Política e Direito

Constituição trouxe a política para dentro de si

Autor

4 de julho de 2012, 13h24

Spacca
Qual a importância dos partidos políticos, atualmente? A relação existente entre os poderes Executivo e Legislativo, em nossos dias, corresponde ao que está previsto na Constituição brasileira? Afinal, o que o Direito tem a ver com isso?

Em textos recentes, publicados neste espaço, já comentamos sobre o descompasso que há entre a ordem constitucional democrática — isto é, o que é previsto de direito — e o que ocorre de fato. A proximidade das eleições favorece a discussão sobre a importância dos partidos políticos e a articulação que há entre os poderes Executivo e Legislativo.

Em outro texto, referimo-nos à denominada democracia delegativa, que bem retrata o quadro político atual. Na democracia delegativa, o chefe do Poder Executivo é o protagonista político. É ele quem define as políticas públicas/sociais consideradas prioritárias e pouca participação do Congresso Nacional, que, no máximo, apenas cobra tal definição do chefe do Poder Executivo. Na democracia delegativa, integrantes de partidos políticos que têm perfil ideológico vago acabam sendo cooptados pelo chefe do Poder Executivo (p.ex., com a nomeação para atuação em algum cargo técnico do Poder Executivo), a fim de que o partido político a que pertencem não façam o papel de partido de oposição. Tudo isso conduz ao declínio do prestígio dos partidos políticos, já que estes, sufocados ou cooptados, acabam não fiscalizando, adequadamente, a atuação do chefe do Poder Executivo — e do partido por este representado (a respeito, cf. o que escreve Guillermo O’Donnell em artigo intitulado “Democracia Delegativa?”).

É evidente que este quadro não corresponde àquilo que, correntemente, costuma-se dizer, em relação ao que prevê a Constituição brasileira. Habitualmente, costumamos dizer que a Constituição de 1988 estabelece a democracia representativa. A rigor, a democracia representativa que há entre nós opera-se apenas no momento da eleição — isto é, no momento em que nós, eleitores, escolhemos nossos representantes. Daí em diante a democracia representativa cede espaço para a democracia delegativa.

Esse estado de coisas é estimulado pelo que se convencionou chamar de presidencialismo de coalização (cf., a respeito, Sérgio Abranches, Presidencialismo de coalizão: dilema institucional brasileiro). Embora a expressão remeta ao que sucede em relação ao presidencialismo, o mesmo também ocorre nos níveis estadual e municipal. Em face da quantidade muito grande de partidos políticos, dificilmente o apoio de um único partido é suficiente para sustentar politicamente chefe do Poder Executivo, ou para aprovar os projetos enviados ao Legislativo. Diante disso, diversos partidos políticos — às vezes, até, de matizes diferentes — juntam-se em torno do presidente, do governador ou do prefeito, formando uma coalizão que o fortalecerá politicamente. Como “contrapartida”, lideranças mais proeminentes dos partidos que formam a coalizão acabam ocupando cargos importantes no governo (por isso que nem sempre a escolha acaba recaindo em pessoa que demonstre aptidão técnica para determinada área de atuação, sendo o critério, no mais das vezes, informado por razões exclusivamente políticas) e obtendo, através de emendas apresentadas ao orçamento, a previsão de realização de gastos públicos que privilegiem sua base eleitoral ou grupos sociais que lhes dão apoio.

O artigo 166 da Constituição Federal propicia a realização de negociações que garantam o apoio de parlamentares a projetos de lei de interesse do Poder Executivo em troca da aprovação de emendas ao orçamento, que direcionariam gastos públicos em favor, por exemplo, da região em que o parlamentar tem sua base política, ou de grupos sociais que o apoiem. Através dessa barganha, o Poder Executivo assegura a garantia de governabilidade, pois acaba retendo a liberação de recursos e liberando-os em razões de interesses políticos (a respeito, cf. texto de Maurício Conti, publicado nesta terça-feira na ConJur). Nesse contexto, tudo dependerá do jogo de forças existente entre o chefe do Poder Executivo e os partidos que compõem a coalizão.

Embora paradoxal, isso tudo parece decorrer do quadro implantado pela Constituição brasileira — ainda que se diga que isso não seja desejado por nossa Constituição. Democracia delegativa, presidencialismo de coalizão e barganhas orçamentárias contribuem para a formação do quadro político existente atualmente, entre nós.

Há saídas, creio. Mas as alternativas devem ser construídas por nós, em relação a cada um dos problemas indicados. Penso, por exemplo, que a ordem constitucional democrática não admite que o orçamento aprovado tenha caráter meramente autorizativo, em nada impositivo. Algo de vinculante o orçamento deve ter, seja porque: (a) deve haver segurança quanto ao investimento em bens e serviços como saúde e educação, dentre outros; (b) deve ser dada a máxima transparência aos gastos públicos; (c) deve ser propiciada, tanto quanto possível, a participação dos cidadãos (“orçamento participativo”), para que sejam conhecidas as principais carências e urgências da população.

Mas isso ainda é pouco, e outras mudanças deveriam ocorrer. A saída passa, necessariamente, por uma maior politização dos cidadãos.

O fato é que o atual estado de coisas, se não alterado de dentro para fora, tende a fortalecer o surgimento de outros movimentos democráticos, que não se enquadram na estrutura formal dos partidos políticos. Note-se que, para muitos, os partidos políticos perderam sua função (cf., p.ex., o que sustenta Vladimir Safatle, dentre outros), o que fortalece a ideia de democracia de pessoas, em oposição à democracia dos partidos (cf., especialmente, Manuel Castells, Comunicación y poder).

Política, segundo nosso modo de pensar, não é assunto alheio ao Direito. Ainda que se admita que, um dia, Direito e Política tenham andado separados (algo que não nos parece de todo acertado), tal não ocorre atualmente — ao menos no Direito brasileiro — já que a Constituição brasileira trouxe a política para dentro de si.

As promessas constitucionais não podem ser compreendidas pelo intérprete/aplicador do Direito em dissonância com a realidade política, social e econômica. Com efeito, sabe-se que a democracia não pode ser compreendida apenas como diálogo em que os participantes agem francamente com o intuito de obter o melhor para todos, em comunhão, já que os interesses plurais são distintos e, muitas vezes, antagônicos (não raro movidos pelo egoísmo), e os agentes que participam desse diálogo têm forças distintas.

O pluralismo político deve ser compreendido também como algo que enseja um jogo de forças em que alguns projetos de poder vencem e outros são superados, e seria um modo ingênuo de interpretar o Direito pensar que as soluções que passaram por um espaço público e formalmente democrático de debates seriam, ipso facto, absolutamente ajustadas aos direitos e garantias constitucionais.

Note-se que, mesmo aí, não estamos seguros. Mesmo a lei pode ser manejada antidemocraticamente (afirma-se, por exemplo, que o impeachment do ex-presidente do Paraguai, Fernando Lugo, “foi legal, mas não foi democrático”).

Deve-se assegurar, nesse contexto, que os direitos fundamentais não sejam sacrificados, mas, ao contrário, que tais direitos sejam protegidos e realizados em plenitude, pois mesmo aqueles que exercem o poder podem desejar, em algum momento, fazê-lo em detrimento de direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais, assim, funcionariam como um “muro de resistência” ao exercício desmedido do poder.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!