Direito & Mídia

Lula e Paulo Maluf, visões em paralaxe

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4 de julho de 2012, 8h00

Spacca
Nunca tive o privilégio da convivência com políticos. Mesmo no tempo em que era o braço direito de Mário Escobar de Andrade, o criador da edição brasileira da revista Playboy e tinha de representá-la muitas vezes nas festas do meio mítico Gallery. Para os mais jovens, recorro à Wikipédia: o Gallery era um clube na Rua Haddock Lobo e marcou época nos anos 1980 pela frequência de nomes da elite e das artes. Algumas vezes uma de suas atrações era o então líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. O lutador de boxe Adilson José Rodrigues, o Maguila, também teve seus momentos de avis rara ali. Mas nas noites em que o Lula curtiu uísque 12 anos dando belas baforadas em charutos cubanos eu não estive na então badalada casa noturna. Dei mais sorte com artistas — como num campeonato de pôquer patrocinado pela Playboy e organizado no Régine’s (quem se lembra de Régine Choukroun?) pelo grande Paulo Bastos, promoter de marcas de bebidas. Tive a oportunidade de levar um longo papo com o Omar Sharif, a atração internacional do evento.

A única exceção na seara política foi Marta Suplicy, a quem naquele tempo de Playboy encomendei um artigo sobre os mitos sexuais. Marta era o ponto alto do programa matinal TV Mulher, da Globo, comandado por Marília Gabriela, Ney Gonçalves Dias, com participação de Clodovil Hernandez e Xênia Bier. Psicanalista formada pela conceituada terapeuta Felicidade Castelo — esposa do exponencial Claudio Castelo — Marta abordava temas tabus na época, numa linguagem simples e direta. Naquele artigo para Playboy, ela escreveu uma frase antológica: “O importante não é o tamanho da varinha, mas as mágicas que ela consegue fazer.”

Voltei a encontrar Marta muitos anos depois, no lançamento da cartilha Cidadania e Democracia O que acontece nas cidades em que o PT é governo (São Paulo: Instituto de Políticas Públicas Florestan Fernandes, 2000), uma das peças de sua campanha vitoriosa para a Prefeitura de São Paulo naquele ano, vencendo Maluf no segundo turno. A cartilha foi um trabalho redigido por mim, por encomenda do Diretório Central do PT. Mas o tema aqui é Lula e Maluf, voltemos a ele, ou a eles.

Como foi dito acima, numa estive pessoalmente com Lula ou Maluf, e nem mesmo perto. Sei sobre os dois o que mais ou menos todo mundo sabe.

Maluf nunca teve meu voto e não tenho nenhuma intenção de sair em sua defesa — que ele não precisa disso. Além do mais não sou advogado e os dele certamente estarão entre os melhores. Mas reconheço que ele tocou piano muito bem em um programa da Hebe Camargo algumas tantas décadas atrás. Alguém havia colocado em dúvida seus dons musicais e ele mostrou na hora o quanto era bom nos teclados. Também senti certa ponta de inveja quando, em 1995, o proprietário da Romanée-Conti, monsieur Aubert de Villaine, esteve de visita aqui em São Paulo. O produtor desse legendário vinho foi conhecer a adega de Paulo Maluf e se surpreendeu por encontrar ali algumas safras antigas desse que é considerado o “grand cru” por excelência da Borgonha. Nem o senhor De Villaine tinha lá em sua Domaine safras tão especiais quanto as de Paulo Maluf. Tendo escrito muito sobre bebidas e visitado vinícolas em diversos lugares do mundo, jamais provei um Romanée-Conti.

Mas o que tem isso a ver? A reflexão é sobre a imprensa, e sua incapacidade de descolar de Maluf a imagem do Darth Vader daquela montagem que circula na internet (na foto em que o ex-governador paulista confraterniza com o pré-candidato Fernando Haddad e Lula). Maluf foi duas vezes prefeito de São Paulo, tendo na última (1993-1996) emplacado o sucessor, o carioca Celso Roberto Pitta do Nascimento, falecido há quase três anos.

Maluf foi secretário dos Transportes, governador do estado, provocou um racha na Arena, o partido de sustentação do regime militar, apresentando-se como candidato à Presidência (derrotado por Tancredo Neves) na eleição indireta que marcou o final da ditadura. Atualmente é deputado federal por São Paulo e preside o diretório paulista do Partido Progressista, um dos sucessores da antiga Aliança Renovadora Nacional, a Arena.

Não é preciso lembrar que o deputado tem seu nome incluído na lista de procurados pela Interpol, podendo ser preso em nada menos que 181 países. Mas como esse texto busca uma visão em paralaxe, levo a reflexão para outra direção.

Maluf aos 35 anos (hoje está para completar 81) foi nomeado presidente da Caixa Econômica Federal (1967-1969) e saneou e dinamizou a carcomida instituição, que nunca mais foi a mesma. Por troca de favores (pagamento de dívidas de jogo) com o presidente militar de plantão, foi nomeado prefeito de São Paulo (1969-1971). A partir de então, todos os cargos que exerceu foram ganhos nas urnas. Em 1982, deixou o governo do estado nas mãos do vice José Maria Marin para se eleger deputado federal com 672.927 votos, permanecendo como o mais votado do país até 2002, quando Enéas Carneiro atingiu a marca do 1,5 milhão de votos. Seu mandato atual, que termina em 2014, é resultado de 497.203 votos válidos. Ou seja, Paulo Maluf está lá porque meio milhão de eleitores o elegeram.

Há na Argentina um ditado que vale a pena ser lembrado: “La culpa no la tiene el chancho, sino el que le da de comer” (a culpa não é do porco, mas de quem o alimenta). E fique claro que não há intenção alguma de ofender o deputado com essa expressão.

A imprensa ao sempre destacar apenas a longa (e coloca longa nisso) folha de falcatruas, obras superfaturadas, lavagem de dinheiro, corrupção, evasão fiscal, conta apenas uma parte da história. Maluf esteve preso 40 dias (em 2005) numa operação comandada pelo no mínimo controvertido ex-delegado Protógenes Queiroz (também hoje deputado federal). É pouco, não é nada: o mais importante seria devolver aos cofres o que evadiu, trambicou, o que se quiser falar. Mas sem esquecer: ele criou sua trajetória por ter eleitores alimentando a carreira com seu voto.

Passemos agora a seu parceiro de foto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje o arauto do “discurso do novo”. O vinho Romanée-Conti é outro traço que o aproxima de Maluf. Quando eleito no primeiro mandato, em 2002 (também com meu voto), Lula comemorou com uma garrafa de Romanée-Conti safra 1997 (que não foi uma grande safra, como comentou o já citado Aubert de Villaine). Mas picuinhas a parte, Lula é “o homem”, como avalizou o presidente americano. É dono de um carisma único e já se disse que ele é capaz de eleger até um poste.

Ter um Lula no partido é o que faz toda a diferença do PT.

Mesmo que já se comece a falar, aqui e ali, em racha no partido, tanto pelo descontentamento de Marta Suplicy (que enfrentou o establishment petista não comparecendo ao lançamento da candidatura de Fernando Haddad) ou à virada de tapete ocorrida no Pernambuco, com a intervenção da direção nacional no diretório do Recife, anulando uma consulta às bases para preservar a aliança com o PSB do governador Eduardo Campos (parte da negociação realizada entre os dois partidos em São Paulo, agora com tudo por água abaixo após a saída de Luiza Erundina).

Lula usa e abusa de seu carisma. Como fez ao participar, no último dia de maio, do Programa do Ratinho, no SBT, levando a tiracolo seu protegido Haddad, “a coisa nova” que a cidade de São Paulo precisa, no dizer do ex-presidente. Em uma passagem de sua fala no programa, Lula exagerou ao dizer que o jovem candidato “vai passar para a história como o ministro da Educação que criou o ProUni que tirou 1 milhão de jovens da periferia e colocou na universidade” (conviria perguntar aos alunos da Universidade Federal de São Paulo, em Guarulhos, como anda a vida por ali). Era um visível descumprimento da legislação eleitoral, que proíbe propaganda eleitoral pelo rádio e TV antes do dia 21 de agosto.

Lula alega que sua presença no programa era para falar sobre a cura do câncer, mas a juíza Carla Themis Lagrotta Germano, auxiliar da 1ª Vara Eleitoral de São Paulo, não entendeu assim. E condenou, no dia 25 de junho, o pré-candidato do PT à Prefeitura de São Paulo, o ex-presidente, o canal de TV SBT e o Sr. Carlos Massa, o Ratinho, por propaganda eleitoral antecipada. Alega a juíza: “Há clara indução ao eleitor no pedido de votos, na medida em que o pré-candidato se identifica como sendo o ‘novo’ na política, e naquele que a população irá votar, porque quer mudança.” Segundo o analista político Josias de Souza, “Não é verdade que o crime não compensa. É que, quando compensa, muda de nome. Na seara eleitoral, por exemplo, chama-se esperteza. Lula e Fernando Haddad pisotearam a lei no Programa do Ratinho. E daí? Nada. Reza a jurisprudência do TSE que a propaganda eleitoral antecipada é um dos crimes que compensam no Brasil”, conclui Josias.

Como se disse, ter um líder carismático como Lula a bordo faz o diferencial do PT. Agora, isso tem um custo ou pedágio, que é conviver com as trapalhadas que o ex-presidente vai semeando. Num momento constrange a presidente Dilma, ao dizer que só sairá candidato se ela não quiser (a moça nem chegou ao meio do mandato!), insinua proteção ao ministro Gilmar Mendes, do STF, se ele der uma forcinha no caso do Mensalão, e por aí vai.

Então, por que tantos petistas começam a reclamar do custo desse pedágio? O aperto de mão trocado com Maluf e Haddad é parte disso.

Em tempo: em astronomia, paralaxe é a diferença na posição aparente de um objeto visto por observadores em locais distintos. Como na história que contei (clique aqui para ler), semana passada, sobre a coroa do camarote real, de que falava José Saramago.

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