Névoa da ignorância

Direito Ambiental é disciplina esquecida em cursos

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22 de fevereiro de 2012, 13h31

A Resolução CNE/CES 9, de 2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito, trouxe importantes avanços para o necessário processo de aproximação da formação acadêmica à aplicação prática do direito[1]. Ainda assim, a realidade mostra que a grande maioria dos cursos jurídicos do país ainda não é capaz de formar bacharéis aptos a pensar o direito para além dos códigos e minimamente preparados para o mercado de trabalho. Os resultados muito abaixo do razoável nos Exames de Ordem coadunam esse entendimento, embora tal dificuldade não se manifeste exclusivamente no Brasil[2].

No modelo curricular vigente, o Direito Ambiental figura como disciplina eletiva, ou seja, não obrigatória, podendo ser dispensada na formação do futuro jurista. Entretanto, ao contrário do que se configura nos bancos acadêmicos, a complexidade do mundo contemporâneo não possibilita ao profissional do direito o desconhecimento das questões ambientais, com as quais poderia ter algum contato por meio daquela dispensável disciplina eletiva, cujo domínio é cada vez mais exigido dos que se pretendem operadores do direito, independentemente da área de especialização. Em breve exemplificação, podemos identificar que, no Direito Empresarial, não se pode olvidar as exigências impostas pelo licenciamento ambiental para o início de novos empreendimentos; na seara penal, a Lei 9.605, de 1998 ampliou o rol de condutas típicas que caracterizam o crime ambiental, prevendo, inclusive, a responsabilidade penal da pessoa jurídica; na esfera laboral, a manutenção do meio ambiente do trabalho equilibrado é desdobramento constitucional que se impõe a todos os empregadores; por fim, qualquer que seja o ramo do direito escolhido pelo recém-formado é possível identificar interseções com as questões ambientais, cujo enfrentamento exigirá o conhecimento da referida matéria.

A tutela constitucional do meio ambiente, prevista no artigo 225 da Carta Maior, e a atuação institucional do Ministério Público, tem contribuído para a crescente relevância da disciplina, cujo desenvolvimento, no Brasil, conforme Bello Filho, se deu em três fases[3]: a primeira, do descobrimento até meados do século XX, priorizava o viés patrimonial do meio ambiente, sem que este fosse um valor em si mesmo; a segunda, da metade do século passado até o começo dos anos 80, com maior destaque para a relação homem-natureza; e finalmente, a terceira fase, dos anos 80 aos dias atuais, que traz o meio ambiente como valor autônomo, a ser protegido não apenas pelo Poder Público, mas por toda a coletividade.

Não há como ignorar o desconforto que a questão ambiental traz ao direito, pois além de envolver temáticas que não são eminentemente jurídicas[4], frequentemente esbarra naquilo que o direito tem de mais precioso: a segurança. No dizer de Maria Garcia, catedrática da Universidade de Lisboa, “apesar do muito que os cientistas hoje já sabem sobre os fenômenos ambientais e o seu desenvolvimento futuro, a dimensão do que ignoram não é menor”[5]. Essa constatação amplia sobremaneira o terreno pantanoso sobre o qual estão alicerçadas as decisões que envolvem a tutela ambiental. Ainda com Garcia, é possível compreender que quando se está diante de questões ambientais, “a intervenção considerada necessária nada terá de evidente ou indiscutível. Estará sempre envolta em incertezas”[6]. Esse estado de “suspensão permanente” pode significar a necessidade de revisão dos postulados ambientais com maior freqüência do que tem se em outros ramos do direito, uma vez que as razões expostas podem não mais encontrar respaldo na própria ciência que a fundamentou, fazendo lembrar as célebres palavras do eminente ministro Menezes Direito: “o voto vencido de hoje será o voto vencedor de amanhã”[7].

Também não se pode olvidar que os princípios da livre iniciativa e do desenvolvimento econômico frequentemente se contrapõem aos princípios que tutelam a vida e o meio ambiente, gerando conflitos que não escapam ao âmbito das decisões judiciais. Diante dos hard cases[8] ambientais, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado a técnica da ponderação de princípios, que tem em Robert Alexy um de seus maiores expoentes. De acordo com Alexy, princípios “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”[9]. Dessa forma, os princípios são “mandamentos de otimização” que podem ser satisfeitos em graus diversos, por isso, na sua aplicação é necessário que sejam ponderados. Assim, diante do caso concreto, poderá prevalecer tanto o viés econômico quanto o viés ambiental, a depender da situação fática.

Encontrar o ponto de equilíbrio é o grande desafio à concretização do Desenvolvimento Sustentável, que segundo o Relatório Brundtland, resultado de estudos promovidos pela Comissão Mundial da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, pode ser entendido como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. A dificuldade maior não está apenas em estabelecer limites para o que se conhece, mas também e principalmente para aquilo que ainda não se pode saber. Em Ulrich Beck, a estrutura da sociedade pós-moderna e os danos decorrentes das atividades industriais possibilitaram o desenvolvimento do conceito de “sociedade de risco”, onde a incerteza é inerente à sociedade contemporânea. Em Aristóteles, o “caminho do meio”, ou seja, o ponto de equilíbrio é apontado como o único capaz de conduzir à felicidade[10]. Séculos depois, a fórmula aristotélica ainda nos parece complexa e inatingível.

Cada vez mais, a sociedade amplia suas possibilidades (e conflitos) e a utilização de velhas fórmulas torna-se inócua à solução de novos problemas, dentre os quais se encontram as questões ambientais. Com Edgar Morin, é possível afirmar que “estamos submersos na complexidade do mundo”[11] e diante dessa realidade, “é necessário aprender a estar aqui no planeta”[12]. Ao invés de soluções de conflito, soluções de convívio: essa é a proposta do direito ambiental, que encontra amparo em outros ramos do saber, para além das fronteiras estreitas da codificação. Estudar direito ambiental é despertar para a necessidade de desenvolvimento do ser humano como ser terreno, parte integrante (ao invés de dominante) do planeta e compreender o papel do direito na proteção do meio ambiente.

No cenário que se configura até aqui, cabe indagar: o conhecimento do Direito Ambiental e das questões que lhe são inerentes é realmente dispensável para a formação do jurista das presentes e futuras gerações? Com a catedrática de Lisboa acrescenta-se que “a ignorância cognitiva não está só do lado de quem é analfabeto ou, mais amplamente, do homem comum, daquele que não é cientista. A ignorância atinge todos, cientistas e não cientistas. Ninguém lhe pode fugir. A sociedade da incerteza é também a sociedade da ignorância”[13]. Nesse sentido, desconhecer a questão ambiental é apenas parte do problema e conhecer do Direito Ambiental não será a solução, mas certamente, reduzirá a névoa da ignorância.


[1] Cf. MOTTA, Ivan Dias da. Diretrizes curriculares nacionais para o curso de direito: paradigmas para a construção do projeto pedagógico. Revista Jurídica Cesumar. Vol. 6, Nº 1. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/311/165>. Acesso em: 11 fev 2012.

[2] Para Jim McElhaney, professor de direito nos EUA, a formação acadêmica daquele país não possibilita que os bacharéis cheguem preparados ao mercado, uma vez que grande parte dos recém-formados “sequer pensam como advogados”. Cf. MELO, João Ozório de. Insistir em alegações perdedoras corrói a credibilidade. Boletim Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-nov-22/professor-critica-advogados-insistem-argumentos-perderores>. Acesso em: 23 nov 2011.

[3] BELLO FILHO, Ney de Barros. Direito Ambiental. 2ª edição. Curitiba: IESDE Brasil, 2009. p. 7-8.

[4] Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 101 (O caso dos pneus). Disponível em: Supremo Tribunal Federal <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAdpf101>. Acesso em: 11 out 2010.

[5] GARCIA, Maria da Glória Dias. O lugar do direito na protecção do ambiente. Estudos de Direito do Ambiente e de Direito do Urbanismo. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. p.24.

[6] Idem.

[7] Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510 (O caso das células-tronco). Disponível em: Supremo Tribunal Federal. <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723>. Acesso em: 16 fev 2012.

[8] Na obra Levando os Direitos a Sério, Ronald Dworkin conceitua “hard cases” ou “casos difíceis” como aqueles que não podem ser submetidos a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição , ou seja, sobre os quais há dúvida quanto ao direito aplicar ou de que forma decidir. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 128.

[9] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 588.

[10] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.

[11] MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2011. p. 55.

[12] Idem. p. 66.

[13] GARCIA, Maria da Glória Dias. Op. cit. p. 25.

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