Justiça Tributária

Ninguém brinca impunemente com o Judiciário

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

16 de janeiro de 2012, 9h18

Spacca
Várias são as espécies de Justiça que o Estado democrático de Direito promete entregar aos cidadãos. Uma delas, a JUSTIÇA TRIBUTÁRIA, é muito importante, na medida em que resolve os conflitos entre fisco e contribuinte, pois boa parte das questões que examina repercutem na arrecadação e no pagamento de tributos. As pessoas geralmente procuram pagar o mínimo possível ao Estado, enquanto este quer arrecadar o máximo. Sempre foi assim e sempre será.

Há outras espécies de Justiça ou ramos do Direito também muito importantes, como a Justiça criminal, a falimentar, a trabalhista, a desportiva, etc., todas possuindo em comum o mesmo objetivo: fazer justiça em relação ao objeto de suas atuações. Ou seja: dando a cada um o que é seu.

Lamentavelmente, vem se tornando cada vez mais comum que os administradores públicos, as autoridades em geral, enfim, as pessoas pagas para desenvolver os trabalhos que viabilizam o bem comum, afastam-se das regras que norteiam suas funções, cometendo abusos e até mesmo ações definidas como crime, ainda que por ignorância disto não se apercebam.

Exemplo recente desse desvio de conduta é a reiterada aplicação de impedimentos ou restrições a contribuintes que se tornam inadimplentes, impedindo-os de exercer suas atividades.

Essas restrições, que passam pela criação de cadastros negativos (Cadin e similares) e terminam na suspensão arbitrária dos mecanismos de emissão de notas fiscais, não são novidades. Começaram na ditadura de Getúlio Vargas, quando se rotulava o devedor de “remisso”, impedindo-o até mesmo de arquivar atos no Registro de Comércio e adquirir selos ou estampilhas, em época onde o imposto de consumo era pago colando-se selos nos produtos.

Como se vê, avançamos na tecnologia, mas a cabeça de nossas autoridades ainda permanece na primeira metade do século vinte, quando os direitos das pessoas eram simplesmente ignorados.

A Secretaria de Finanças do Município de São Paulo baixou uma Instrução Normativa em dezembro, tentando legitimar a suspensão da emissão de notas fiscais eletrônicas em relação aos inadimplentes. Determinada autoridade, que certamente não tem formação jurídica, teria afirmado que eventual discussão sobre o assunto seria “causa perdida”. Apesar da profecia, tem-se notícia de que vários contribuintes foram ao Judiciário e obtiveram liminares, diante das quais pretende o fisco recorrer.

Acontece que as decisões judiciais baseiam-se em nada menos que três súmulas do STF e numa enorme quantidade de decisões de todas as esferas da Justiça, sempre no mesmo sentido: não pode o fisco impedir o inadimplente de trabalhar.

Não é razoável supor que uma autoridade fiscal, sem formação jurídica (ou, pior ainda, muito mal assessorado) insista em “recorrer”, nisso empregando o trabalho de procuradores e demais pessoas da área jurídica, tão somente para justificar uma posição claramente equivocada ou mesmo para tentar provar que está certo ou satisfazer alguma vaidade sem limites. O esforço dos procuradores seria muito mais útil na promoção das medidas judiciais de cobrança. Mais edificante e sensato seria reconhecer o que a medida de fato é: totalmente contrária a reiteradas decisões judiciais e injusta.

Registre-se, por oportuno, que o procurador, sendo advogado, sujeita-se às normas do Código de Ética da Advocacia, sendo-lhe vedado advogar contra expressa disposição de lei, o que configura a infração disciplinar prevista no artigo 34, VI, do Estatuto da Advocacia.

Por falar em infração, bem pior é a situação da autoridade que mandou impedir a emissão da nota fiscal: ela está sujeita à pena de reclusão de três a oito anos, nos termos do parágrafo 1º do artigo 316 do Código Penal, ou seja, por empregar na cobrança de tributo meio gravoso não autorizado por lei.

O ministro Marco Aurélio (STF) em recente entrevista à ConJur registrou a perplexidade de todo operador do direito quando se constata a inobservância dos posicionamentos adotados pacificamente pelo Judiciário, afirmando:

“A ausência de respeito às decisões do Supremo revela a quadra do nosso Estado, que talvez não seja, como se diz na nomenclatura, um Estado democrático de Direito. É inconcebível que o Supremo decida, e decida de forma reiterada, e o Poder Público — gênero, estados, municípios ou a União — ignore a decisão. O que nós precisamos no Brasil é de ética. É de homens, principalmente homens públicos, que observem a ordem jurídica constitucional.”

Quando qualquer autoridade pretende se colocar acima de posições reiteradamente adotadas pelo Judiciário, não está apenas demonstrando desprezo pela Justiça, mas revela uma arrogância desmesurada, como se pretendesse se colocar acima de todos. Isso é brincar com um dos poderes da república e não pode ser tolerado.

Essa posição tem politicamente um custo muito elevado. As pessoas prejudicadas com tais delírios megalômanos não vão debitá-los a um servidor público eventual, ocupante temporário de cargo de confiança, mas certamente apontarão como responsável pela iniquidade o titular do Poder Executivo, no caso o prefeito.

O Cadin também existe na área estadual e federal. E a Secretaria da Fazenda do Estado, aliás, também vem cometendo abusos desse tipo e outros piores. Já se declara inapta inscrição de contribuinte sem o devido processo legal e existem casos de apreensão de documentos sem recibo. Ou seja: a arbitrariedade é generalizada, com o que talvez se obtenha algum resultado prático no combate à sonegação, mas de qualquer forma haverá contribuintes prejudicados de forma ilícita, que vão acionar o poder judiciário e até exigir indenização pelos abusos.

Na área federal a prática de abusos também é frequente, inclusive com relação a pessoas físicas cujas restituições de imposto de renda ficam retidas sem motivo na famigerada malha fina.

Qualquer dessas questões submetem-se ao crivo do Judiciário. Ainda que estejamos assistindo a noticiários pouco lisonjeiros a alguns membros desse poder, não podemos nos esquecer que a confiança no Judiciário é indispensável à esperança que devemos ter na justiça. Quando não pudermos mais acreditar na realização da justiça em nosso país, já não valerá a pena vivermos aqui. Nosso Judiciário, mesmo com as notícias citadas (que se verdadeiras são exceções), ainda é o mais confiável de todos os poderes. Ao longo de quase quatro décadas de advocacia podemos testemunhar que as nossas esperanças na quase totalidade dos casos quase sempre se concretizaram. 

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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