União Eficaz

Boa fé e segurança jurídica é uma relação necessária

Autor

  • Eduardo Almendra Martins

    é especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina e mestrando em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza Defensor Público do Estado do Ceará.

1 de janeiro de 2012, 8h30

A Constituição Federal em seu artigo 1º, III, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana, esse princípio irradia-se por todo o ordenamento jurídico, bem como é possuidor de várias faces, dentre elas encontra-se a exigência de tratamento digno para com terceiros, ou seja, deve-se tratar com boa-fé. Outro princípio constitucional que garante a boa-fé é a igualdade e solidariedade social, pois se exigimos que nos tratem com boa-fé, devemos tratar os outros da mesma forma visto que segundo a Carta da República todos somos iguais em deveres e obrigações ( art. 3º , II e art. 5º, caput e inciso III, da CF/88).

O Direito é sistema por isso não devemos interpretá-lo em tiras, nessa medida é que se impõe a proteção da boa-fé como forma de preservação da segurança jurídica de todas as relações jurídicas, independente de seus sujeitos serem iminentemente privados ou privados e públicos, ou puramente públicos. A segurança jurídica é principio decorrente do Estado Democrático de Direito, como observa Bandeira de Mello, que elucida o seu conteúdo:

Este princípio não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porem, da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo (…). O direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da ‘segurança jurídica’, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles. (…).

Esta “segurança jurídica” coincide com uma das mais profundas aspirações do Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano. É a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro:é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, consequentemente – e não aleatoriamente, ao mero sabor do acaso – , comportamentos cujos futuros são esperáveis a médio e longo prazo. Dita previsibilidade é, portanto, o que condiciona a ação humana. Esta é a normalidade das coisas (2004, p. 112 a 114)

Uma certa estabilidade do direito é inerente à sua função. O direito é acima de tudo ‘um instrumento de segurança e, por isso de liberdade’. Apenas se puder prever as conseqüências que se vincularão aos seus atos é que o homem poderá decidir cientemente, empreender uma atividade, poderá organizar um trabalho, fundar uma família, esperará conservar o que adquire. Toda previsão é fundamentada nas regras existentes; sua segurança supõe uma certa fixidez das instituições nas quais ela se fundamentou.

Constata-se que a segurança jurídica é necessária para que o cidadão possa conduzir, com um mínimo de previsibilidade, sua vida em respeito às normas jurídicas, entendendo-se essas como textos legais compatíveis com a Constituição e os direitos fundamentais, como afirmam Mendes et alli,“(…) a segurança jurídica, somo subprincípio do Estado Democrático de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciador na realização da própria ideia de justiça material(2007, 474).

Os princípios da boa fé e seu corolário o da confiança são mais trabalhados dentro do Direito Civil, contudo, como já afirmado, ambos têm um âmbito de aplicação muito maior pois tem como fundamento a Constituição Federal de 1988. SOUSA informa que a boa fé e a confiança aplicam-se a todo o sistema jurídico:

(…). O campo de incidência destes princípios é amplíssimo, não se circunscrevendo ao campo do direto civil ou do direto privado, mas permeia todo o ordenamento jurídico. Afinal de contas, estamos tratando de máximas gerais da conduta ética que foram reconhecidas como incorporadas pelo Direito, tornando-as máximas ético-jurídicas. (2008, p.111)

A proteção ao princípio da boa-fé evidenciada na confiança foi objeto de enunciados da IV Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal: a) 362 – Art. 422. A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil. ; b) 363 – Art. 422. Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação. A função do princípio da confiança é bem observada por SOUSA:

De fato, no transito das relações sociais a confiança é vetor permanente presente que orienta nossas ações e, realmente, descarta uma série de possibilidades que se fossem consideradas determinariam um comportamento diverso do esperado (…). O princípio da confiança que orienta em larga medida a conduta humana, faz-se presente nas expectativas que os sujeitos nutrem em face do sistema jurídico. (2008, p. 119).

Exemplo de incidência da boa-fé além do direito privado está nos textos normativos do Processo Civil, nesse sentido todos os sujeitos processuais devem manter a lealdade processual na forma do fair trial, preconizado pelo Min. Gilmar Mendes no RE 464963/GO, em trecho de voto:

(…) O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais.

A máxima do fair trial é uma das faces do princípio do devido processo legal positivado na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição, voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, DA BOA-FÉ E LEALDADE DOS SUJEITOS QUE DELE PARTICIPAM, CONDIÇÃO INDISPENSÁVEL PARA A CORREÇÃO E LEGITIMIDADE DO CONJUNTO DE ATOS, RELAÇÕES E PROCESSOS JURISDICIONAIS E ADMINISTRATIVOS.

Nesse sentido, tal princípio possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à Justiça.

Contrárias a máxima do fair trial – como corolário do devido processo legal, e que encontra expressão positiva , por exemplo, no artigo 14 e seguintes do código de processo civil – são todas as condutas suspicazes praticadas por pessoas às quais a lei proíbe a participação no processo em razão de suspeição, impedimento ou incompatibilidade; ou nos casos em que esses impedimentos e incompatibilidades são forjados pelas partes com o intuito de burlar as normas processuais. (…).(2006, p. 17)

Didier afirma que o comportamento contraditório é uma violação da lealdade processual, e dá como exemplo o desrespeito à preclusão lógica entre as partes. (2008, p. 261) Mas como dito, o juiz, como sujeito processual também deve se portar dentro do princípio da confiança, pois não pode realizar julgamento antecipado da lide diante de uma revelia contrariando o interesse do autor. (DIDIER, 2008, p. 274).

O princípio da boa fé gera mais que um estado subjetivo de eticidade, “erige-se em fonte de normas objetivas”. ( SOUSA, 2008, p. 116). Não se pode excluir o respeito a boa-fé dentro de um sistema jurídico constitucional, pois do contrário, se passaria a exigir comportamentos éticos dos particulares e não se faria a mesma exigência do Estado, circunstância de flagrante possibilidade de opressão desse sobre aqueles, daí a irradiação como princípio constitucional implícito (art. 5º, §2º da CF/88) sobre todo o ordenamento jurídico.


REFERÊNCIAS

BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direio. São Paulo: Martins Fontes, p. 141, 2001

DIDIER JR., Fredier. Curso de Direito Processual Civil. Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 9ª ed. rev. atual e ampla. Salvador: Editora Jus Podivm. 2008

MENDES, Gilmar Ferreira. Voto no RE 464963/GO. Transcrições. Informativo do Supremo Tribunal Federal, nº 434, Brasília, 1º a 4 de agosto de 2006. Disponível em:<http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo434.htm >. Acessado em: 24 de dezembro de 2011.

______________, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva e IDP, 2007

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, p. 112, 2004.

SOUSA, Wagner Mota Alves de. A teoria dos atos próprio: da proibição do venire contra factum próprio. Salvador: Jus Podivm, 2008.

IV Jornada de Direito Civil. Organização: Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr.. Brasília: CJF, 2007. 2 v. Disponível em:. Acessado em: 24 de dezembro de 2011.

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    é especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina e mestrando em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza, Defensor Público do Estado do Ceará.

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