalier, Jean-Jacques, cit., loc.cit.

[21] Cf. McClelland, J.S., A History of Western Political Thought, London: Routledge, 2006, p. 151.

[22] Cf. Guanabara, Ricardo, ‘Há vícios que são virtudes’: Maquiavel, teórico do realismo político, in Ferreira, Lier Pires, Guanabara, Ricardo e Jorge, Vladimir Lombardo, Curso de Ciência Política Grandes autores do pensamento político moderno e contemporâneo, Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2011, p. 25.

[23] A discussão é central em Nay, Oliver, História das Idéias Políticas, Petrópolis: Vozes, 2007, pp. 171 e ss. Tradução de Jaime A. Clasen.

[24] Cf. Goyard-Fabre, Simone, Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 60. Tradução de Irene A.Paternot.

[25] Cf. Haddock, Bruce, A History of Political Thought, Cambridge: Polity Press, 2010, p. 72.

[26] Pancera, Gabriel, Maquiavel entre Repúblicas, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2010, p. 62.

[27] Cf. King, Ross, Machiavelli- Philosopher of Power, New York: Harper Collins, 2007, p. 19.

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