Defesa dos pobres

"Não queremos ter o monopólio da assistência jurídica"

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19 de fevereiro de 2012, 8h17

Spacca
Existem cerca de nove mil advogados públicos federais, 3.754 juízes do trabalho, 1.735 juízes federais, 1.698 membros do Ministério Público da União e 5.200 defensores públicos estaduais. No entanto, os defensores públicos da União são apenas 480. A discrepância das carreiras foi lembrada por Haman Tabosa de Moraes e Córdova, em novembro, na ocasião em que seu nome foi confirmado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado como defensor público-geral da União.

Além da expressiva defasagem em seus quadros em relação aos desafios da profissão, a Defensoria Pública da União carece essencialmente de autonomia administrativa e financeira, ou seja, sequer pode elaborar seu orçamento próprio. A realidade severa também foi mencionada por Haman Tabosa, no Senado, em novembro, e abordada novamente em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, em seu gabinete, em Brasília.

Tabosa, porém, não esmorece quando tem de defender, de modo entusiasmado, o caráter ético e constitucional que permeia o papel do defensor público. Em termos institucionais, a Defensoria Pública não integra os poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, lembra Tabosa, mas constitui um aparelho fundamental do exercício pleno da Justiça ao lado da advocacia e do Ministério Público.

Aos 36 anos, Haman Tabosa tem um ano a mais do que o exigido para se ocupar o cargo de defensor geral. Defensor público desde 2006, Tabosa foi aprovado no concurso de 2004, mas como o cargo não existia formalmente, ele foi empossado apenas em 2006. Natural de Brasília, começou atuar como defensor no Rio de Janeiro, assumindo, em seguida, a presidência da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais. Antes de ingressar na carreira foi escrivão da Polícia Federal e analista judiciário no STJ.

Haman Tabosa é absolutamente determinado quando tem de falar do caráter e da extensão social do trabalho do defensor público, um “irretratável e imodificável preceito do constituinte originário”, como costuma dizer. O titular da DPU é pontual ao distinguir entre o caráter da advocacia oferecida a cidadãos hipossuficientes — seja como serviço ou em pro bono — e a exigência constitucional da assistência jurídica gratuita oferecida pelo Estado.

“Repelimos completamente a idéia de querer ter o monopólio da assistência jurídica gratuita”, disse Tabosa durante a entrevista. “Temos, sim, o monopólio da assistência jurídica gratuita estatal, prestada pelo Estado, com recursos públicos”.

Porém, o defensor geral alerta para a urgência de tirar a defensoria do seu eterno caráter provisório e emergencial. “Hoje é quase insustentável administrar a DPU”, adverte Tabosa, por conta da falta de pessoal, estrutura e instrumentos administrativos apropriados para exercer o papel que a Constituição lhes atribui.

Leia a entrevista:

ConJur — Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PEC 82/11, que assegura à Defensoria Pública da União autonomia funcional e administrativa. O que muda, na prática, se a proposta for aprovada pelo plenário e, depois, sancionada?
Haman Tabosa — Um dos pontos mais importantes é que a PEC nos dá a iniciativa da proposta orçamentária. Assim, não ficamos “reféns” do ministério a que estamos vinculados.

ConJur — Que é o Ministério da Justiça?
Haman Tabosa — Exato. Temos um ótimo diálogo com o Ministério da Justiça, que compreende bem a nossa situação. Mas é um ministério bastante caracterizado pelo trabalho em segurança pública, o que faz com que a Defensoria fique um pouco deslocada lá dentro.

ConJur — Qual seria o habitat natural da Defensoria?
Haman Tabosa — Na hora de alocar a Defensoria Pública da União (DPU), entendeu-se que o Ministério da Justiça seria o melhor lugar naquele momento. E até hoje persiste essa situação. Agora o que muda de concreto, com a aprovação da PEC? Teríamos condições de discutir um orçamento para Defensoria Pública de igual para igual. Então, iríamos diretamente ao encontro dos parlamentares para mostrar quais são nossas necessidades. Ninguém melhor do que o defensor-geral para saber aonde aplicar os recursos da Defensoria. Hoje, nossos recursos são previstos na lei orçamentária pelo Ministério da Justiça. E o acréscimo é lento, não acompanha a crescente demanda. Isso nos engessa, nos prendendo às mesmas deficiências. A aprovação da PEC seria o oxigênio que precisamos para deixar para trás essa ação com caráter emergencial em que nos encontramos até hoje.

ConJur — A impressão é de que o Ministério da Justiça tem sido um parceiro, até um incentivador da Defensoria, ao menos no plano estadual. Inclusive, já foram feitos diagnósticos da Defensoria pelo ministério, não?
Haman Tabosa — Nós participamos do terceiro diagnóstico. O secretário da Reforma do Judiciário, Rogério Favretto, nos convidou para tomar parte do diagnóstico. Fui um dos membros da comissão que promoveu aquele terceiro diagnóstico. A Defensoria da União, pela primeira vez, foi inserida no contexto e recebeu o tratamento apropriado. Os dois primeiros traçaram a situação apenas das defensorias públicas estaduais.

ConJur — Qual foi o resultado do estudo?
Haman Tabosa — O terceiro diagnóstico já exibia o resultado que é fruto da maior autonomia dos estados. Já ocorreu, sem dúvida, um grande aprimoramento institucional proporcionado pela Emenda Constitucional 45 (Emenda da Reforma do Judiciário). O diagnóstico apontou que ainda não dispomos da autonomia já conquistada, obviamente, pelos estados. Há a idéia de se fazer o quarto diagnóstico. Mas, com todo o respeito, colegas já começam a questionar: “Quantos diagnósticos serão necessários para determinar que a Defensoria Pública da União está ficando para trás?”. Essa é uma critica que se faz a esse “excesso de estudo”, mas sem efeito prático.

ConJur — O senhor mencionou deficiências. Quais são as deficiências?
Haman Tabosa — A maior é a questão orçamentária. Hoje temos uma administração que se concentra toda em Brasília. Fazendo uma comparação com as superintendências da Polícia Federal, cada uma delas é uma unidade gestora, cada delegado que as comanda é o ordenador de despesas daquela unidade. Assim, a gestão funciona. Também temos deficiência de pessoal. Não temos carreira de apoio. A Defensoria funcionava com terceirizados e servidores requisitados, já que a nossa lei orgânica (Lei 9.020/95), que criou a DPU em caráter emergencial e provisório, não criou carreira de apoio. Portanto, não dispomos de servidores administrativos, analistas ou técnicos, como tem o Judiciário e o Ministério Público.

ConJur — E por que isso não foi previsto?
Haman Tabosa — A justificativa é a de que impactaria o orçamento. Essa é sempre a grande desculpa para não se fortalecer a Defensoria, que precisa ser um órgão robusto para defender a sociedade carente. Mas, de outro lado, nos foi dado um poder de requisição. Podíamos requisitar quaisquer servidores dos órgãos da Esplanada, pois a cessão era irrecusável, como estabelece o artigo 4º, parágrafo único da lei. Então, oficiamos para muita gente requisitando servidores. Em um primeiro momento, eles vieram…

ConJur — Isso mudou?
Haman Tabosa — Houve um Termo de Ajustamento de Conduta fechado entre o Ministério Público do Trabalho e a União para substituir os terceirizados por servidores concursados. Mas o que aconteceu? Tínhamos 311 terceirizados, e a União nos deu 311 cargos. Então, no primeiro concurso apenas substituímos seis por meia dúzia. No segundo concurso, já conseguimos mão de obra ainda mais qualificada. Era um incômodo quando solicitávamos servidores de outros órgãos, porque ninguém quer perder servidor, e nós também não queríamos o refugo de outros lugares. Queríamos pessoas qualificadas.

ConJur — Qual o quadro da Defensoria da União hoje?
Haman Tabosa — Somos 480 defensores, divididos por 58 unidades. Mas a gestão é toda centralizada em Brasília. Há unidades de atendimento à população carente em todas as capitais brasileiras e em mais 31 municípios do interior. Imagine fazer licitação para a compra de material para todas elas, a partir de Brasília. É uma loucura. Suponhamos que um elevador na unidade de Belo Horizonte quebre. Imediatamente, vem um pedido a Brasília para limitar o atendimento. Mas se limitamos o atendimento, o Ministério Público Federal em Belo Horizonte entra com um inquérito administrativo, um inquérito civil, questionando o porquê de a população não estar recebendo o serviço da Defensoria. É um círculo vicioso, uma bomba para o gestor administrar tudo isso.

ConJur — Em razão do contingente e estrutura insuficientes…
Haman Tabosa — Exato. Há unidades com um ou dois defensores. Quando alguém tira férias, tenho que abrir uma designação. Acabo cobrindo um santo para descobrir outro. O resultado é que, a cada dois meses, aparece uma ação civil pública do Ministério Público Federal por conta de determinados municípios do país aonde não chegamos. A justificativa a ação é de que a população está com seus direitos sonegados pela União, que não oferece o serviço de assistência jurídica gratuita.

ConJur — Houve um parecer do TCU estimando o número ideal de servidores para a DPU, não?
Haman Tabosa — Sim. São necessários, pelo menos, 1.200 defensores e cerca de 4.600 analistas e técnicos para uma instituição de amplitude nacional como a Defensoria da União.

ConJur — De quando é esse parecer?
Haman Tabosa — De 2005. Desde então, estamos na expectativa. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, tem sido extremamente sensível a essa questão e mantido o diálogo aberto. Falta, diante da conturbada agenda do ministro, marcarmos uma reunião para rememorar o governo federal de que a necessidade de novos quadros foi devidamente estimada e, dessa forma, apresentarmos o projeto. O estudo foi feito. Agora, precisamos tirar a Defensoria do caráter emergencial e provisório.

ConJur — Quando se fala em Defensoria Pública, logo vem à mente a defesa na área penal. É possível expandir o atendimento aos carentes para outras áreas, como a trabalhista?
Haman Tabosa — A DPU atua na Justiça Federal Comum e nas justiças especializadas, como a trabalhista e a eleitoral. A Defensoria Púbica da União é a outra face da moeda do Ministério Público da União. Então, o MPU tem o MP Militar, o MP do Trabalho, o MP Federal, que cumula o MP Eleitoral. A diferença é que o MPU conseguiu aprovar sua autonomia e estrutura na Constituição Federal de 1988. E sua lei complementar é excelente. Não dispomos dessa divisão de tarefas. Então, o defensor que entra hoje pode ser lotado no ofício trabalhista, no oficio militar, no oficio criminal ou no eleitoral.

ConJur — Falta a equivalência…
Haman Tabosa — Não há equivalência. E voltamos à questão da autonomia. É possível imaginar o Ministério Público Federal vinculado ao Ministério da Justiça, e o Ministério Público dos estados, autônomos? É o que acontece hoje com a Defensoria. A parte federal está atrelada a um ministério, e as estaduais são autônomas.

ConJur — Por que isso não muda?
Haman Tabosa — O grande receio é que a defensoria vire um monstrengo, algo gigantesco, capaz de pesar muito no orçamento federal. Mas o que fazemos é promover cidadania, garantindo, muitas vezes, até mesmo distribuição de renda. Porque se o defensor conquista o benefício previdenciário para uma pessoa, ela passa a consumir, a movimentar o mercado. Sem falar nas questões extrajudiciais que estamos aptos a resolver. Não existimos para colocar o Estado na parede. É uma visão equivocada de um órgão que é essencial à função jurisdicional do Estado.

ConJur — Existe resistência da advocacia à atuação da Defensoria da área trabalhista?
Haman Tabosa — A resistência gigantesca. Existe um projeto piloto para a questão. Se pegarmos os 480 defensores que temos hoje para atuar somente na demanda trabalhista, será insuficiente. Também não é o caso de recrutarmos milhares de servidores para cobrir a demanda. Temos, sim, condições de analisar aquilo que, na demanda trabalhista, é fundamental. Temos de atuar junto ao cidadão completamente desassistido.

ConJur — Sem concorrer com a advocacia?
Haman Tabosa — Exato. São nichos diferentes. O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho chegaram a abrir um inquérito civil questionando a ausência de atuação da Defensoria na área trabalhista. Demos a resposta óbvia: “Não temos estrutura”. Frente à pressão, nos comprometemos com um projeto embrionário aqui em Brasília, de deflagrar a atuação na área trabalhista para saber qual é efetivamente a demanda. Temos hoje quatro ofícios trabalhistas e quatro defensores para toda demanda do Distrito Federal. Em três meses de abertura do ofício, foi superada a demanda em relação ao atendimento cível e previdenciário somados. Já estamos agendando atendimento para junho de 2012.

ConJur — Qual é o público alvo da Defensoria?
Haman Tabosa — Há critérios objetivos predeterminados. A nota de corte é feita pelo próprio governo federal, que é a isenção do Imposto de Renda. É um critério objetivo. Mas isso não está padronizado nas defensorias. Umas estipulam três salários mínimos, outras quatro, outras dois salários. Preferimos trabalhar com um dado nacional, que é a isenção fiscal. Com isso, conseguimos, inclusive, negar a assistência jurídica para quem tem renda e está querendo se valer de um serviço gratuito que outras tantas pessoas realmente precisam.

ConJur — Há exceções?
Haman Tabosa — Há casos em que mitigamos o critério, claro. Quando o cidadão comprova que gasta, de modo constante, com medicamentos para tratamento de saúde, por exemplo.

ConJur — Há uma disputa entre a Defensoria Pública e o Ministério Público em torno da competência de propor ação civil pública. Temos o exemplo do derramamento de petróleo no Rio de Janeiro, em que a Defensoria Pública entrou com uma ação civil pública e muitos questionaram: “Onde está o hipossuficiente nesse caso?”
Haman Tabosa — O que está em jogo no caso do derramamento de petróleo é o meio ambiente. Alguns defendem que a Defensoria tem de estar focada no hipossuficiente e não pode defender direitos difusos, que é o caso do meio ambiente. Essa é a grande discussão e já foi parar no Supremo Tribunal Federal, por uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Conamp (Associação nacional dos Membros do Ministério Público). A relatora da ação é a Cármen Lúcia. A questão é que temos direito ao meio ambiente equilibrado, seja o pobre, seja o rico. É com esse viés que a Defensoria atua. A lei que nos deu legitimidade para ação civil pública estendeu o campo de atuação da Defensoria, no âmbito da tutela coletiva e da comunicação de flagrantes. A lei deu a legitimidade e não criou nenhuma restrição. E o Ministério Público não consegue fazer tudo sozinho. A legitimidade vem do entendimento que se trata de mais uma instituição que veio para somar.

ConJur — Não há o risco de haver concorrências de ações?
Haman Tabosa — Sim. Há o risco de duas ações pela mesma situação. Mas já houve casos em que o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União se juntaram em uma ação civil pública. São dois poderes legitimados em uma ação só.

ConJur — Há espaço para advocacia pró bono e para a Defensoria? A Defensoria Pública quer ter o monopólio dos pobres?
Haman Tabosa — Temos que buscar o texto constitucional como qualquer fundamento para nossa atuação. A Defensoria Pública não é uma questão de opção, mas uma imposição do constituinte originário. O defensor público é um profissional que atende a uma demanda constitucional. É vedada a advocacia ao membro da Defensoria Pública. Mas a discussão é ampla. Há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade recentemente ajuizada pela OAB relacionada ao debate. Qualquer advogado que quiser ajudar uma pessoa não está em confronto com a atribuição da Defensoria Pública. O problema é que o Estado remunera, paga bem os defensores, para que ele tenham a obrigação de prestar essa assistência. Repelimos completamente a idéia de querer ter o monopólio da assistência jurídica gratuita. Temos, sim, o monopólio da assistência jurídica gratuita estatal, prestada pelo Estado, com recursos públicos.

ConJur — Em um mundo ideal, a estrutura da Defensoria Pública teria um quadro de apoio multidisciplinar, com psicólogos, assistentes sociais, médicos. Como convencer o governo a fortalecer um órgão que irá litigar contra ele?
Haman Tabosa — Veja, nós litigamos contra o INSS nas questões previdenciárias. Muitas vezes, médicos que requisitamos de outros órgãos para a Defensoria contestam o laudo do perito do INSS, e assim conquistamos na Justiça o beneficio previdenciário para o cidadão que teve aquele pedido negado. Com isso, estamos levando a Justiça a essas pessoas que não têm condições. O que precisamos transmitir para o governo é que nós não somos cifras. O aparelhamento da Defensoria Pública não passa só pelo viés de quanto custaria aos cofres públicos, mas ao bem que faria para a população ter ao seu dispor defensores públicos para eventualmente reparar injustiças. Falta a visão social em detrimento da visão do impacto orçamentário.

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