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Lucro de filial no exterior não pode ser tributado

Autor

  • Humberto Ávila

    é fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.

7 de fevereiro de 2012, 16h47

É antigo o tema da tributação, pelo imposto sobre a renda e pela contribuição sobre o lucro, das empresas coligadas ou controladoras localizadas no país pelos lucros auferidos por empresas coligadas e controladas sediadas no exterior. De um lado, ele já foi tratado, quase à exaustão, pela doutrina. De outro, já foi enfrentado pelo Poder Judiciário, por vários de seus tribunais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, cujo Plenário está por concluir o julgamento a respeito da constitucionalidade do artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01, que trata exatamente desse assunto.[1]

Diante desse quadro, não se revela oportuno voltar ao tema em toda a sua extensão.[2] Cabe, neste momento, apenas chamar a atenção para dois pontos — e somente para dois — que são fundamentais, pelo menos sob a perspectiva com que serão aqui investigados: a existência de disponibilidade jurídica da renda em razão do poder decisório da empresa sediada no país relativamente àquela localizada no exterior; e a existência de disponibilidade jurídica da renda em decorrência do reflexo patrimonial, medido pelo método da equivalência patrimonial, dos lucros auferidos pela empresa no exterior na contabilidade da empresa sediada no país. Esses dois pontos compõem as partes deste artigo, a serem enfrentados, nesta ordem, de modo claro e direto.

1. Disponibilidade jurídica e poder decisório

1.1 Conceito de disponibilidade jurídica

O fato de a empresa sediada no país ter o poder de decidir a respeito do destino a ser dados aos lucros auferidos por empresa controlada localizada no exterior não faz com que ela tenha disponibilidade sobre eles. A essa conclusão se chega por meio da análise de alguns elementos que devem ser destacados.

Dentro do âmbito de competência previsto no artigo 153 da Constituição, o Código Tributário Nacional previu, no seu artigo 43, que o fato gerador do imposto sobre a renda é a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica da renda, entendida como o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, ou de proventos de qualquer natureza.

Em outras e singelas palavras, o fato gerador do imposto sobre a renda ocorre quando há disponibilidade econômica ou jurídica sobre ela. Que não há disponibilidade econômica da empresa controladora relativamente aos lucros auferidos por empresa controlada no exterior, não há dúvida: a empresa sediada no país não tem acesso atual e direto ao lucro enquanto ele não for efetivamente distribuído a ela. A dúvida, em vez disso, reside na suposta existência de disponibilidade jurídica nesse caso.

A aceitação da disponibilidade jurídica da renda baseia-se no poder decisório da empresa controladora localizada no país relativamente aos lucros auferidos pela empresa controlada sediada no exterior, no sentido de que a primeira, como se situa numa posição de controle relativamente à segunda, tem o poder de decidir sobre o destino a ser dado aos lucros obtidos por esta e, por isso, teria a disponibilidade jurídica sobre eles. O raciocínio, embora interessante, não prova a existência de disponibilidade jurídica sobre os lucros.

Com efeito, disponibilidade jurídica não significa mero poder de controle, mas exercício de poder de controle que provoque a aquisição de disponibilidade sobre a renda, mesmo que não haja acesso atual e direto a ela. Os dois exemplos seguintes podem esclarecer o argumento:

Imagine-se que uma pessoa física seja proprietária de um imóvel que, embora tenha sido informado na sua declaração de bens pelo valor de R$ 100, tenha agora o valor de mercado de R$ 300. Como proprietária do bem, a ela cabe integralmente o poder de decidir sobre a sua venda, fato que provocaria a incidência do imposto sobre a renda na modalidade de ganho de capital sobre a diferença de R$ 200. A mera circunstância de a proprietária poder decidir sobre a venda do imóvel não autoriza a exigência do imposto sobre a renda na modalidade de ganho de capital, pela singela e boa razão de que não basta a existência do poder de decidir vender; é indispensável o exercício do poder pela tomada da decisão de vender, ainda que o valor da venda não venha a ser imediatamente recebido. Aceitar o contrário implica tributar ganho não obtido pela venda de um bem, mas a mera possibilidade de ganho por eventual venda de um bem. É tributar a renda potencial, em vez da renda auferida; renda fictícia, no lugar de renda real.

Conceba-se agora a hipótese de uma pessoa física que seja proprietária de um imóvel. Como sua proprietária, cabe-lhe exclusivamente o poder de decidir sobre o que fazer com ele. Imagine-se que, embora pudesse alugá-lo ou vendê-lo, ela decide cedê-lo a terceiro em comodato. Se ela, em vez de ter decidido cedê-lo em comodato, tivesse decidido vendê-lo ou alugá-lo, teria que pagar o imposto sobre a renda. Pois bem, a mera circunstância de a proprietária poder decidir sobre venda ou o aluguel do imóvel não autoriza a exigência do imposto sobre a renda decorrente do ganho de capital ou do aluguel, pela simples razão de que não basta a existência do poder de decidir vender ou alugar; é necessário o exercício do poder pela decisão de vender ou de alugar. Admitir o oposto importa tributar ganho não obtido, sob o argumento de que a decisão sobre sua obtenção dependia apenas da proprietária. É, da mesma forma, tributar a renda potencial, em vez da renda auferida; renda fictícia, no lugar de renda real.

Embora esses exemplos tenham as suas particularidades, o raciocínio que lhes é subjacente, no que toca ao assunto aqui tratado, se aplica às pessoas jurídicas no seu relacionamento com outras. De fato, a simples contingência de a empresa sediada no país poder decidir sobre o destino dos lucros obtidos por outra empresa no exterior não autoriza presumir que ela vá efetivamente decidir sobre a sua distribuição e que, com a tomada desta decisão, venha a adquirir a disponibilidade sobre eles. Insista-se no óbvio: para que ocorra o fato gerador do imposto sobre a renda, é preciso que tenha surgido o direito incondicional a ela, e não o simples poder abstrato de decidir sobre ter ou não esse direito. Aqui o nó da questão: disponibilidade jurídica sobre a renda não é o poder de decidir adquirir o direito à renda; é ter o direito à renda por ter exercido o poder de decidir, mesmo sem ter disponibilidade econômica pelo acesso atual e direto a ela.

É necessário realçar o fundamental: o fato gerador do imposto sobre a renda é a aquisição de disponibilidade jurídica sobre a renda. Assim, ele não surge enquanto o contribuinte não adquirir a disponibilidade, isto é, enquanto ele não tiver o direito de dispor da renda, sem a realização de qualquer condição. O fato de essa condição depender do poder de decisão do próprio contribuinte não altera o argumento, pois antes que essa decisão seja tomada ele ainda não adquire o direito incondicional à renda.

A confusão está clara: a disponibilidade jurídica deve ser sobre a própria renda, e não simplesmente sobre a decisão que pode ou não ser tomada com relação ao seu destino. Dispor da renda não é o mesmo que dispor de um poder que, se e quando exercido, possa criar condições para se venha a dispor da renda. Não se pode simplesmente saltar da disposição sobre um poder para a disposição sobre a renda, como se fossem uma só realidade. Esse pulo decorre da mistura entre quatro situações jurídicas que precisam ser discernidas, a saber:

1º – Poder de gerar um direito: a empresa controladora possui o direito potestativo de decidir sobre o destino dos lucros auferidos pela empresa controlada, isto é, o poder de decidir o que a empresa controlada vai fazer com os lucros (direito potestativo);

2º – Direito à renda: se o direito potestativo tiver sido exercido pela empresa controladora por meio da decisão de distribuição dos lucros, surge, como conseqüência, um direito de crédito da empresa controladora contra a empresa controlada relativamente aos lucros por esta auferidos (direito de crédito);

3º – Poder para ter acesso à renda: se a empresa controladora tiver o direito de crédito contra a empresa controlada, ela pode determinar que lhe seja transferida a renda (exercício do direito de crédito);


4º – Acesso atual e direto à renda: se a empresa controladora exercer o seu direito de crédito determinando que a renda lhe seja transferida, terá acesso imediato a ela (acesso ao objeto do direito de crédito).

A distinção entre esses níveis demonstra que a disponibilidade jurídica, como exercício do direito à renda, não surge com a mera existência de um direito potestativo do contribuinte. Ela só pode surgir quando o contribuinte tem o poder de adquirir o acesso atual e efetivo, isto é, quando ele exerce o seu direito de crédito, mesmo que ainda não tenha acesso atual e direto ao seu objeto.

Em outras palavras, o direito potestativo não provoca o surgimento do direito à renda. Esse segundo direito só surge quando primeiro for exercido de modo a causar o surgimento de um direito de crédito que, uma vez exercido, coloca o contribuinte na posição de ter acesso atual e direto à renda (disponibilidade jurídica), que pode surgir com o efetivo acesso atual e direto à renda (disponibilidade econômica). Afirmar que a empresa controladora tem disponibilidade jurídica apenas porque tem o poder de decidir o que fazer com os lucros é confundir o direito potestativo com a conseqüência que o seu exercício pode eventualmente provocar, qual seja, o surgimento de um direito de crédito que, uma vez exercido, coloca o seu titular na condição de ter acesso ao seu objeto. Noutro dizer, é confundir poder de decidir com o direito decorrente do seu exercício. É baralhar causa com eventual efeito.

As considerações anteriores não assimilam o conceito de disponibilidade jurídica ao de disponibilidade econômica. Essa significa o acesso atual e direto à renda, o que pressupõe, no caso ora analisado, as efetivas distribuição e remessa dos lucros auferidos da empresa controlada localizada no exterior para a empresa controladora sediada no país. Aquela, a disponibilidade jurídica, significa a aquisição da disponibilidade sobre a renda por meio do exercício do direito incondicional a ela, mesmo sem acesso atual e direto. Pela precisão, convém repetir as palavras de Bulhões Pereira:

“A expressão ‘disponibilidade jurídica’ surgiu, portanto, na nossa legislação do imposto, para designar essa modalidade de ‘percepção’ do rendimento construída pela jurisprudência administrativa, que não se caracterizava pela posse efetiva e atual do rendimento, em moeda ou equivalente, mas pelo ato da fonte pagadora do rendimento que o colocava à disposição do beneficiário: se este tinha o poder de adquirir a posse do rendimento, havia disponibilidade jurídica”.[3]

As ponderações anteriores querem dizer que disponibilidade jurídica sobre a renda é o poder de disposição decorrente do exercício do direito de crédito sobre a renda e não uma potestade que, se e quando exercida, pode levar ao surgimento desse direito.

1.2 Inexistência de disponibilidade jurídica por poder decisório

Desse modo, no caso ora analisado, somente o exercício do poder de decidir sobre o destino dos lucros pela empresa controlada — com participação de quem a controla, pouco importa — faz surgir o direito incondicional à renda para a empresa controladora. O exercício desse poder é que cria o poder de dispor dos lucros, ainda que eles não tenham sido atual e diretamente recebidos.

O essencial, por conseguinte, é que não surge disponibilidade jurídica pela mera obtenção dos lucros pela empresa sediada no exterior, pela singela razão de que a empresa controladora ainda não exerceu o poder de decisão sobre o seu destino e, por isso, ainda não adquiriu o direito nem o exerceu de modo a criar o poder de disposição sobre os lucros. Disponibilidade jurídica sobre a renda sem poder de disposição sobre a renda é uma contradição em termos, como um fogo que não queima.

2. Disponibilidade jurídica e equivalência patrimonial

2.1 Impossibilidade de exame da disponibilidade jurídica por equivalência patrimonial

Existe uma questão preliminar que precisa ser analisada antes mesmo de se examinar se a disponibilidade jurídica surge em razão do reflexo patrimonial causado pelo uso da técnica da equivalência patrimonial. Essa questão diz respeito ao próprio objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta perante o Supremo Tribunal Federal.

O então ministro Nelson Jobim votou pela constitucionalidade do artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01, por entender que o lucro auferido no exterior, por uma coligada ou controlada, em virtude do método da equivalência patrimonial, é automaticamente registrado no balanço societário da investidora como lucro líquido, independentemente da sua distribuição. Em razão disso, a disponibilidade dos lucros apurados pelas sociedades investidas pela empresa sediada no país ocorreria com a sua suposta incorporação, pelo método da equivalência patrimonial. Em outras palavras, o ministro Jobim entendeu que, como a legislação determinaria a incorporação dos lucros pelo método da equivalência patrimonial, a sua utilização já faria surgir a disponibilidade jurídica da empresa investidora relativamente aos lucros das empresas investidas.

Ocorre que a legislação tributária determina a exclusão do lucro auferido no exterior, por uma coligada ou controlada da base de cálculo do imposto sobre a renda. Ela determina que os resultados da avaliação dos investimentos no exterior pelo método da equivalência patrimonial continuarão a ter o tratamento previsto na subseção específica, que é o de não serem computados na determinação do lucro real (Decreto-Lei 1.598, de 1977, art. 23, e Decreto-Lei 1.648, de 1978, art. 1º, inciso IV). Em outras palavras, a legislação não apenas não determina, como ainda expressamente afasta a tributação dos lucros pelo método da equivalência patrimonial.

Isso significa que o artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01, quando tratou dos lucros auferidos por empresa controlada ou coligada no exterior, não dispôs sobre a equivalência patrimonial. E tanto assim não procedeu que foi necessária a edição de uma norma regulamentar, a Instrução Normativa SRF 213/02, para criar a hipótese de disponibilização no caso de contrapartida do valor do investimento por equivalência patrimonial que a lei não havia criado (Decreto-Lei 1.598/77, Lei 9.249/95, Lei 9.532/97, Lei 9.959/00 ou Medida Provisória 2.158-35/01).

E precisamente porque a referida Instrução Normativa criou uma hipótese não prevista em lei, e também não prevista no próprio artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01, que o Superior Tribunal de Justiça declarou a ilegalidade da exigência do imposto sobre a renda no caso de contrapartida do valor do investimento por equivalência patrimonial.[4]

A decisão acima referida é clara: nenhum dispositivo legal, nem mesmo o artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01, prevê a hipótese de tributação da renda pelo método da equivalência patrimonial. Essa constatação, todavia, evidencia que houve uma alteração no objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.588, quanto à suposta disponibilidade jurídica por meio do método da equivalência patrimonial.

Com efeito, os votos dos julgadores que acataram o uso da equivalência patrimonial partem do pressuposto de que o artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01 prevê ou mesmo permite que ela seja utilizada para aferir acréscimo patrimonial tributável. Esse dispositivo, contudo e à toda evidência, não prevê essa alternativa, tanto que foi necessária a edição de uma Instrução Normativa para prevê-la, que foi, por isso mesmo, declarada ilegal, por prever o que a lei não prevê.

Ora bem, se o artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01 não prescreve nem permite o uso do método da equivalência patrimonial para aferir acréscimo patrimonial tributável, não pode esse dispositivo ser declarado constitucional com base no uso desse método. O dispositivo, objeto do controle de constitucionalidade, não pode ser declarado constitucional com base em método que nem ele nem a legislação vigente preveem. Foi isso, entretanto, o que ocorreu: o pressuposto equivocado da decisão virou seu próprio fundamento. Além de a argumentação ser circular e, por isso, irracional, ela também contrasta com o previsto no inciso I do artigo 102 da Constituição, de acordo com o qual compete ao STF o controle da constitucionalidade de lei, obviamente como posta, não de modo diverso.


Tal procedimento, de analisar a constitucionalidade de um dispositivo pressupondo o que ele não prevê, obviamente transborda do objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. O objeto deste controle é a legislação infraconstitucional exatamente como foi posta pelo Poder Legislativo e precisamente como foi questionada perante o STF. Nunca de outro modo, nem com outro conteúdo. Entender de modo diferente significa alterar o objeto do controle de constitucionalidade e, no lugar de examinar a constitucionalidade de um dispositivo legal existente e vigente, analisar a constitucionalidade de um dispositivo simplesmente inexistente.

Não há, entretanto, como aceitar a convivência de duas decisões como estas: uma decisão do STF, que entende que o artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01 prevê a tributação pelo método da equivalência patrimonial e, por isso, declara-o constitucional; e outra decisão do STJ que entende que o mesmo dispositivo não prevê a tributação pelo método da equivalência patrimonial e, por essa razão, declara a inconstitucionalidade da Instrução Normativa SRF 213/01 que criou essa previsão. Essa manifesta incoerência apenas comprova que os votos pela constitucionalidade do artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01 partiram de um pressuposto equivocado e, em virtude disso, ultrapassaram o próprio objeto do controle de constitucionalidade.

2.2 Inexistência de disponibilidade jurídica por equivalência patrimonial

O fato de a empresa sediada no país ter o seu investimento em empresa localizada no exterior medido pela técnica da equivalência patrimonial não faz com que ela tenha disponibilidade, quer econômica, quer jurídica, sobre os lucros obtidos por esta empresa. A esse desfecho se chega por meio do exame de alguns elementos que, à semelhança dos anteriores, não mereceram a adequada atenção.

A Constituição Federal, por meio do disposto no seu artigo 153, atribui competência à União para instituir o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Esses termos são conceituados pelo já referido artigo 43 do Código Tributário Nacional, de acordo com o qual o fato gerador do imposto sobre a renda é a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica da renda, entendida como o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, ou de proventos de qualquer natureza, na qualidade de acréscimos patrimoniais não compreendidos na hipótese anterior.

A mera leitura desses dispositivos deixa claro que o fato gerador do imposto sobre a renda é o auferimento da renda, que causa aumento patrimonial, e não simplesmente o acréscimo patrimonial. O imposto sobre a renda, assim como a contribuição sobre o lucro, não é um tributo sobre o patrimônio. Os tributos sobre o patrimônio são outros, tais como o imposto sobre a propriedade territorial rural, a propriedade territorial urbana, a transmissão de bens imóveis ou a propriedade de veículos automotores. O imposto sobre a renda não grava o patrimônio em sentido estático, mas o patrimônio em sentido dinâmico, o que explica por que a Constituição e o Código Tributário Nacional usam os termos “produto”, do capital e do trabalho, e “proventos”, de qualquer natureza.

Em outras palavras, o mencionado imposto incide sobre a renda, mas não qualquer renda, apenas aquela que provoque aumento patrimonial. Reversamente, ele não incide sobre qualquer aumento patrimonial, independente de ter havido renda. Admitir o contrário é transformar o imposto sobre a renda num imposto sobre o patrimônio.

Não é por outro motivo que a legislação do imposto sobre a renda, como já mencionado, estabelece que os resultados da avaliação dos investimentos no exterior pelo método da equivalência patrimonial não serão computados na determinação do lucro real.

Nem poderia ser diferente: somente quando pagos ou creditados os lucros é que a empresa controladora tem o poder de ter acesso à renda ou acesso atual e direto sobre ela, por ter exercido o seu direito de crédito, decorrente da decisão de distribuição dos lucros. Antes disso e como longamente demonstrado, não surge poder para ter acesso à renda (disponibilidade jurídica) nem acesso atual e direto a ela (disponibilidade econômica). Insista-se o quanto necessário: disponibilidade, seja econômica, seja jurídica, só existe quando a renda está — o pleonasmo é enfático — disponível para o contribuinte ou à sua disposição. Disponibilidade sem poder de dispor ou livremente fazer uso, com o perdão pela trivialidade, pode ser tudo, menos disponibilidade.

Exatamente por isso que o mero auferimento dos lucros pela empresa coligada ou controlada no exterior não provoca disponibilidade, como pretendeu fazer o artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01, ao considerar disponíveis os lucros quando auferidos. Como se disse antes e agora se repete, quando os lucros são auferidos no exterior, a empresa controladora sediada no país tem apenas o direito potestativo de decidir sobre o destino dos lucros auferidos pela empresa controlada, nunca o direito de crédito frente à empresa controlada relativamente aos lucros por esta auferidos. A consideração do método de equivalência patrimonial e do regime de competência não altera essa conclusão.

O método de equivalência patrimonial é apenas um instrumento para aferir, sob a perspectiva contábil estática, a situação patrimonial do contribuinte. Ele não serve para demonstrar a existência de renda, mas, tão-só, a existência de um reflexo dos resultados da empresa investida nas demonstrações financeiras da empresa investidora. Tanto é assim, que mesmo que se considerasse existente a renda, certamente não se poderia considerar existente a disponibilidade sobre ela. O fato de um resultado auferido no exterior por uma empresa investida causar reflexos patrimoniais na empresa investidora não quer dizer que esta tenha disponibilidade sobre esses reflexos, isto é, que tenha conquistado o livre acesso a eles. Tanto a empresa coligada quanto a controladora, ainda que possam ter efeitos patrimoniais decorrentes dos lucros auferidos no exterior pela empresa coligada ou controlada, não têm poder para ter acesso a esses efeitos (disponibilidade jurídica), nem acesso atual e direto a eles (disponibilidade econômica).

A esse respeito, convém destacar que o imposto sobre a renda é, em primeiro lugar, uma espécie de tributo que, como tal, é obrigação pecuniária compulsória, em moeda ou em cujo valor nela se possa exprimir. Por trás dessa constatação trivial está a ligação entre a exigência de disponibilidade da renda com o caráter pecuniário do tributo: a disponibilidade garante condições para que o contribuinte possa pagar uma dívida pecuniária. O contribuinte só adquire capacidade contributiva quando puder contribuir, o que só ocorre quando ele pode dispor sobre a renda que auferiu, seja pelo poder de ter acesso a ela, seja pelo próprio acesso atual e direto a ela. Com razão Schön, ao afirmar que:

“O contribuinte deve (…) dispor de ‘bens em dinheiro ou com valor monetário’, para poder pagar as suas dívidas tributárias. A capacidade contributiva, que está, de acordo com a visão do Tribunal Constitucional e da doutrina largamente majoritária, no centro conceptual da nossa ordem constitucional, é, por conseguinte, num sentido muito originário, ‘capacidade de pagamento’. (…). Uma capacidade contributiva que não se deixa transformar em capacidade de pagamento, de acordo com o Direito Privado, não é, assim, aproveitável na perspectiva dos fins práticos da tributação”.[5]

Em segundo lugar, o imposto sobre a renda é um imposto pessoal que, como tal, deve ser configurado de acordo com o princípio da capacidade contributiva, tanto no seu sentido objetivo, de só permitir a tributação de manifestações concretas de capacidade econômica, quanto no seu sentido subjetivo, de exigir que o imposto aumente quando aumentar a capacidade econômica do sujeito passivo.[6] Essa vinculação à capacidade contributiva afasta a possibilidade de o imposto sobre a renda ser exigido mesmo quando ainda não tenha havido uma exteriorização concreta de capacidade econômica. As palavras de Schön são novamente elucidativas:


“Resulta disso a seguinte reflexão: capacidade de pagamento e capacidade contributiva do contribuinte referem-se ao seu poder de disposição sobre ‘bens em dinheiro ou com valor monetário’.”[7]

Ora, o fato de a empresa sediada no país sofrer reflexos patrimoniais nominais, registrados nas suas demonstrações financeiras, em razão do auferimento de lucros pela empresa investida localizada no exterior, não quer dizer nem que ela possa dispor dos efeitos positivos desses reflexos, nem que ela tenha tido qualquer incremento na sua capacidade de contribuir mediante cumprimento de obrigações pecuniárias. O método de equivalência patrimonial apenas reflete uma alteração patrimonial, sem que o contribuinte possa dispor dessa alteração ou que ela já esteja à sua disposição. Em outras palavras, a contrapartida do valor do investimento por equivalência patrimonial não gera nem disponibilidade jurídica nem disponibilidade econômica da renda. Ela apenas indica uma alteração estática do patrimônio. Nada mais.

A consideração do regime de competência também não modifica essa conclusão. Esse regime permite tributação de ganhos definitivamente obtidos, mesmo que ainda não tenham sido recebidos. A renda pode ser tributada, mesmo que ainda não tenha sido efetivamente percebida, mas desde que já tenha sido auferida. A expressão “competência” decorre do fato de esse regime ter a finalidade de registrar na contabilidade as receitas, os custos e as despesas no período a que competem, independentemente do seu recebimento (receitas) ou do seu pagamento (custos e despesas) em moeda.

Isso significa que, mesmo no regime de competência, só há o registro contábil de uma renda quando o contribuinte tenha adquirido o direito incondicional a ela, isto é, quando ele for sujeito ativo de um direito de crédito que a tenha por objeto, mesmo que ainda não tenha recebido o seu pagamento, ou sujeito passivo de uma dívida, ainda que não tenha efetuado o seu pagamento. Em outras palavras, também nesse regime — e não poderia ser diferente, sob pena de criação artificial de disponibilidade — só surge o fato gerador do imposto sobre a renda quando o contribuinte tiver direito incondicional a receber o pagamento, ainda que não o tenha recebido.

A esse respeito, convém recordar tanto o provérbio francês, que diz que não se pode vender a pele do urso antes de o haver matado (“vendre la peau de l’ours avant de l’avoir tué”), quanto o inglês, que afirma não se poder contar com as galinhas antes delas terem nascido ("to count one’s chickens before they’re hatched"). O que essa sabedoria popular quer dizer, para o caso em pauta, é que o fisco não pode se apoderar nem de uma parcela do preço de venda de um urso que não apenas ainda não foi vendido como sequer foi morto, nem de uma parte do valor da galinha que não nasceu. Assim, o fato de as empresas coligadas ou controladas sediadas no exterior auferirem lucros não quer dizer que as empresas coligadas ou controladas sediadas no país tenham disponibilidade jurídica ou econômica sobre esses lucros, mesmo considerando o método da equivalência patrimonial. Isso porque o mero fato de a empresa controlada ou coligada no exterior ter auferido lucro, medido por equivalência patrimonial, não faz com que a empresa controladora ou coligada no país tenha direito incondicional de crédito desses lucros, já que o seu destino depende da implementação de requisitos estatutários ou legais que, enquanto não preenchidos, não fazem com que surja esse direito.

Aceitar que a empresa controladora ou coligada no país seja obrigada a pagar imposto sobre os lucros auferidos por empresa controlada ou coligada no exterior é — querendo ou não, pouco importa — admitir a tributação do patrimônio tanto das controladoras quanto das coligadas, em nome da tributação da sua renda.

No caso da empresa controladora, enquanto ela não exercer o seu direito potestativo de deliberar sobre a distribuição dos lucros, não terá direito incondicional de crédito que os tenha por objeto, de modo que não terá como contribuir com uma parcela de um ganho de que não dispõe. Desse modo, tributar os lucros auferidos no exterior que ainda não foram objeto do exercício do direito potestativo gerador de um direito de crédito sobre eles conduz a uma de duas consequências: ou tributa o patrimônio da empresa sediada no país, na medida em que ela é obrigada a pagar tributo sobre renda de que não dispõe nem jurídica nem economicamente; ou força a empresa sediada no país, para evitar a tributação do seu patrimônio, a internalizar os lucros auferidos pela empresa localizada no exterior.

No caso da empresa coligada, como ela sequer possui o direito potestativo de deliberar sobre a distribuição dos lucros por empresa coligada sediada no exterior, de nenhum modo terá como contribuir com uma parcela de um ganho de que não dispõe. Assim, tributar os lucros auferidos no exterior por empresa coligada de empresa sediada no país implica tributar o seu patrimônio, na medida em que ela é obrigada a pagar tributo sobre renda de que não dispõe nem jurídica nem economicamente.

Não há, porém, autorização constitucional, quer para a tributação do patrimônio, quer para a obrigatoriedade velada de internalizar os lucros. Não há autorização para tributar o patrimônio porque o imposto sobre a renda e a contribuição sobre o lucro são tributos que gravam a obtenção dos lucros e, não, a mera propriedade. E não há poder para obrigar a internalizar os lucros, porque tal mandamento é desproporcional e excessivo.[8] Desproporcional, porque o combate à evasão fiscal internacional pode ser atingido por meios menos gravosos, de que dão conta a legislação internacional, com suas listas de paraísos fiscais e acordos de transferência de informações. E excessivo, porque atinge direito fundamental ao livre exercício de atividade econômica, cujo núcleo garante a livre decisão com relação a se, com quem e sobre o que os atos ou negócio jurídicos serão praticados.[9] O Estado, seja na instituição da lei, seja na sua aplicação, não pode obrigar o contribuinte a dar determinado destino aos seus lucros, para efeitos tributários. O Estado não apenas tem o dever de não restringir essa liberdade, como também possui o dever de protegê-la.[10]

As considerações anteriores atestam que o fato de a empresa sediada no país ter o seu investimento em empresa localizada no exterior medido pela técnica da equivalência patrimonial e ter suas receitas contabilizadas pelo regime de competência não fazem com que ela tenha disponibilidade, quer econômica, quer jurídica, sobre os lucros obtidos por esta empresa.

Conclusões

Todos os argumentos antes expendidos demonstram, de um lado, que não surge disponibilidade jurídica da renda em razão do mero poder decisório da empresa sediada no país relativamente àquela localizada no exterior. Ela só aparece quando o contribuinte detiver o poder para ter acesso à renda, isto é, quando ele puder exercer o seu direito de crédito. O só fato de a empresa controladora possuir o direito potestativo de decidir sobre o destino dos lucros auferidos pela empresa controlada não faz com que ela tenha o poder de dispor da renda. Entendimento contrário, no sentido de que o mero poder de decisão garante a disponibilidade, baralha o direito potestativo tanto com o resultado do seu exercício, que é a geração de um direito de crédito, quanto com a conseqüência do exercício deste último direito, que é o surgimento de um poder de disposição.

De outro, os argumentos comprovam que não há disponibilidade jurídica da renda em decorrência do mero reflexo patrimonial, medido pelo método da equivalência patrimonial, dos lucros auferidos pela empresa no exterior na contabilidade da empresa sediada no país. Esse método apenas reflete alterações patrimoniais, sem garantir que o contribuinte possa ter disponibilidade, quer econômica, quer jurídica, sobre elas, capaz de permitir o pagamento de uma dívida em dinheiro.

Esses dois temas, aqui tratados nos seus aspectos fundamentais, compõem o núcleo da discussão sobre a tributação internacional dos lucros. Sem o seu enfrentamento ou com a sua tergiversação, não há como examinar adequadamente a constitucionalidade da tributação, pelo imposto sobre a renda e pela contribuição sobre o lucro, das empresas coligadas ou controladoras localizadas no país pelos lucros auferidos por empresas sediadas coligadas ou controladas no exterior.


[1] Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.588, Tribunal Pleno, relatora: Ministra Ellen Gracie, pendente de conclusão pelo voto do ministro Joaquim Barbosa.

[2] ÁVILA, Humberto. O imposto de renda, a contribuição social sobre o lucro e os lucros auferidos no exterior. In: Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. Valdir de Oliveira Rocha. (Org.). 1 ed. São Paulo, 2003, v. 7, p. 215-240.

[3] BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. Imposto sobre a renda. Rio de Janeiro: Justec, 1979. p. 198.

[4] Recurso Especial 1.211.882/RJ, Segunda Turma, ministro relator Mauro Campbell Marques, DJ 05/04/2011.

[5] SCHÖN, Wolfgang. Die zivilrechtlichen Voraussetzungen steuerrechtlicher Leistungsfähiheit. In: Steuer und Wirtschaft, v. 3, 2005, p. 249.

[6] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 343 e ss.

[7] SCHÖN, Wolfgang. Die zivilrechtlichen Voraussetzungen steuerrechtlicher Leistungsfähiheit. In: Steuer und Wirtschaft, v. 3, 2005, p. 251.

[8] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 157 e 173.

[9] LARENZ, Karl. WOLF, Manfred. Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts. 8. ed. München: Beck, 1997. p. 647. BADURA, Peter. Grundrechte und Wirtschaftsordnung. In: Handbuch der Grundrechte, MERTEN, Detlef/PAPIER, Hans-Jürgen (orgs.), Heidelberg: C.F. Müller, 2006. § 29, item de margem 15, p. 230.

[10] DIETLEIN, Johannes. Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten. 2. ed. Berlin: Duncker und Humblot, 2005. p. 81.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo; doutor em Direito Tributário pela Universidade de Munique; advogado e parecerista.

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