Lei da Anistia

Estado deve cruzar os braços para caso Herzog?

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19 de julho de 2012, 11h52

“Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram.”

Aparício Torelly, o Barão de Itararé

Falsificar atestado médico ou certidão de óbito é crime contra a fé pública, com previsão legal específica (artigo 302 do Código Penal), assim como o é a falsidade ideológica, (artigo 299), de conceituação genérica. Essas condutas delituosas praticou-as o Estado brasileiro — ou, em direito penal, seus agentes — ao atestar que Vladimir Herzog suicidou-se no Doi-Codi de São Paulo, em 1975. Até as pedras sabem que sua morte decorreu das torturas que ali lhe foram infligidas. O governador na época, Paulo Egydio Martins, acaba de declarar, no programa de TV Dossiê Globo News: “Não houve suicídio, Herzog foi assassinado”.

A contradição basta para manter aceso o debate sobre o alcance e a eficácia da Lei da Anistia, — Lei 6.683/79 —, que usou a teoria do “crime conexo” para declarar impuníveis “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Teriam sido anistiados, por isso, agentes públicos que torturaram, fizeram desaparecer ou mataram “terroristas” entre 2 de setembro 1961 e 15 de agosto de 1979, embora citada Lei não beneficiasse ativistas políticos que já haviam sido “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.

Recentemente, quatro entidades representaram à Comissão de Direitos Humanos da OEA reclamando investigação sobre as circunstâncias da morte do jornalista, com vistas à identificação e punição dos responsáveis. Chamado às falas, o governo brasileiro respondeu que o episódio está encerrado porque a Lei da Anistia não o permite. Registre-se que em 1978 a União foi civilmente responsabilizada pela morte de Herzog, em histórica sentença do juiz Márcio José de Moraes. A perplexidade, todavia, persiste na esfera criminal.

Nesse cenário, imperioso encontrar-se um meio de, preservado o espírito da lei, se esclarecerem os fatos para que eles possam ser levados ao patamar do definitivo esquecimento jurídico. A lei não pode coonestar, porém, a ignomínia de impedir pessoas de saberem o que aconteceu com o parente morto quando sob custódia do Estado. Inaceitável, ainda, que se lhes imponha a patranha de que ele “suicidou” – e, neste caso, avulta o fator religioso, pois Herzog era judeu e o judaísmo recrimina o suicídio, sepultando mesmo em local separado os que se matam, conquanto neste caso o rabino Henry Sobel tenha, corajosamente, repudiado a versão do Doi-Codi e seguido, nos funerais, os ritos traçados nos cânones de sua fé.

O debate se prolonga e está longe de ser encerrado. E alonga-se também porque emergem aspectos acessórios, que sobrelevam os principais. No Caso Herzog, o aspecto acessório que retornou ao debate é o problema do atestado (qual a causa mortis?), assinado por um legista, diretor do Instituto Médico Legal, e da certidão de óbito, expedida por cartório civil. Ambos os documentos, teoricamente dotados de fé pública, são sabidamente falsos no conteúdo.

Há pouco tempo, por solicitação de deputado federal interessado em aprofundar a pesquisa, requeri cópia autêntica do laudo necroscópico de Herzog sem nunca receber o documento, apesar da Lei de Acesso à Informação. Como se vê, o assunto não é tão singelo como querem alguns. Eis um caso em que a solução apresentada não equaciona o problema, antes o posterga, com perguntas que não querem calar. Uma delas é esta: devem cruzar os braços o Estado, a sociedade e, sobretudo, a família do jornalista diante de situação em que, como observou Rui Barbosa, o “acessório usurpa definitivamente o domínio do principal"?

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