Vocação conciliadora

“A resposta técnica do juiz não basta”

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30 de dezembro de 2012, 8h00

Spacca
A despedida emocionada do ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Massami Uyeda, em novembro deste ano, acabou se convertendo também em oportunidade para que os demais colegas, que prestavam homenagens em sessão, criticassem a norma constitucional que estabelece 70 anos como idade limite para a aposentadoria. Uyeda deixou a corte no final de novembro quando completou sete décadas de vida, sendo ele mesmo favorável à proposta de emenda constitucional que aumenta a idade de aposentadoria de 70 para 75 anos — a chamada PEC da Bengala. A economia aos cofres públicos e a capacidade de juízes que acumularam décadas de experiência e ainda desfrutam do auge de seu vigor intelectual são justificativas eloquentes para o ministro na defesa da proposta.

“O ministro Massami é um dos casos, ao lado dos ministros Cezar Peluso e Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, para fazer repensar a aposentadoria compulsória por idade, pois são pessoas que chegam aos 70 anos em plena saúde física e mental. Não há, infelizmente, como brigar contra a Constituição Federal”, desabafou, na ocasião, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006, Uyeda, que integrou o tribunal por mais de seis anos, compunha a 3ª Turma da 2ª Seção, que cuida de matérias de Direito Privado. Em entrevista concedida em seu gabinete à revista Consultor Jurídico, poucos dias antes de se aposentar, o ministro disse que os anos no tribunal lhe deram a dimensão de quanto aquela corte é importante. “A essência desse tribunal é a mesma da Suprema Corte”, disse durante a entrevista. “Tendo essa atribuição de uniformizar a jurisprudência do país e de dar a interpretação da lei infraconstitucional, pode-se dizer que a matéria que interessa diretamente ao cidadão acaba chegando aqui”, observou.

Descendente de imigrantes japoneses e nascido na cidade de Lins, no interior de São Paulo, em 1942, Uyeda dedicou 47 anos ao Direito, destes, 35 ocupados com a magistratura. Ele foi o primeiro nipodescendente a integrar um tribunal superior brasileiro. No final dos anos 1960, atuou como advogado. Foi também promotor de Justiça de São Paulo na década seguinte. Por fim, já na magistratura, foi desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

No período em que atuou no STJ, consolidou sua reputação como defensor da conciliação, tentando compor as partes mesmo em recursos especiais. Em um episódio, aproveitou o fato de os advogados de um processo marcarem a audiência no mesmo horário para formular uma proposta de conciliação. Depois de muita conversa com as próprias partes, até então irredutíveis de sua posição e em clima de deflagrada beligerância, o processo acabou sendo encerrado.

Durante a entrevista, o ministro aposentado disse que, com a experiência, suas convicções e certezas na área do Direito recuaram em favor da maturidade da dúvida. E que com a aposentadoria, além de se dedicar à família, pretende suprir lacunas em sua formação como jurista e ser humano. “Julgar é optar por angulação de interpretação. A realidade jurídica, o fato jurídico são multifacetados, não são superfícies lisas. Sempre entendi que a realidade jurídica é complexa porque o ser humano assim o é”, disse.

Massami Uyeda falou também da influência que a filosofia budista exerceu em sua formação. O primeiro contato com o budismo veio ainda em Lins, de um personagem da juventude na cidade, o “Sr. Kojima”, um mestre e orientador. Anos mais tarde, o ministro reencontraria o pedagogo japonês durante estada no Japão. Outra influência, que fez dele um juiz sensível ao papel que elementos como a intuição desempenham na hora julgar e da importância da vocação do juiz como um agente conciliador, vem do filósofo e educador cristão catarinense Huberto Rohden.

“Dentro de um preceito oriental, no imaginário coletivo, afirma-se que a verdade tem, pelo menos, três facetas: a minha, a sua e a verdadeira. A interpretação de um texto legal, de um fato ou ato jurídicos comporta, portanto, várias facetas”, diz Uyeda.

Leia a entrevista:

ConJur — Às vésperas da aposentadoria, quando o senhor olha para trás, qual o sentimento em relação a sua carreira na Justiça, primeiro na advocacia, então no Ministério Público e finalmente na magistratura? A visão que o senhor tem hoje do Direito se transformou muito durante essas décadas?
Massami Uyeda — Depois que me tornei mestre e doutor em Direito, passei a ter dúvidas sobre o quanto entendia de Direito. Até me tornar doutor eu achava que entendia muito. A surpresa na interpretação da lei é justamente a face, ou melhor posto, as facetas aparentemente pacíficas na matéria, pensadas e decididas, muitas vezes, até de forma superficial.

ConJur — A humildade do intérprete e julgador avança com a experiência?
Massami Uyeda – Sim. Apresenta-se uma controvérsia, você sopesa as circunstâncias, os argumentos, os elementos e aí então entra o critério da intuição, que deve ser confrontada novamente com o método dedutivo e comparativo. Isso demora um pouco. Por vezes, a primeira impressão, o primeiro feeling é confirmado, é o correto. Confirma-se a intuição.

ConJur — Então há uma tensão entre a intuição e a razão na hora de decidir?
Massami Uyeda — Muitas vezes, quando se tem o feeling e se desafia este feeling a fim de se racionalizar em demasia, a conclusão acaba sendo prejudicada. O equilibrio para saber se esse feeling está amparado em certas premissas que podem ser levadas em consideração é o mais difícil. A construção de uma interpretação requer uma análise, tanto quanto possível, abrangente — e não só do fato em si.

ConJur — Quais são os projetos em vista com a aposentadoria?
Massami Uyeda — Ao longo dos meus 35 anos de magistratura e 47 no Direito, a despeito da experiência conquistada, reconheço que não tenho o domínio pleno em muitas áreas. Há muitas áreas em que necessito aperfeiçoar minha formação. É o que pretendo fazer. Me dedicar a essas áreas no Direito. Além dessas atividades, tem também os sonhos de uma infância, os quais eu perseguia. O aperfeiçoamento das línguas, por exemplo. Sempre gostei muito do estudo das línguas.

 ConJur – Além de aperfeiçoar o japonês o senhor pretende estudar outras línguas?
Massami Uyeda – Antes de escolher o Direito pretendia seguir carreira como professor. Fiz o vestibular para a Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP, passei e frequentei o curso. Frequentei o curso de Letras Clássicas. Gostava muito de português e latim. Para ser professor dessas duas línguas, eu tinha que conhecer ainda o grego. Eu cursava Direito e Letras, mas precisava trabalhar, e optei por seguir com o Direito. Passados os anos, vejo que essa escolha foi a mais acertada. Lamentavelmente, o magistério não é levado com sua devida consideração.

ConJur – Mas o senhor acabou exercendo o magistério com o Direito, certo?
Massami Uyeda – Paralelo às atividades na advocacia, magistratura e no Ministério Público acabei voltando à academia. Antes de me tornar mestre e doutor eu lecionava. Lecionava e pensava que entendia do assunto. À medida que conclui o mestrado e o doutorado, a rapidez, a facilidade com que pensava que entendia deu lugar à conclusão contrária. No sentido de compreender, num primeiro momento, por exemplo, que, em dado caso, a interpretação, o estudo seria feito linearmente, de tal forma. Me refiro às premissas básicas de compreensão e entendimento. Passei a compreender que as interações que decorrem desse institutos exigem de todos um conhecimento muito mais amplo.

ConJur – Essa perspectiva de entendimento só pode vir com a experiência, não?
Massami Uyeda – Só posso dizer o seguinte: tudo isso, tudo o que vivi, parece ter sido um arcabouço, um conjunto de atividades que me prepararam para chegar ao Superior Tribunal de Justiça. Ingressando na corte, me deparei com a demanda advinda do número de processos, na parte de Direito Privado, que abrange um vasto campo. Questões de família, herança e partilha, problemas de sociedades anônimas, falências, liquidações e recuperações, contratos, indenizações, problemas de marcas e patentes, Direito Bancário e Direito Financeiro. São dez ministros que dão conta disso.

ConJur – Em termos de volume de processos o senhor tem uma ideia de quanto julgou no STJ?
Massami Uyeda – Nos seis anos em que permaneci no tribunal, proferi mais de 78 mil decisões. Não estou entre aqueles que criticam o excesso de processos. Na verdade, o excesso de processos é brutal, desumano, é uma anomalia do sistema recursal. Mas se a demanda existe, eu a vejo como a confiança que a população deposita no Judiciário. Mecanismos de contenção têm sido feitos em nível legislativo e constitucional, como a introdução de uma emenda que possa estender a repercussão geral e a lei ordinária que estabeleceu o rito dos recursos repetitivos.

ConJur – O senhor é conhecido como entusiasta das práticas de conciliação, arbitragem e mediação…
Massami Uyeda – Sim. Ferrenho. Aqui mesmo no STJ, como ministro, tive sucesso com as mediações e conciliações. Um caso memorável aconteceu em uma questão de família. Um casal que viveu juntos por mais de 25 anos, com duas filhas e que amealhou uma fortuna imensa. A separação acarretou na partilha dos bens e a partilha foi alvo de uma reclamação da esposa que justificava que o marido não prestava contas e não pagava os alimentos a que ela fazia jus. Por melhor que possa ser uma decisão e levando em conta a demora, ponderei que o processo já havia passado por vários níveis de jurisdição estadual. O estado de ânimo entre as partes era de beligerância. Formulei, então, a proposta para que encontrassemos uma solução que não fosse tão cruel para as partes. Marcamos um dia para as partes virem ao tribunal. Expliquei as vantagens da conciliação no sentido da pacificação, no sentido da preservação da própria saúde física, mental e espiritual e da preservação de uma família que eles, um dia, foram. Depois de uma hora, disse a eles que teria que entrar em julgamento e que o espaço do gabinete estaria disponível, que eles poderiam usar o tempo para conversar, para que não disperdissassem aquela oportunidade. Informei a eles que teriam umas quatro horas para conversar, até eu voltar da sessão. Quando retornei, qual não foi minha satisfação ao verificar que tinham feito um acordo. Houve uma reconciliação e o acordo foi vantajoso para os dois lados.

ConJur – O diálogo foi restabelecido entre as partes.
Massami Uyeda – É o papel do juiz como conciliador, como alguém a quem compete também agregar, e não motivar a discórdia. Houve outros casos. Isso me deixa muito feliz.

 ConJur – Esses valores fazem falta mesmo quando a resposta técnica do juiz é eficiente?
Massami Uyeda – A resposta técnica não basta. Às vezes não é suficiente. Como professor sempre estimulei essa ideia de que o juiz tem também que ter essa vocação de conciliador. Não estamos num campeonato de demonstração de conhecimentos jurídicos. A razão de ser do Judiciário é ser um elemento de pacificação e de transformação social. E não simplesmente um repositório de conhecimentos técnicos, vazio de sentimento. O destinatário de toda a atividade é o ser-humano. “O homem é a medida de todas as coisas”, disse Protágoras. É a razão de ser do próprio Estado. A nossa Constituição abriga esse princípio. No Artigo 1º, o pilar do fundamento do Estado é o respeito à dignidade da pessoa humana. Uma leitura mais completa da Constituição deve buscar a visão de soliedariedade entre os seres humanos. Isso quem me ensinou foi aquele senhor [Kojima]. É algo que vem da filosofia do budismo e que de alguma forma eu assimilei, me impressionou bastante e, desde então, tem me pautado.

ConJur – O senhor se aposenta às vesperas do seu aniversário de 70 anos. O senhor é favorável à proposta constitucional que aumenta a idade para a aposentadoria obrigatória?
Massami Uyeda – Completo 70 anos no dia 28 de novembro. Há um entendimento, a meu ver míope, de que não pode se aposentar no último dia. Então me aposento no dia 23 para evitar problemas nesse sentido.

ConJur – Como o senhor avalia o grau de uniformização das decisões do tribunal? As súmulas têm sido seguidas?
Massami Uyeda – Esses seis anos e meio, justo numa época de profundas e rápidas transformações, me permitiram uma visão de o quanto é importante este tribunal. O STJ tem assento na Constituição e surgiu de um desmembramento do Supremo Tribunal Federal, que, até antes da Constituição de 1988, acumulava também o julgamento da matéria infraconstitucional. A essência desse tribunal é a mesma da Suprema Corte. Tendo essa atribuição de uniformizar a jurisprudência do país e de dar a interpretação da lei infraconstitucional, pode-se dizer que a matéria que interessa diretamente ao cidadão acaba chegando aqui. Essa corte deu uma contribuição muito importante em questões de família, a questão da união homoafetiva, por exemplo, passou por aqui. A questão das repercussões financeiras dos contratos bancários, dos financiamentos ao longo desses vinte anos de planos econômicos sucessivos, também. Estávamos e ainda continuamos sem saber quais eram os indexadores daquela época. Tivemos, porém, julgamentos aqui que procuraram dar a interpretação mais unânime, segura e reconhecida desse assunto. Matérias relativas a patentes e marcas, como a discussão do período de validade das patentes internacionais, redundaram, por exemplo, na legitimação dos genéricos no Brasil. Há ainda o entendimento que está se pacificando em torno da questão dos planos de sáude. Enfim, um elenco de competências.

ConJur – O tribunal passou também a ter competência para homologar sentença estrangeira.
Massami Uyeda – Sim. Passamos a ter a competência que antes era do Supremo, mas que o STF delegou ao STJ da homologação de sentença estrangeira. O que tem muita relevância mormente porque nós estamos, nesse nível, apreciando homologação de sentença arbitral, de tribunais arbitrais do exterior.

ConJur – O STJ tem um papel pioneiro em decisões no âmbito do Direito Privado?
Massami Uyeda – Sim. Recentemente pronunciei uma decisão em um caso de muita expressão econômica. Nesse julgado, que ainda está sob judice porque há embargos de declaração postos, o julgamento na turma foi unânime, no sentido de legitimar as privatizações ocorridas nos governos anteriores, do presidente Itamar e Fernando Henrique e, por consequência, dar legimidade a chamadas concessões do atual governo, que, a meu ver, são também privatizações. Essa decisão também legitimou a utilização das ditas “moedas podres”.

ConJur – O senhor reconhece frequentemente que sustenta posicionamentos diferentes da maioria dos colegas, que seus votos são divergentes e não acompanham o relator. Qual a razão disso?
Massami Uyeda – Julgar é optar por angulação de interpretação. A realidade jurídica e o fato jurídico são multifacetados, não são superfícies lisas. Sempre entendi que a realidade jurídica é complexa porque o ser humano assim o é. Cada ser humano é um universo e esta é a razão da individualidade de cada qual. Filosoficamente, o universo é a unidade na diversidade.

ConJur – Não bastam a interpretação técnica e linear?
Massami Uyeda – Existe o “um” e os “outros”. E esses “outros” é que vêm compor a realidade que se apresenta como única. O que explica, a meu ver, a adequada interpretação do princípio da igualdade. A igualdade não pode ser única, simétrica, linear. Uma igualdade em situações de desigualdade não pode ser igualdade. A análise de uma argumentação ou fato, objetos da discussão, enfocados apenas de uma maneira singela, linear, não reflete a própria realidade. Dentro de um preceito oriental, no imaginário coletivo, afirma-se que a verdade tem, pelo menos, três facetas: a minha, a sua e a verdadeira. A interpretação de um texto legal, de um fato ou ato jurídicos comporta, portanto, várias facetas.

ConJur – Mesmo quando a matéria é pacífica e a lei é clara?
Massami Uyeda – Existe um artigo linearmente claro em matéria de contrato de seguro de vida que diz que se o evento morte ocorrer no prazo de dois anos da contratação do seguro de vida e se a morte for voluntária, ou seja, suicídio, o capital não será pago ao beneficiário. Apareceu um caso em que o estipulante do seguro se suicidou antes de completar dois anos do termo contratual. A decisão inicialmente aplicada foi que a literal interpretação da lei era aquela. Eu arguí, discordei. Disse que o fato em si de uma pessoa ser levada ao extemo do suicídio, na realidade, é uma patologia. Não é a condição natural. Quando alguém pretende, ainda que deliberada ou premeditadamente, pôr fim a sua vida, esta pessoa teria que programar a morte para dali a dois anos. As vicissitudes da vida podem acarretar em uma série de situações. O contrato de seguro de vida recebe o influxo e o enfoque do Código de Defesa do Consumidor. Se o estipulante manifestar distúrbios psiquiátricos, psicopatológicos, como é que depois podemos dizer que a letra fria da lei disse isso ou aquilo? Fosse tão simples, bastaria contratar um grupo de gramáticos, de professores de língua, para interpretar o texto legal na sua literariedade, não seria necessário termos juízes. Isso gerou um aceso debate. Levado à sessão de julgamento da seção, esse posicionamento saiu vitorioso.

ConJur – A divergência prevaleceu…
Massami Uyeda – A geometria, por exemplo, é uma ciência exata. E diz que o conceito de reta é a menor distância entre dois pontos. A teoria da relatividade, por outro lado, postula que, no fim, o universo se torna uma grande elipse, ele se fecha. Logo, o trecho da reta é parte de uma grande curva. Depende do que, então? Da angulação. Se mesmo na área das ciências exatas a questão é relativa, imagine nas ciências humanas. Se decantarmos a palavra “direito”, ela vem daquilo que é reto. Direito, justo, Justiça, é aquilo que nós denominamos de conceitos jurídicos indeterminados. Todo mundo tem uma ideia do que seja, mas ninguém consegue descrever exatamente.

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