Jornalismo e advocacia

Técnicas de investigação são debatidas nos EUA

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17 de janeiro de 2012, 10h24

A classe de jornalismo investigativo era mais disputada pelos alunos de jornalismo da Universidade NorthWestern, em Chicago, Illinois. Sob a batuta do então prestigiado professor David Protess, eles tiraram 11 condenados do corredor da morte, em um período de alguns anos. Os alunos investigavam casos criminais em que havia razoável suspeita de que prisioneiros eram inocentes. Conseguidas as provas, eles as repassavam a uma organização chamada "Medill Innocence Project" (Projeto Inocência Medill), ligada à Universidade. Mais recentemente, estavam trabalhando na libertação do 12º condenado à pena de morte, mas uma promotora pública e uma juíza colocaram um inesperado ponto de interrogação na história. Basicamente, os "jornalistas" estavam avançando os limites que separam o jornalismo da advocacia, entenderam.

Os problemas do professor de jornalismo investigativo David Protess — e de sua classe de alunos entusiasmados pela restauração da Justiça — começaram quando os advogados do Centro de Condenações Injustas da Faculdade de Direito da Universidade NorthWestern (uma entidade separada do Projeto Inocência) entraram com uma petição na Justiça pedindo a libertação de Anthony McKinney, condenado em 1981 pelo assassinato de um segurança. Eles se baseavam em provas conseguidas através das investigações dos alunos de jornalismo, de acordo com o Jornal da ABA (American Bar Association — a Ordem dos Advogados dos EUA).

Em resposta, a promotora pública estadual Anita Alvarez solicitou, através de intimação, a apresentação de todas as anotações e registros da classe, incluindo memorandos dos estudantes, transcrições acadêmicas e e-mails privados, enviados durante as investigações. Todo o material estaria sujeito ao processo de discovery — um procedimento de revelação de provas relevantes entre a equipe de acusação e a equipe de defesa, antes do caso ir a julgamento. Muitas vezes, especialmente em processos civis, as partes podem chegar a um acordo e o julgamento se torna desnecessário. Em muitos casos, pessoas ou organizações que não são partes no processo podem ser intimadas a apresentar provas. Certas informações confidenciais ou protegidas por lei podem ser dispensáveis.

A universidade enviou à promotoria todos os documentos relevantes solicitados e Anthony McKinney terá, enfim, uma audiência no tribunal, em que provas de sua inocência poderão ser apresentadas — e ele poderá ser libertado. Quem se saiu mal na história foi professor David Protess. Ele foi inicialmente apoiado pela universidade. Mas foi afastado quando se descobriu que ele teria negado à universidade informações e documentos que compartilhara com as entidades de defesa de condenados inocentes. Substituído por outro professor —e agora desprestigiado—, ele se dedica à abertura de seu próprio curso particular de jornalismo investigativo. E quer continuar trabalhando para libertar prisioneiros inocentes, especialmente os que estão no corredor da morte.

Mas a controvérsia continua. A promotora argumentou, também, que os estudantes de jornalismo atuaram como investigadores para a equipe de defesa de McKinney e não como repórteres. E, portanto, todas as informações que compartilharam com a equipe de defesa estão sujeitas não só ao processo de discovery, como a todas as regras e regulamentações da profissão de advogado. A juíza do fórum criminal do condado de Cook, Diane Cannon, concordou com a tese de que os estudantes estavam agindo como investigadores privados — e não como jornalistas — no caso McKinney, sem deixar de ressalvar que o trabalho deles, como repórteres, estava protegido pela lei estadual.

Investigar e divulgar
O novo professor de jornalismo investigativo da universidade, Alec Klein, deixou claro aos estudantes, desde o primeiro dia, que estavam praticando jornalismo e não advocacia. E que sequer eram militantes da Justiça. Além disso, disse que as informações apuradas não seriam compartilhadas com advogados e nem mesmo com as entidades ligadas à universidade. Mas Klein, que admira seu antecessor, foi repórter investigativo do Washington Post e do Wall Street Journal, não perdeu sua verve jornalística. "No entanto, quando investigamos uma história, temos de buscar a verdade, seja qual for", disse aos alunos. "Quando descobrimos um erro judicial, estamos fazendo um bem ao público e ainda podemos exercer um impacto", afirmou.

Assim, ele enviou dois de seus melhores estudantes para um dos bairros mais pobres e violentos da cidade, para investigar se Donald Watkins foi erroneamente condenado pelo assassinato de Alfred Curry, em 2007, como se suspeitava. A estudante Monica Kim e seu colega Taylor Soppe bateram de porta em porta, explicando que eram estudantes de jornalismo e estavam, como parte de um projeto escolar, buscando testemunhas do crime. A menos de duas quadras da cena do crime, uma mulher, que nunca fora abordada pela Polícia ou qualquer investigador, lhes disse: "Eu vi. Entrem que eu vou lhes contar tudo".

Em menos 10 semanas, os dois e outros colegas de classe, com a ajuda de um investigador particular, compilaram dezenas de entrevistas e milhares de documentos, incluindo declarações juramentadas, que podem comprovar a inocência de Watkins. Todas as provas — e transcrições que obtiveram na justiça, através de requerimentos baseados na Lei da Liberdade de Informação — foram publicadas no website da universidade.

A missão dos repórteres foi cumprida: investigar e publicar. Os advogados do Projeto Inocência fizeram sua parte: acessaram as provas e começaram a trabalhar no caso. A promotora não pôde reclamar já que as informações foram disponibilizadas através do processo de revelação de provas eletronicamente (e-discovery). 

A lista de erros judiciais nos Estados Unidos é grande, como em praticamente todos os países do mundo. Por isso, nos últimos anos, as faculdades de Direito dos EUA criaram mais de 60 programas, com nomes que incluem os termos "Projeto Inocência". Algumas faculdades de jornalismo fizeram a mesma coisa, inspirando-se no modelo criado pelo professor David Protess.

"Eu vi o que Protess estava fazendo e decidi criar um projeto semelhante aqui na Universidade Point Park", em Pittsburg, disse o professor Bill Moushey, um ex-jornalista investigativo. "Tudo que descobrimos, publicamos na revista Justice. Trabalhamos sempre com muito cuidado para não avançar na área da advocacia", disse ao Jornal da ABA. Mas sempre surgem advogados interessados em atuar no caso. Em sua última edição, a revista publicou provas que inocentavam um homem condenado por iniciar um incêndio que matou três bombeiros.

Há também o "Projeto Inocência Justice Brandeis", da Universidade Brandeis de Waltham, Massachusetts. Junto com os outros dois, o projeto faz parte da "Rede Inocência", presidida pelo professor de Direito da Universidade de Wisconsin, Keith Findley. Ele disse que os membros do conselho estão analisando as implicações jurídicas e éticas do jornalismo investigativo dentro do Projeto Inocência. "Os projetos jornalísticos são diferentes, porque os jornalistas não representam clientes e não estão sujeitos às mesmas diretrizes jurídicas e éticas que guiam os advogados", afirmou. "Estamos discutindo que tipos de considerações éticas devemos levar em consideração, como uma condição de associação", declarou.

Para os alunos da classe de jornalismo investigativo, as incursões pela área do Direito são apaixonantes. O ideal de corrigir injustiças persiste. A ex-aluna do professor Protess, Shawn Armbust, encontrou uma maneira de contornar a situação: está fazendo o curso de Direito. E pretende combinar as técnicas de jornalismo investigativo com as de advocacia. No momento, ela é diretora do Projeto Inocência "Mid-Atlantic", da Faculdade de Direito da Universidade Americana de Washington.

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