Segunda leitura

Djaci Falcão e o STF no passado e no presente

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

12 de fevereiro de 2012, 13h04

Spacca
Faleceu recentemente o ministro do Supremo Tribunal Federal aposentado Djaci Falcão. As novas gerações, certamente, dele não ouviram falar. Vivemos tempos midiáticos e as informações nos chegam às dezenas. Ninguém absorve ou  fixa na mente algo além de seus interesses mais imediatos.

Nascido em Monteiro,  PB, em 1919, Djaci Falcão teve toda sua formação no Recife, PE. Ingressou na magistratura pernambucana em 1944. Em 1957 foi promovido a Desembargador do Tribunal de Justiça, do qual foi Presidente em 1961. Em 1967, indicado pelo Mal. Castelo Branco, Presidente da República, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal. Entre 1975 e 1977 exerceu a presidência. Em 1989 aposentou-se,  ao completar 70 anos de idade.

Conheci-o em janeiro de 1974, em viagem de turismo ao Nordeste. Fui levado ao seu apartamento, na praia da Boa Viagem, pelas mãos do Procurador do Estado Décio Valença, pai do cantor Alceu Valença. Eu era um jovem Promotor de Justiça da então pequena Caraguatatuba, litoral de SP, jamais havia falado ou visto um Ministro do STF. Assim, a possibilidade de conversar com um me encantou.

Recebido com extrema cortesia por aquele homem discreto e culto, em meio a uma agradável conversa, dele recebi algumas lições de vida. Sim, porque os grandes não ensinam somente nas salas de aula, mas também na convivência, no diálogo.

A primeira foi a de que o exercício da autoridade não importava necessariamente em arrogância ou posição de superioridade. Voltei para minha comarca com o propósito de tratar da melhor forma possível todos que me procurassem. Afinal, se um Ministro do STF me dava tanta atenção, o mínimo que eu tinha a fazer era dar igual tratamento aos que de mim precisassem. E assim fiz.

A segunda foi a de que ninguém chega a um cargo de tal relevância sem preparar-se intelectualmente, De forma despretensiosa, contou-me o ministro Djaci que nos tempo em que foi Juiz de Direito em Paulista, cidade próxima do Recife, deslocava-se toda semana à capital para ter aulas de italiano. É dizer, enquanto muitos deveriam estar preocupados em distrair-se, ele estava estudando. Além disto, narrou-me ter sido Professor de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFPE, comentando que isto o auxiliava a manter-se atualizado. Sem saber, estimulou-me ao estudo.

A terceira foi a sua demonstração de interesse por minha pessoa. Queria saber detalhes da minha função, número de processos da Vara, peculiaridades da comarca. Ora, qualquer um sabe que um líder judiciário estimula os juízes ou demais atores ao interessar-se por suas atividades. Sem ter lido “O Monge e o Executivo”, de James Hunter, que não existia à época (o único mais próximo era “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie), o Min. Falcão incluía-me na sua energia positiva. E eu passei a fazer o mesmo com outras pessoas, por toda minha vida.

Dois anos depois, visitei-o no Supremo Tribunal Federal, visando convidá-lo para que fizesse a apresentação do Livro “Abuso de Autoridade”, pela RT, feito com meu irmão Gilberto. Inexperiente e ignorante dos protocolos palacianos, cheguei sem marcar audiência. Ele era na ocasião nada mais, nada menos, que o Presidente da Corte. Cerca de 30 minutos depois de apresentar-me, recebeu-me. Entrei no seu gabinete intimidado, nas pontas dos pés. Sua sala,  no prédio antigo do Supremo, era a que abriga hoje a Ministra Corregedora Nacional da Justiça.

Fui recebido, novamente, com toda a delicadeza e distinção. Registro que a delicadeza do Ministro Djaci Falcão era discreta e formal, como, de resto, parece-me que deve ser a atitude de quem ocupa tal posição no Poder Judiciário. Apresentei-lhe o pedido, deixando uma via do nosso estudo.

Aqui é preciso ressaltar que a Lei 4.898, de 1965, foi editada no regime militar e, comentá-la, era um ato de certa audácia. Ele, prudentemente, pediu para examinar o projeto de livro antes de aceitar o convite. Alguns meses mais tarde, através da assessoria, comunicou-me que aceitava e, pouco tempo depois, chegou, via correio, a apresentação.

Eu e meu irmão, honrados, agradecemos e, orgulhosos, levamos à editora. A apresentação dispensou qualquer análise, a publicação foi autorizada de plano.  O livro, único por anos sobre o tema, teve grande vendagem, chegando à 9ª. edição. Há bom tempo estamos para atualizá-lo para a 10ª edição, mas o tempo é cada vez mais curto. Somos, ambos, aposentados atípicos. Insensatos, talvez.

Passaram-se os anos e fui mantendo contatos esporádicos com o ministro Djaci Falcão, em Brasília ou no Recife, onde tive oportunidade de visitá-lo. Agora, com mais de 90 anos de idade, parte ele para outra dimensão, onde certamente receberá o tratamento destinado àqueles que na Terra espalharam o bem.

A narrativa desta vida exemplar levará o leitor a fazer-se uma pergunta: seriam os Ministros do STF do passado melhores do que os de hoje?

A resposta é difícil, porque tudo mudou. O mundo, os políticos, os jogadores de futebol, os médicos e, exatamente como todos os outros, os juízes. Se o ministro Djaci Falcão estivesse em atividade até 3 meses atrás, certamente não seria o mesmo do seu tempo, porque estaria imerso e envolvido em um ambiente totalmente diverso.

Com efeito, receberia ações e recursos em quantidade muito maior, teria questões muito mais complexas em razão da amplitude da Constituição de 1988, julgaria temas em que a sociedade se posiciona e cobra diretamente a ação do STF, teria que lidar com uma falta de respeito inexistente ao seu tempo e, de sobra, estaria exposto na TV Justiça toda semana, tornando-se, querendo ou não, uma figura pública.

Mas, inteligente como era, certamente se adaptaria e continuaria sendo respeitado. Sim, porque alguns valores são os mesmos em qualquer parte e em qualquer época. A sociedade, aqui ou na Tailândia, no Brasil de hoje ou no do século XIX, valoriza nos juízes as virtudes lembradas por Moura Bittencourt, quais sejam: “a independência, a humildade, a coragem, o altruísmo, a compreensão, a bondade, a brandura no trato de par com a energia de atitudes, o amor ao estudo e ao trabalho” (O Juiz, Ed. Leud, p. 30).

Aos valores de Bittencourt, o ministro Djaci Falcão acrescentava o da discrição, que sempre se assenta bem em um magistrado, de quem não se esperam ações, decisões ou exposições típicas dos políticos.

Se é comum apontar-se os que se desviam do bom caminho, temos o dever de enaltecer os que engrandeceram a magistratura e o Brasil. Djaci Falcão foi um deles.

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