Ônus e bônus

Imensa maioria dos juízes não tem regalias

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26 de janeiro de 2012, 18h42

A notícia de que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, em meio às divergências públicas envolvendo associações de juízes, o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça, enviará ao Congresso Nacional projeto de lei complementar dispondo sobre o Estatuto da Magistratura está desencadeando reações carentes de fundamento contra supostas “regalias” do Poder Judiciário. Chegou-se a falar que o envio do projeto acabaria com a “blindagem que protege seus benefícios”.

O momento não favorece, de fato, o discernimento. Em primeiro lugar, é importante esclarecer que a aposentadoria compulsória como pena administrativa máxima (a perda do cargo depende de decisão judicial) é uma imposição da Constituição da República, que, para assegurar independência aos juízes, garante-lhes a vitaliciedade. Não é possível, portanto, extinguir essa garantia através de norma de hierarquia inferior. Isso somente seria possível através de emenda à Constituição, de constitucionalidade discutível. A garantia tem a sua razão de ser: os juízes têm, no exercício regular de seu ofício, de assegurar os direitos dos cidadãos em face do próprio Poder Público, notadamente o Poder Executivo. Se, por pressão política corriqueira, os juízes puderem ser ameaçados de demissão, é o próprio direito dos cidadãos que estará ameaçado e desprotegido. De qualquer forma, nesse momento o importante é que fique claro que não será através do projeto de lei complementar sobre o novo Estatuto da Magistratura que esse tema poderá ser discutido, como parece ser o afã de muitos.

Outro tema que vem sendo tratado como um privilégio a ser extinto são as férias anuais de 60 dias, asseguradas aos juízes. Esse direito está previsto na atual Lei Orgânica da Magistratura e através de lei complementar de iniciativa do Supremo Tribunal Federal pode ser modificado, sem dúvida. A discussão sobre este e outros direitos é própria da democracia e deve ser recebida com naturalidade pelos magistrados. Mas deve estar orientada para o interesse público. Sob este prisma, então, questiona-se: qual interesse público é capaz de justificar férias para os juízes maiores do que para a maioria das categorias profissionais (embora não sejam um “privilégio” da magistratura: além de outras carreiras que gravitam em torno do Poder Judiciário, também os professores têm período de férias superior, por exemplo, assim como diversas categorias têm jornadas de trabalho especiais)?

Pois bem. O trabalho do juiz é decidir e o juiz frequentemente decide questões que determinam o destino dos cidadãos, das empresas, da economia e da vida política do país. Quem haverá de negar o drama de ter de decidir a guarda dos filhos de um casal em litígio? E se um dos pais for estrangeiro e estiver a reclamar o retorno das crianças a seu país, contra a vontade da mãe ou pai brasileiro que as houver trazido consigo? Quem negará a dificuldade de decretar uma prisão ou decidir sobre a liberdade de um cidadão acusado e ainda não julgado? Ou mesmo a dificuldade de julgar quem seja acusado da prática de crimes? E quem negará a dificuldade de decidir sobre questões que podem pôr abaixo um plano econômico? Ou a candidatura de um político influente? Alguém imagina o tipo de pressão que o juiz tem de aprender a suportar em tais casos, que fazem o dia a dia dos magistrados?

Por outro lado, mas justamente em razão da alta responsabilidade que exerce, o Código de Ética da Magistratura Nacional impõe, em seu 16º artigo, ao magistrado “comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral”. É evidente que ninguém pode pôr em dúvida a alta responsabilidade e as altas exigências do cargo.

Contudo, mais do que o desgaste emocional de participar dos dramas e ter a todo tempo diante de si, para decidir, estes tipos de questões; mais do que as restrições e exigências pessoais especiais a que se submetem os juízes; o que justifica uma política de recursos humanos condizente com essa enorme responsabilidade é a necessidade de atrair bons profissionais para desempenhá-la, já que os ônus são muito elevados. Toda e qualquer carreira tem as suas vantagens indiretas e quanto maior a responsabilidade dos cargos, melhores essas vantagens tendem a ser. O profissional que busca sua posição no mercado de trabalho logo procura saber sobre o plano de saúde oferecido pela empresa que o contratará. E a empresa oferece o melhor plano para seus mais graduados executivos, entre outros benefícios que a rigor não está obrigada a fornecer. Como também as empresas, com freqüência, oferecem participação nos lucros aos empregados e bônus financeiros mais vantajosos aos altos executivos. Evidentemente, participação em lucros não é compatível com o serviço público. Mas a existência de uma política de recursos humanos compatível com o grau de responsabilidade do cargo é absolutamente indispensável para a captação de bons quadros. Essa é a questão a sopesar, quando se trata das férias dos juízes. Sobretudo quando há outras carreiras, cuja responsabilidade às vezes sequer pode ser comparada à da magistratura, oferecendo muito maiores vantagens.

Ao contrário do que vem sendo afirmado, não há, ao menos para a imensa maioria dos juízes, “regalias”. Não há carro oficial e motorista, não há secretária para suas obrigações pessoais, coisas que certamente povoam o imaginário popular. Não há plano de saúde e não há segurança. Os juízes hoje são servidores itinerantes. Têm de deixar suas famílias para prestar jurisdição no interior do país, onde normalmente não têm residência oficial, como têm os militares. Os salários já foram superados por inúmeras outras categorias do serviço público e — pasme-se — muitas vezes são inferiores aos dos seus próprios auxiliares. Para a enorme responsabilidade e os desgastes emocionais decorrentes há hoje na magistratura uma única compensação: as férias. Enquanto isso, tudo indica que outras carreiras que exigem a mesma formação superior (a do Ministério Público e algumas da advocacia pública), além de outros, conservarão esse também esse direito, ficando a magistratura em franca desvantagem competitiva. Na realidade, agravar-se-á uma situação de inferioridade que já é facilmente perceptível.

Se estiver correto o noticiário, o projeto de lei do Estatuto da Magistratura será enviado ao Congresso em breve, sem que tenha sido sequer apresentado aos juízes, destinatários das normas, para que fossem colhidas opiniões sobre esses e outros aspectos. Custa crer que no Poder Judiciário haja tamanha falta de sensibilidade e democracia. Nós, juízes, antevemos claramente o sucateamento da magistratura e advertimos a sociedade: a seguir-se essa tendência, muito em breve os bons profissionais do direito não mais estarão na magistratura. E o presidente do STF, Cezar Peluso, certamente será sempre lembrado pelos juízes, não apenas pelo envio do projeto em momento tão desfavorável a uma discussão racional, mas por tê-lo feito sem ao menos ouvir democraticamente aqueles que serão afetados por ele.

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