Ideias do Milênio

"Devemos evitar dar lição de moral aos chineses"

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3 de fevereiro de 2012, 11h53

Entrevista concedida pelo ex-secretário de estado dos Estados Unidos, diplomata, escritor e consultor de Relações Intrnacionais Henry Kissinger ao jornalista Lucas Mendes, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

globo.com
O século 20 com duas guerras mundiais, as mortandades de Hitler, Stalin e Mao foi, proporcionalmente ao número de mortos, o menos violento de toda a história. Os números estão no livro The Better Angels of our Nature do professor e cientista de Harvard Steven Pinker. Os últimos 70 anos foram ainda mais pacíficos sem uma grande guerra. O mundo caminha para um novo recorde de paz. Henry Kissinger entrou na Casa Branca em 69 e nos oito anos seguintes, como assessor de segurança nacional e secretário de Estado, normalizou as relações com a China e ganhou o prêmio Nobel pelo acordo de paz que terminou a guerra do Vietnã. Mesmo os críticos reconhecem que Kissinger foi o maior diplomata do século 20, um de seus maiores estadistas. Para os inimigos ele foi o responsável pelos bombardeios de Hanói e do Camboja, pela morte de Salvador Allende e milhares de esquerdistas na América Latina. A história julgará. Mas ninguém teve mais influência na arquitetura geopolítica de hoje do que Henry Kissinger. Aos 88 anos ele está lúcido, próspero e produtivo. Publica longos ensaios e seu recente livro Sobre a China é um best-seller. Kissinger Associates Inc., um escritório na Avenida Park, atrai empresas de todo o mundo, suas palestras custam caro, líderes ouvem seus conselhos. Fora do trabalho desde a infância, sua paixão maior ainda é o futebol. A Copa do Mundo no Brasil está nos planos dele, mas tem dúvidas sobre o futebol brasileiro que achava o melhor do mundo até a ascensão espanhola.

Lucas Mendes — Vamos chegar à China através da Coreia do Norte: com um novo e jovem ditador nuclear, o país ficará mais perigoso? Ele poderá ser contido pela China ou por que país?
Henry Kissinger —
Bem, o problema inerente à Coreia do Norte é que o Estado é administrado como uma empresa familiar. E trata-se, provavelmente, do Estado mais totalitário. Com certeza, é o Estado parcialmente industrializado mais totalitário do mundo. Além disso, ele tem importância estratégica futura para a China, e a Coreia do Sul acredita que representa o futuro das duas Coreias. O perigo é haver uma reviravolta doméstica na Coreia do Norte. Se cada parte interessada agir segundo suas próprias convicções, sem coordenação prévia com as outras partes, então a questão pode ficar complicada, como aconteceu 60 anos atrás.

Lucas Mendes — Quando o senhor se reuniu com Chu En-Lai e Mao, em 1971, a China tinha uma população de 800 milhões de pessoas, na maioria, pobres.
Henry Kissinger —
Exato.

Lucas Mendes — Hoje, eles são 1,3 bilhão, ainda com muitos pobres, mas em breve serão o país mais rico do mundo. Não sei quando.
Henry Kissinger —
Depende de como se calcula. Se levar em conta o número total, sim. Se calcular per capita, ela é a quinta economia.

Lucas Mendes — Mas, quando se reuniu com eles, o senhor ou eles imaginavam que a China seria um país tão poderoso e próspero em 30 anos?
Henry Kissinger —
Não sei quanto a eles, mas eu não imaginava, pois a China era um país atrasado. E eles não se mostravam muito interessados no comércio internacional. Eu estive na China pela primeira vez em 1971. Até 1976, nosso comércio com a China era menor do que nosso comércio com Honduras. Eram alguns poucos milhões de dólares. Eles só explodiram na década de 1980. É um fenômeno recente. Quanto a Mao, eu não creio que imaginasse o que a China é hoje, uma grande potência industrial. A principal preocupação dele era a renovação da cultura chinesa ou da sociedade chinesa.

Lucas Mendes — O senhor disse que a China não tinha interesse em se tornar uma superpotência.
Henry Kissinger —
Isso era o que ele dizia, mas também precisamos levar em conta que um país que quer se tornar uma superpotência e tem medo de outras duas superpotências irá sempre dizer às superpotências que não pretende ser uma.

Lucas Mendes — Em seu livro o senhor afirma que os EUA e a China têm muito mais a ganhar com a cooperação, uma coevolução, do que com um confronto. Os dois países são grandes e poderosos demais para sofrer uma ocupação. Mas os EUA têm motivos para temer a China ou vice-versa?
Henry Kissinger —
Veja, eu passei a maior parte da minha vida escrevendo livros sobre relações internacionais falando de balança de poder. Então, no curso normal dos acontecimentos, quando se tem um poder emergente e um poder estabelecido, o poder emergente, inevitavelmente, incomoda o poder estabelecido, e isso frequentemente leva à tensão. Há alguma razão objetiva para a China e os EUA terem medo um do outro? Não há uma maneira racional de um país derrotar o outro e ocupá-lo ou reduzi-lo à impotência. Portanto, o perigo é os dois países entrarem em confronto não por causa de ameaças diretas, mas por causa de uma série de situações, como o Mar do Sul da China, a Coreia ou outra região. Seus interesses podem colidir, e eles podem não resolver os problemas de maneira correta. Mas eu não creio que isso vá acontecer.

Lucas Mendes — A China optou pela adoção do capitalismo por causa da prosperidade do mundo ocidental. Depois de verem o que aconteceu em 2008 e a recessão — talvez estejamos prestes a entrar em nova recessão —, qual é a impressão deles quanto a isso?
Henry Kissinger —
Bem, eu acho que as dificuldades de 2008 tiveram um impacto profundo na China, porque, até então, minha impressão é a de que os chineses acreditavam que tinham muito a aprender com o Ocidente em termos de economia. Em 2008, eles descobriram que muitas de nossas teorias não evitaram um colapso econômico no Ocidente e que eles lidaram com a crise deles de maneira mais eficiente do que nós, pelo menos em 2008. Isso mudou a atitude da China para com os EUA e, durante cerca de um ano, afetou até mesmo a política externa deles.

Lucas Mendes — O senhor disse que, quando esteve na China pela primeira vez, não sabia muito sobre o país.
Henry Kissinger —
Exato.

Lucas Mendes — Desde então, o senhor voltou ao menos 70 vezes. Estou correto?
Henry Kissinger —
Está, 70 vezes.

Lucas Mendes — E o senhor disse que a maioria das pessoas não se dá conta de que a China nos últimos 20 séculos foi o país mais rico do mundo, com exceção dos últimos 150 anos.
Henry Kissinger —
Correto.

Lucas Mendes — Isso é importante? Devemos ter isso em mente ao lidar com os chineses?
Henry Kissinger —
Bem, devemos evitar dar lição de moral aos chineses. Por exemplo, quando um americano chega e diz que a China deve amadurecer e se conscientizar de que agora é um país desenvolvido, os chineses se sentem muito insultados com isso, porque eles acham que têm uma grande História antes mesmo que nós existíssemos. Quando dizem que eles devem aprender a seguir as regras… Sim, eles devem seguir as regras, mas eles acreditam que devem participar da elaboração das regras. Portanto, nós precisamos ter em mente que a percepção que os chineses têm de si mesmos é a de que, durante a maior parte da História, eles foram o país que liderou cultural e politicamente sua região.

Lucas Mendes — Certo.
Henry Kissinger —
Então eles passaram por 100 anos de humilhações, mas agora estão de volta. Por isso, quando se fala de “direitos” da China, essa palavra não é exatamente correta. Porque os chineses acreditam estar reivindicando o que já era deles. Mas isso é uma questão de atitude.

Lucas Mendes — Certo. Alguns de seus críticos dizem que o senhor não liga para os direitos humanos, que o senhor só se interessa por cálculos de poder e como usá-los. E a presidência americana é sempre pressionada a criticar a China, especialmente quando algum dissidente famoso é preso. Qual é a melhor maneira de tratar isso?
Henry Kissinger —
Veja bem, com relação à questão… Nós estamos interessados em democracia e direitos humanos… As pessoas gostam de simplificar as coisas dizendo: de um lado, há os idealistas, e eles são muito nobres; mas, do outro lado, há as pessoas no poder, que pensam em como podem usar canhões e bombas. Mas o mundo real não é assim. Para atuar no mundo real, você precisa ter valores. Porque as decisões difíceis para um país sempre têm alternativas muito próximas: 51%, 49%. Assim, se você não tem convicções morais, não pode atuar. Mas, ao mesmo tempo, se não há uma balança de poder, o forte pode dominar como bem entender. Por isso, eu acredito que precisamos dessa balança e de senso de justiça. É preciso ter os dois lado a lado, do contrário, o sistema internacional não irá funcionar. Agora, falando por mim, do meu ponto de vista, eu passei a infância como membro de uma minoria discriminada em um país supertotalitário. Então, é claro que eu me preocupo com os direitos humanos. No dia a dia, no entanto, ao lidar com a China, os países têm que escolher que sacrifícios estão dispostos a fazer para tal, e não achar que podem ter tudo ao mesmo tempo. Agora, quando se fala especificamente dos problemas dos direitos humanos, como a prisão de um poeta, eu acredito que todos nós expressamos a própria opinião, e não devemos ter vergonha…

Lucas Mendes — Abertamente?
Henry Kissinger —
Sim. Podemos expressar nossa opinião abertamente. A questão é: quanta pressão queremos fazer? Aplicamos sanções, cancelamos visitas? Isso deve ser determinado caso a caso. Eu me preocupo mais com isso.

Lucas Mendes — Até seus críticos concordam que o senhor foi o diplomata mais influente do século 20. O senhor moldou o mundo mais do que qualquer outra pessoa. Desde que entrou para a Casa Branca, em 1969, até hoje, o senhor acha que vivemos em um mundo mais seguro, igualmente seguro ou menos seguro?
Henry Kissinger —
É uma ótima pergunta. Sob certo ponto de vista, é um mundo mais seguro. Sob outros, é menos seguro.

Lucas Mendes — Como assim?
Henry Kissinger —
Sob o ponto de vista de que é mais seguro… Quando terminei minhas funções como assessor especial da presidência, na Casa Branca, a Rússia e os EUA se confrontavam em um ambiente nuclear. Todos os nossos cálculos se baseavam no fato de que uma guerra nuclear era, pelo menos, possível. E isso teve consequências enormes. Eu nunca falei disso, pois seria uma fraqueza, mas eu estava preocupado com a responsabilidade que nós, na Casa Branca, tínhamos de ter em mente a possível destruição da civilização. Esse perigo diminuiu substancialmente. Porque há menos confronto entre as superpotências. Por outro, a situação política é mais complexa. Em 1969, você estava, mais ou menos, de um lado ou de outro. Hoje, há mudanças revolucionárias acontecendo em várias partes do mundo ao mesmo tempo, e elas podem ter consequências imprevisíveis. Nós ainda não sabemos qual será o resultado final da Primavera Árabe no Egito. E a ironia é que as pessoas que fizeram grande parte da revolução, as redes sociais, estão, de certo modo, em suspenso quanto a isso. E o que acontece é que eles sabem como levar as pessoas às ruas, mas não sabem o que fazer com elas quando estão lá.

Lucas Mendes — O que está acontecendo na Rússia e onde isso vai parar? A Primaver Árabe está chegando por lá?
Henry Kissinger —
A maneira como a Primavera Árabe se desenvolveu a torna possível em qualquer país com os meio técnicos para criar uma comunidade rápida com várias pessoas, fora do controle do governo. Então é possível que se tenha algo como a Primavera Árabe. Mas, mesmo quando ocorre uma Primavera Árabe, como eu disse antes, é preciso saber o que se deseja fazer. Não basta ser contra. Agora, a Rússia tem um dilema histórico: muitos de seus grandes líderes eram reformistas nos campos econômico e social, mas repressores no campo político. Eles poderão superar isso numa próxima fase? Esse será o próximo desafio que terão que enfrentar.

Lucas Mendes — As mudanças na Rússia — se é que elas existem — poderão afetar ou enfraquecer o Irã?
Henry Kissinger —
Bem… No longo prazo. Um país nuclear fazendo fronteira com a Rússia, com um governo que insiste em implementar a máxima islâmica, deve criar um forte sentimento de insegurança na Rússia. Por isso, sob esse ponto de vista, deverá haver um recuo com relação ao Irã. Por outro lado, um país que mobiliza os EUA e nos deixa preocupados traz alguns benefícios estratégicos para a Rússia. Portanto, eles alternam entre esses pontos de vista. E, acima de tudo, eles não querem dar espaço para uma revolução islâmica na Rússia, no sul, onde há muitos muçulmanos. Por isso, eles agem com grande cuidado.

Lucas Mendes — Embora o senhor seja visto como grande responsável pelo restabelecimento de relações com a China e pelo fim da Guerra do Vietnã, pelo lado negativo, onde o senhor acha que poderia ter se saído melhor? Se é que há algum.
Henry Kissinger —
Eu muitas vezes… Quando eu estava no governo… Há várias histórias sobre eventos dramáticos dos quais eu participei, mas eu sentia que tinha a obrigação de pensar neles com cuidado e de consultar várias pessoas. Portanto… eu provavelmente faria de novo grande parte do que eu fiz. Eu gostaria de termos criado um equilíbrio melhor — respondendo à sua pergunta — entre os direitos humanos e os outros aspectos. Mas… Isso… Não consegui encontrar o momento certo para tanto.

Lucas Mendes — Quando o senhor pensa no Brasil… O senhor deve saber muita coisa sobre o Brasil. Seus clientes devem fazer perguntas sobre o Brasil. O senhor dá conselhos positivos? É um lugar que o senhor recomenda?
Henry Kissinger —
O Brasil?

Lucas Mendes — É.
Henry Kissinger —
É um país… Eu estive no Brasil pela primeira vez em 1962, durante a Copa do Mundo no Chile, que vocês venceram. Eu fiquei preso por dois dias na casa de alguém que morava nos morros do Rio, pois havia tanta festa nas ruas, que eu não consegui voltar para o meu hotel. Eu sempre admirei a capacidade do Brasil de pegar pontos de vista conflitantes e juntá-los e formar algo maior. E o Ministério das Relações Exteriores sempre me impressionou por seu uma instituição muito eficiente. E, nos últimos anos, o Brasil se tornou uma peça internacional importante. E eu gosto do estilo de vida no Brasil. Uma combinação de trabalho sério, mas sem se levar totalmente a sério, na realidade. Por isso, tenho esperanças de que o Brasil seja um grande país.

Lucas Mendes — Dr. Kissinger, obrigado de novo.
Henry Kissinger —
Obrigado.

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