Senso Incomum

O perigo do neopentecostalimo jurídico - Parte I

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19 de julho de 2012, 8h00

Spacca
Inicio falando do “mensalão”, julgamento mais importante desde 1988 a ser feito pelo Supremo Tribunal Federal. O que me impressiona é o silêncio (epistêmico) em torno do tema. Digo “silêncio”, referindo-me à academia brasileira. Não vi mais do que três artigos sobre o tema (falo de artigos que busquem aprofundar o assunto e não busquem panfletar sobre ele). Minha coluna da semana passada foi sobre isso. Fiz uma reconstrução histórica do controle de constitucionalidade e da atuação (política ou não) do STF. Comparei o sistema de controle brasileiro com o sistema presidencialista, fazendo um atravessamento com o judicial review norte-americano, que, segundo o renomado Bruce Ackerman, sofre do mesmo problema. Estou esperando a entrada em campo da academia. Aliás, dos juristas em geral. E que não joguemos apenas depois que o jogo foi jogado. Comentaristas de resultados já temos muitos no futebol (que, aliás, inspira a coluna desta semana).

De todo modo, o “Senso Incomum” da semana passada também pode ser considerada uma provocação. O que eu tinha de dizer, disse (clique aqui para ler).

Comentário inspirador
Avanço. Esta coluna se chama “Senso Incomum”. Pois esta semana ela está especialmente “incomum”. E assim deverá ser lida. O título do texto de hoje foi retirado de um quadro que ornamenta o best-seller A Nau dos Insensatos, escrito por Sebastian Brandt, em 1494.[1] Trata-se de um manifesto contra néscios, linóstolos e pastóforos (estes dois epítetos, na verdade, são de O Ingênuo, de Voltaire; atenção: não tem no Google!). Brant, seu autor, queria colocar toda essa gente que toma conta de todos os lugares em uma grande nau. Teria que ser muito grande. Uma multidão feito enxame de abelhas apinharia esse barco. Faltariam barcos.

Pois assistindo ao primeiro dos jogos Corinthians versus Boca (28.06), pela TV Globo, lembrei-me de A Nau. E foi logo após o narrador, “Professor C. Axe”, perguntar para o comentarista, “Professor Big House” — grande filósofo contemporâneo — o que queria dizer um atleta corintiano com o grito “E aí? Vamos lá!”, que uma das câmeras da TV focou em um close. Que pergunta, não? O Brasil parou para ouvir a explicação. O que significaria essa expressão? Um enigma? Uma mensagem conspiratória favorável (ou contrária) ao ex-presidente Lugo? Um novo Código “Da Vince”? Uma chamada para o novo programa do Bial? Hum, Hum. “N” possibilidades… Após um segundo que pareceu uma eternidade — céus, como eu sofri nessa espera —, vem a resposta do comentarista “Prof. Big House”: “o atleta quis dizer: vamos em frente, vamos à luta”. Uau! Hermenêutica de primeira divisão! Meditabundo, atirado em frente à TV, penso com os meus botões: e eles recebem pagamento para isso (refiro-me não aos atletas, mas, sim, aos comentaristas e aos narradores!). Na sequência, quando entra o atleta que faz um gol, um minuto depois, o outro comentarista, “Professor Fall Brook” — sim, havia dois — assevera, grandiloquente: “que visão de jogo tem esse técnico do Corinthians”! Uau novamente. Que determinismo, heim?! Estava escrito que o atleta marcaria o tento? Há que se reservar mais lugares na Nau. Muitos.

Ludopedismo, neopentescostalismo e direito
Alguns diálogos no “campo jurídico” — para fazer uma analogia com o esporte bretão — não andam muito longe disso, metaforicamente falando. Diz-se “o-que-vem-à-cabeça”, como no caso dos experts em ludopedismo. Aliás, uma das semelhanças entre o campo ludopédico e o jurídico é que todo mundo é “professor” (prof. Luxemburgo, prof. Tite). Outro dia vi na TV um jovem jurista explicando o conceito de herança jacente. Hum, hum. Complexo isso, não? Complexíssimo. Outro professor se esfalfela todo, explicando a natureza jurídica do direito de vizinhança. Muitos dos neocomentaristas do “campo jurídico” (sim, falo do conceito de Pierre Bourdieu, em seu famoso La Reproducción, que escreveu junto com Claude Passeron — desculpem-me aqueles que se incomodam com citações) se parecem com pastores pentecostais. Falta só fazerem exorcismos ou banhos de descarrego. Ou carregar uma toalhinha no ombro.

Em outro programa, deparei-me com outro professor (lembro: todo mundo é professor, pois não?), explicando o pensamento — ou algo assim — de filósofos como Aristóteles, Platão, Sócrates. Aristóteles era quase “Ari”, em face da intimidade. O engraçado é que ele fazia igual a um programa de um canal evangélico — dessas religiões que acha que Deus é surdo, porque ficam falando alto — lançando para ele mesmo perguntas, mais ou menos assim: Mas, então professor Fulano (que era ele mesmo! Sim, ele mesmo!), o que o filósofo tal diria disso? Fiquei fascinado. Outro professor explicava hermenêutica constitucional a la Silvio Santos, trocando de câmera a todo momento: câmera 1, câmera 2… E, claro, confundindo noções e conceitos a mil por hora. Ainda na TV (sou um zapeador), assisti a uma explicação sobre o julgamento do STF no caso das “células-tronco”. O jovem jurista verberava: houve uma ponderação de interesses… Uau. Ponderação de interesses? Estaria ele falando da Jurisprudência dos Interesses? Ou ele queria falar de outra coisa? Mistério. Qual é a linha que separa, digamos assim, “o jurídico do neopentecostalismo”? Ou seria “neoludojuridipentecostalismo? Ou, quem sabe, seria “ludojuridicismo”?

Nesse (novo) “campo jurídico”, os protagonistas, quando escrevem, “quieren simplificar las cosas” (na Alemanha já tem disso também: chama-se Bücher für Dummies). E a linguagem é rápida. Televisiva. Abro um livro de dogmática jurídica — destes que encontramos nas bancadas dos fóruns e tribunais — e ali se lê, em um dos mais “sofisticados”, que o círculo hermenêutico é o movimento de ir e vir do subjetivo para o objetivo, até que o intérprete chegue a uma compreensão da norma; mais: em face da liberdade de consciência, crença e culto (art. 5º, VI e VIII), não se configura crime de curandeirismo, previsto no artigo 284 do Código Penal, dentro de um contexto individual de razoabilidade (o que seria isso?); ainda: quem escreve a carta não pode ser sujeito ativo do crime de violação de correspondência (essa é ótima, não?); e não me canso: leio que o TST (cito o TST em homenagem a alguns leitores que odeiam que eu faça crítica ao TST, assim como têm ojeriza à minha crítica a já imorredoura decisão do “1 centavo”) tem uma Orientação Jurisprudencial que fala em cláusula contrária ao “espírito da lei”[2] (cheguei até a imaginar o “fantasma” da CLT arrastando correntes e o peso de ferro pelas vetustas escadarias do Palácio do Catete, onde foi outorgado seu texto original). Quando alguns desses juristas querem sofisticar, sacam conceitos do tipo “neopositivismo” é tudo o que vem depois do positivismo. Bárbaro, não? Vejo na internet gente ensinando Direito Constitucional com acordes de música da Xuxa. Há quem consiga fazer a inusitada relação entre o Direito e os astros do zodíaco, com a chamada “astrologia jurídica”. Mapas astrais de processos que seriam capazes de dar a “resposta correta” (esse caso merecerá futuras considerações, haja vista ser um sintoma do ponto em que chegou a hermenêutica jurídica em terrae brasilis).

Indago, então: o que estamos fazendo com a linguagem? Por que estamos atacando aquilo que Heidegger chamou de “a casa do ser”, local onde “mora o homem” e onde “os poetas e pensadores são os vigilantes dessa morada”? Parece que muita gente do Direito não passa nem perto dessa “morada do ser”; na verdade, moram mesmo em “puxadinhos verbais”; estão alojados em “lajes de bate-papo”…

Que fizeram com as palavras?
Há um poema de Hilde Donin que diz — e peço mil desculpas aos internautas que reclamam desse tipo de citação (sei o quanto isso os machuca, mas, um pouco de crueldade não há de fazer mal!) — Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort, isto é, palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura, a coisa e a palavra…! Mas, acrescento eu, depois palavra e coisa se separaram. E nunca mais se encontraram. Os sofistas foram extremamente importantes na história do ocidente. Foram os primeiros positivistas, porque absolutamente convencionalistas. Para eles, não havia qualquer relação de imanência entre palavras e coisas. Vejam a importância dos sofistas em Eurípedes, quando este mostra que o sentido da palavra “guerra” muda em As Troianas e em Hécuba. Se até então a guerra era sinônimo de honra e de ser uma coisa épica, essa palavra, colocada na boca das mulheres de Tróia, adquire um novo sentido: o do trágico (veja-se o lamento de Hécuba, quando lhe trazem o corpo do seu neto, Antianax, para ser enterrado com o escudo de Heitor). Ali já se podia ver a diferença entre palavras e coisas. No Direito, levamos mais de dois mil anos, mas bem mais do que isso, para chegarmos à conclusão de que texto e norma não são a mesma coisa.

O problema é que, quando descobrimos que o Direito não cabe na lei (Antígona já havia sacado isso) e que texto e norma são distintos, diferentes, e que a norma é sempre o produto da interpretação do texto (homenagem a Friedrich Müller), voltamos a uma espécie de neo-sofismização. Passamos a dizer qualquer coisa sobre a lei. Mas, sobre isso já falei muito.[3] O que quero dizer é que, depois de ficarmos praticamente reféns de uma “equiparação” ou “igualação” entre lei e Direito (pensemos nas formas de positivismo do século XIX) ou, se assim quisermos, texto e norma, deixamos de lado qualquer DNA que possa existir entre palavras e coisas ou entre lei e Direito.

A verdade e os relativistas
Caímos, assim, em um relativismo. Uma espécie de pós-modernidade (sem que saiba o que isso quer dizer). Dia destes estava em um Congresso na Bahia e assisti a uma palestra de um jovem que havia terminado o mestrado. Ele falava sobre interpretação. E pregava o relativismo. Não há fundamentos, dizia. Não há verdades, gritava, neopentecostalmente. E a malta presente aplaudia, entusiasticamente. No final, completou com a clássica frase de Kelsen, que, para ele, era muito crítica: “interpretação é um ato de vontade”. Palmas. Uivos.

Contristado e um pouco alquebrado, comecei a minha conferência dizendo que a plateia não devia acreditar nisso que haviam acabado de ouvir. Primeiro, porque o jovem caíra em uma contradição performativa: se tudo é relativo, isso que acabara de dizer também o era… Desafiei-o a trazer todos os cientistas, peritos, etc., para demonstrar o que acabara de falar. Mais: instei-o a provar que o que eu esgrimia — uma garrafa de água — não era uma garrafa d’água. Fiz, assim, uma pequena explanação, dos gregos até Gadamer (e não precisei ir além) para demonstrar como funcionava essa “questão da verdade” e a “questão do relativismo”, etc. Fui taxado de conservador. De positivista. Pois é. Como o palestrante em questão, há muitos por aí. Está virando moda, exatamente nos moldes que Voltaire mencionou em O Ingênuo, que merece ser transcrito: “Mandaram chamar um médico da vizinhança. Era um desses que visitam os doentes correndo, que confundem a doença que acabaram de ver com a que estão examinando, que exercem uma cega rotina em uma ciência à qual nem toda a maturidade de um espírito são e prudente poderá tirar seus perigos e incertezas. Agravou o mal com uma precipitação em prescrever um remédio em moda da época. Há modas até na medicina! Essa mania era bastante comum em Paris. […] Mandaram chamar outro médico. Este, em lugar de ajudar a natureza e deixá-la agir em uma jovem criatura cujos órgãos a induziam para a vida, só se preocupou em contrariar o seu colega. Em dois dias a doença tornou-se fatal.” Bingo!

Perdemos a “ligação” entre as palavras e os seus sentidos. O Direito, essencialmente, foi transformado em um manancial de “conceitos sem coisas”. Se é verdade que as palavras não refletem a essência das coisas e — permitam-me a brincadeira — se é verdade que a palavra água não pinga, há que se ter cuidado com a antítese disso, isto é, de que “eu dou as palavras o sentido que quero”, como um retorno ao nominalismo. Pois é o que está ocorrendo. A linguagem virou um mero instrumento. Com ela se faz o que se quer. O que é arte? O que faz Michel Teló virar celebridade e estar em todos os programas de TV? Tem um cantor paulista chamado Leo Rodriguez, cuja música (?!) “bará, bará, bará, baré, baré, baré…” é a mais tocada em 15 países europeus (o que mostra que a estultice, a alienação e a burrice são coisas científicas: apreende-se-as e são universais!). O que faz com que alguns personagens virem “famosos”? O que dizer da imbecilidade que foi “Luiza ficou no Canadá”? Lembram-se? Pois é. Passou tão depressa… “Pós-modernidade” é isso. A fama da noite para o dia… Quem atribui esses sentidos? Alguns onomaturgos ou onomotetas de plantão (sem ofensa a Platão)?

É. Parece que os linóstolos e os pastóforos se adornaram das palavras, colocando-as no mercado, como se fossem objetos ou mercadorias. Estou desconfiado de que já existem traficantes de vocábulos, vendedores ambulantes da palavra (vazia), proxenetas dos sentidos. Se a linguagem estivesse na bolsa de valores, estaria valendo centavos.

De efetivo, perdemos a capacidade de criticar. Na série televisiva As Brasileiras, dia destes, vi que a personagem interpretada pela bela Cleo Pires era uma matadora de aluguel. Sim, uma matadora de aluguel, que foi glamourizada. Onde está a linguagem? Onde estão os sentidos das palavras? A palavra “matadora” perdeu seu DNA, isto é, o seu a priori compartilhado intersubjetivamente. A (palavra) “matadora” ficou chique! Viram como palavras e coisas ficaram inimigas e distantes?

Como não estou satisfeito, pergunto — de novo — como perguntava Eugénio de Andrade, poeta português: ah, que fizeste das palavras? Ah, que contas darás tu dessas vogais? E das consoantes que lhes dirás? Que lhes dirás, quando perguntarem pelas minúsculas sementes que te confiaram? Também Stephan Georg bradava aos quatro cantos: kein Ding sei, wo das Wort gebricht (que nada seja onde fracassa a palavra…).[4] E o que fizestes com a palavra que lhes foi dada? Destruíram-na?

Como termina essa coluna? Terão que esperar a próxima. Nela falarei sobre como Jô Soares fez blague com a nossa Constituição; como o programa “Na moral” é uma continuidade do BBB, com possibilidade de se fazer tese de doutorado do tipo “Por uma epistemologia do edredom”. E muito mais. Já adianto alguns tópicos. “Não saiam daí”. Os tópicos serão:
1. E todos riram de nossa Constituição. Farfalhos e galhofas jurídicas. Quando “ruptura” não quer dizer “golpe”. Os tornozelos de uma formiga como limite da profundidade”.
2. Tudo isso é virótico ou bacteriano? Ao persistirem os sintomas, a Constituição deverá ser consultada. Até.


[1] Eu sei, já me referi a esse texto em postagem recente. Mas vale a pena o retorno do alerta aos timoneiros porque o rochedo se aproxima.

[2] Trata-se da OJ-SDC-16, que diz: “É contrária ao espírito da lei (art. 477, § 7º, da CLT) e da função precípua do Sindicato a cláusula coletiva que estabelece taxa para homologação de rescisão contratual, a ser paga pela empresa a favor do sindicato profissional.” Ups… Fui criticar de novo o TST…! Mas, cá para nós: falar em “espírito da lei” nestes tempos é, efetivamente, algo inusitado. Na verdade, o problema não é “falar”, e, sim, “legislar” sobre isso. Como se afere esse “espírito”? Existiria um “espiritômetro”? Cartas para essa Coluna.

[3]  Alguns leitores ficam irritados quando repito alguns temas ou termos/palavras na coluna. São os espiolhadores de colunas. Catam detalhes. Quando falta um acento, é a glória. O gozo. Colocar palavras em outra língua, então… é considerado ofensa aos – e pelos – néscios. Indicar os próprios livros (isto é, os meus) também tem sido causa de revolta. Chiliques.  Pois é. Entendo. Mas a coluna não é uma sala de aula. Nem tem essa pretensão. Tem que ter indicações para que os leitores procurem os fundamentos. A coluna se chama “senso incomum”. Não é, portanto, algo prêt-à-porter. Portanto, comunico: ela, a coluna, continuará sofisticada – afinal, ela se chama “senso incomum” e não “senso comum” – (boa essa, não?) , embora o incômodo que isso cause. 

[4] De novo: perdão mais uma vez àqueles que reclamam de citações em outra língua… mas a tradução sempre vem junto. É que a coluna se chama “senso incomum”. Entendem? Fosse “senso comum”, seria simplesinha. De todo modo, estou pensando em lançar a Coluna em uma versão “simplificada”. O que acham? Cartas, urgentemente.

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