Golpe ou afoiteza?

Paraguai poderia ter evitado o imbróglio do impeachment

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18 de julho de 2012, 8h00

Spacca
“A imprensa está olhando para o Direito paraguaio com a régua do [Direito] brasileiro. Nem a OAB sabe ainda como se posicionar. Mesmo assim, já se fala em golpe”, disse numa conversa no final de junho um jovem e talentoso jornalista. Anotei o tema para refletir, visto que não sou jurista, sobre a hipótese do “olhar o Direito paraguaio com a régua do Direito brasileiro”.

Tenho, como quase todo brasileiro, pouco conhecimento sobre o Paraguai e a América Latina em geral. O repertório vai pouco além daquilo que estudei no então chamado ginásio (segunda parte do ensino fundamental de hoje), na disciplina História da América. Voltei depois ao tema quando preparei a dissertação de mestrado, um estudo comparativo sobre a revista Playboy, sucesso no Brasil e fracasso na Argentina. Foi então que entendi um pouco mais sobre o antigo Vice-Reinado do Rio da Prata, cuja capital natural teria sido Assunção ou Córdoba, caso Buenos Aires não tivesse passado a rasteira em ambas (sei que isso escapa do tema, mas serve de introdução). Depois, ao estudar as revistas brasileiras do século XIX, novamente entrou o Paraguai, com a guerra (1864-1870) que foi tema candente da cobertura das semanais ilustradas daqueles anos.

Estive ali apenas uma vez, numa parada no aeroporto de Assunção, na volta de uma viagem ao Chile. E um contato, numa viagem de trabalho com seis jornalistas sul-americanos à Inglaterra, com um editor do jornal ABC Color, da capital paraguaia. Ambos nos solidarizamos diante da megalomania do colega venezuelano (aprendi então que a Venezuela tem a maior catarata do mundo; que a classe alta do país do petróleo fazia compras nos supermercados de Miami e importava água da Escócia para preparar o whisky on the rocks como corresponde).

Na ausência do conhecimento local, fui vasculhar a Constituição do país vizinho, citada por todos que defendem a legalidade do impeachment a que foi submetido o presidente Fernando Lugo. Leio que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso declarou, em entrevista coletiva, que “Não houve arranhão à Constituição paraguaia” e reforça sua visão na revista Veja desta semana. E o relatório preparado pelo secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, José Miguel Insulza, garante que tudo correu “estritamente conforme o procedimento constitucional”.

Mas o que diz a Constituição da República do Paraguai?

É interessante uma rápida análise das constituições de alguns países. A norte-americana, de 1787, originalmente enxuta, com 7 artigos, divididos em seções (apenas o primeiro artigo é longo, com dez seções, os outros têm em média 3 seções cada), soma 24 mil caracteres (na versão para o português). Com o passar dos anos, foi se ampliando, com mais 24 novos artigos, num total de 42 mil caracteres.

Em contraponto, a carta magna da Argentina, de 1853, passou por diversas reformas constitucionais (três no século XIX, quatro no século XX, sendo a última em 1994, feita meio a toque de caixa para permitir a segunda eleição de Carlos Saúl Menem). Tem no total 129 artigos, mais 17 disposições provisórias acrescentadas na última reforma. A soma chega a 78.820 caracteres.

A Constituição brasileira, de 1988, tem 250 artigos, e tem, na versão online do STF, 348 mil caracteres (eliminando os 10.495 caracteres dos nomes de todos os constituintes que a assinaram). A eles se somam 96 artigos de disposições transitórias, com 84 mil caracteres (e novamente são excluídos os 10.495 caracteres com as assinaturas dos constituintes). O que dá o portentoso total de 432 mil caracteres. (As versões do Executivo e do Legislativo, por incluírem também os textos originais alterados, chegam a 555.365 letras.) A primeira versão analisada, a do STF, faz lembrar os rizomas de Gilles Deleuze. A noção do filósofo francês foi tomada das plantas que se ramificam em qualquer ponto, criando novos, digamos, caminhos. Algo que faz o STF ao remeter os artigos às inúmeras emendas constitucionais posteriores. Já as versões do Senado e do governo federal trazem à mente os palimpsestos, pois se pode ler a antiga versão “embaixo” do texto atual. Como já disse alguém, nossa Constituição é mais um programa de governo do que uma carta magna.

Já a Constituição do Paraguai é mais enxuta: quase três vezes menor que a brasileira, embora o dobro da argentina. São 311 artigos em 163.265 caracteres. Essa contagem mostra que é mais sucinta que a nossa. Talvez isso ajude a entender o que se passou com o processo de impeachment do presidente Fernando Lugo.

O artigo 225 da lei paraguaia trata do juízo político. E diz que “O Presidente da República, o Vice-presidente, os ministros do Executivo, os ministros da Corte Suprema de Justiça, o Fiscal-Geral do Estado, o Defensor do Povo, o Controlador-Geral da República, o Subcontrolador e os integrantes do Tribunal Superior da Justiça Eleitoral, só poderão ser submetidos a juízo político por mal desempenho de suas funções, por delitos cometidos no exercício de seus cargos ou por delitos comuns. A acusação será formulada pela Câmara de Deputados, por maioria de dois terços. Corresponderá à Câmara de Senadores, por maioria absoluta de dois terços, julgar em juízo público os acusados pela Câmara de Deputados e, em caso de declará-los culpados, apenas para o efeito de separá-los de seus cargos. No caso de suposto cometimento de delitos, passarão os antecedentes para a Justiça ordinária”.

O artigo não estabelece um rito. No entanto a Constituição deixa claro em seus artigos 16 e 17 que esse rito não pode ser sumário. Diz o artigo 16, “da defesa em juízo”: “A defesa em juízo das pessoas e de seus direitos é inviolável. Todas as pessoas têm direito a serem julgadas por tribunais e juízes competentes, independentes e imparciais”. Acrescenta o artigo 17, “dos direitos processuais”: “No processo penal, ou em qualquer outro de que possa derivar-se pena ou sanção, toda pessoa tem direito a… § 7: Comunicação prévia e detalhada da imputação, assim como dispor de cópias, meios e prazos indispensáveis para a preparação de sua defesa em livre comunicação; e § 8: que ofereça, pratique, controle e impugne provas”.

Parece difícil que em um prazo de 30 horas (alguém teve de dormir nesse ínterim) fossem garantidos esses direitos ao ex-presidente. Ou seja, Lugo foi julgado por um tribunal que não pode ser considerado imparcial e nem teve tempo de produzir provas ou contraprovas. Embora o colega José Roberto Guzo ironize, na Veja desta semana o argumento das 30 horas, perguntando de 100 seriam suficientes. Basta lembrar que Fernando Collor teve de 29 de setembro (quando o Câmara votou o impedimento) a 29 de dezembro de 2009, quando o Senado, presidido pelo presidente do STF Sydney Sanches o cassou, mesmo ele tendo renunciado horas antes.

A ideia de defenestrar Fernando Lugo não surgiu como brotoeja. Ela vem desde sua posse. A oportunidade apareceu no dia 15 de junho último, quando num enfrentamento violento entre a polícia e sem-terras durante uma ação de reintegração de posse, 6 militares e 11 camponeses morreram no povoado de Curuguaty, departamento [o equivalente a estado] de Canindeyú. O episódio continua confuso até hoje, pois alguns dos mortos foram atingidos por balas vindas do alto, algo pouco provável num confronto cara a cara. Não houve investigação séria nem prazo para isso.

Esse episódio foi uma das cinco acusações que levaram Lugo à cassação: ele também foi considerado responsável por instigar as ocupações de terras na região produtora de soja de Ñacunday e pela onda de violência no país. As outras duas acusações foram o apoio a um ato político de jovens esquerdistas realizado em um quartel em maio de 2009 e a assinatura do Protocolo de Ushuaia II, do Mercosul, que atualizou a “cláusula democrática” do bloco. O Protocolo de Ushuaia II foi na realidade assinado em Montevidéu, e trata do compromisso do Mercosul com a democracia, prevendo intervenção externa caso uma democracia do bloco esteja em perigo. O acordo foi aprovado pelos governos da Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai em 20 de dezembro de 2011, mas sem o respaldo do Parlamento paraguaio. (Como se vê, um Parlamento com certa ojeriza de democracia.)

Quatro dias (19 de julho) após o conflito de Curuguaty, a Associação Nacional Republicana (ANR), o velho partido Colorado que deu sustentação à ditadura de Alfredo Stroessner, resolveu iniciar o juízo político (artigo 225 da constituição). Proposta encampada dois dias depois pelo PLRA (Partido Liberal Radical Autêntico), a Unace (União Nacional de Colorados Éticos) e o PDP (Partido Democrático Popular). Nesse dia 21 de junho a Câmara de Deputados decidiu, por 76 votos a 1, aprovar o julgamento. Um tempo recorde para produzir provas e argumentos — o que fala bem da eficiência dos parlamentares do país vizinho. Ao meio-dia do mesmo dia 21, o Senado aprovou o ritual do impeachment, não previsto na Constituição, estabelecendo os prazos sumários a que já se referiu aqui.

No dia 22 de junho, ao meio-dia, os advogados do ex-presidente foram ao Senado contestar os prazos e apontar a inexistência de motivos suficientes para o processo. Às 16 horas, 39 dos 45 senadores votaram a deposição do presidente, empossando imediatamente o vice-presidente Federico Franco.

Na sequência, no domingo 24 de junho, os demais membros do Mercosul suspenderam o Paraguai do bloco. E o assunto continua nesse pé.

A análise dos comentários postados online pelos leitores do jornal ABC Color (que apoiou com entusiasmo o impeachment) mostram o que é costumeiro nos sites: um clima de elevada animosidade, muita ofensa e achismos. A Igreja Católica do Paraguai se sentiu aliviada e aprovou o castigo dado ao ex-bispo que gerou alguns filhos em seu período de celibato (muitos leitores trazem essa fecunda atividade do ex-sacerdote para o centro da discussão). Mas Fernando Lugo não se impôs e reagiu como assustado ao que acontecia. E ele mesmo admite isso agora.

O episódio lembra o caso de nosso Fernando [o Collor de Mello, que sobram Fernandos nessa história], que chegou ao impeachment por não saber manobrar e querer governar sem o apoio do Congresso. Foi substituído por outro Franco, o Itamar. Lugo foi meio temerário sabendo que lidava com oposição quase total no Legislativo.

Já Federico Franco talvez não se tenha dado conta da gafe: na prestação de contas que fez ao Congresso em 1º de julho, pouco mais de uma semana após assumir a Presidência, deixou claro que houve melhorias nas políticas sociais no país vizinho. Aclarou em seu discurso que o governo deu assistência técnica a 150 mil famílias de trabalhadores rurais, incluindo 9 mil famílias indígenas de 273 comunidades, triplicando o número dos assistidos desde 2008. O aumento, no mesmo período, de leitos em UTI foi de 86 para 273; 37 mil alunos passaram a contar com a merenda escolar; 1.677 escolas foram reformadas. Os investimentos passaram de US$199 milhões a US$ 566 milhões, sendo que nos últimos dois anos a inflação caiu de 7,2% para 4,9% e as exportações cresceram mais de 20%.

Lugo cumpriu quase 4 anos de um mandato de 5. As próximas eleições para presidente no Paraguai acontecerão em abril de 2013. Não há hipótese de reeleição. Os afoitos deputados e senadores poderiam ter esperado um pouco e evitado o imbróglio.

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