Direito Comparado

Fonte estrangeira pode fundamentar decisão nacional?

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

12 de dezembro de 2012, 19h09

A (má) importação de teorias ou institutos jurídicos estrangeiros e o uso de fundamentos extraídos de Cortes ou normas de outros países foram temas recentemente analisados nas colunas da revista Consultur Jurídico.[1] No Brasil, em termos históricos, não há restrição sensível ao uso do Direito estrangeiro em nossas decisões judiciais. Veja-se que a famosa Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, mandada baixar pelo rei de Portugal, a conselho de seu ministro o Marquês de Pombal, expressamente reconheceu a aplicabilidade nos territórios portugueses d’aquém e d’além mar da chamada “boa razão”, “que se estabeleceu nas Leis Políticas, Econômicas, Mercantis e Marítimas, que as mesmas Nações Cristãs têm promulgado com manifestas utilidades, do sossego público, do estabelecimento da reputação, e do aumento dos cabedais dos Povos (…) Sendo muito mais razoável, e muito mais coerente, que nestas interessantes matérias se recorra antes em caso de necessidade ao subsídio próximo das sobreditas Leis das Nações Cristãs iluminadas, e polidas (…); do que ir buscar sem boas razões, ou sem razão digna de atender-se, depois de mais de dezessete séculos o socorro às Leis de uns Gentios”.

No Código de Processo Civil, o artigo 337 exige da parte que alegar direito estrangeiro ou consuetudinário a prova de sua vigência, se assim o determinar o juiz. Embora seja uma norma mais voltada para casos de Direito Internacional Privado, essa regra pode ser interpretada conjuntamente com o artigo 126 do CPC, que contém o famoso primado da completude lógica do ordenamento jurídico: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. A realização prática desse comando legal chega até ao extremo, admitido por alguns estudiosos do Direito Internacional Privado, de que o juiz brasileiro possa aplicar o Direito nacional, mesmo quando o elemento de conexão impuser determinado Direito estrangeiro, quando este for desconhecido pelo magistrado e as partes não se desincumbirem de prová-lo, nos termos do citado artigo 337.

No Brasil, não é bem a questão da (aparente) lacuna que tem suscitado a aplicabilidade do Direito estrangeiro. Em verdade, o problema está nos limites do uso no Brasil, especialmente pelo Poder Judiciário, de princípios, constructos teóricos, normas e doutrinas elaborados no exterior. Vê-se com muita satisfação a presença desses elementos em acórdãos ou sentenças. Em muitos julgados, é sinal de erudição e de profundidade na pesquisa realizada para se prestar a jurisdição. N’alguns casos, a empolgação chega ao extremo de se desconsiderar a norma do artigo 156 do CC (“Em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo”). Há, contudo, o risco de se transformar essas citações em um berloque ou em uma “peça ornamental de retórica”, o que é menos danoso, ou, o que é mais grave, na invocação de inegável (?) autoridade intelectual de certo Direito (ou doutrinador ou Tribunal) estrangeiro para se chegar a resultados que não se justificariam normalmente pelo emprego exclusivo do Direito nacional.

Mais do que um problema de defesa dos valores e da cultura jurídica do Brasil, o que, por si só já seria muito importante, é o caso de se questionar sobre a qualificação jurídica dos fundamentos estrangeiros de uma sentença nacional alheia ao Direito Internacional Privado.

Para essa finalidade, vale citar os resultados de uma interessante pesquisa de Basil Markesinis e Joerg Fedtke, que classifica os países conforme sua utilização do Direito estrangeiro em seu próprio sistema. Segundo esses autores, é possível organizar três grupos:[2]

a) Grupo 1 – Nesse primeiro grupo, há disposições constitucionais que expressamente dão abertura para que se faça uma interpretação integradora do Direito interno, valendo-se do Direito estrangeiro. A África do Sul, muito provavelmente, é o único legítimo representante desse grupo,  pois o artigo 35 (1) da Constituição de 1993 e o artigo 39 da Constituição de 1996 não apenas permitem como encorajam os magistrados a recorrerem aos princípios e às regras internacionais de Direitos Humanos, bem assim à jurisprudência estrangeira. De fato, o artigo 39 da Constituição de 1996 (em vigor e com diversas modificações) estabelece que os tribunais sul-africanos, ao interpretarem o catálogo de direitos fundamentais (Bill of Rights), devem levar em conta o Direito Internacional e o Direito estrangeiro.

b) Grupo 2 – É formado pelos países que seguiram a tradição dos tribunais constitucionais do pós-guerra, tendo como exemplo por excelência a Alemanha. O nível de interferência no direito ordinário é intenso, o que se torna bem visível por meio de julgamentos de caráter aditivo, interpretativo e integrativo.

c) Grupo 3 – É composto por países como Israel e Estados Unidos, nos quais há grande interferência das Cortes Constitucionais na realidade social e nas agendas políticas. Segundo a terminologia alemã, os juízes desses tribunais deixaram de ser Normanwender (aplicadores ou adaptadores da norma) e se converteram em normsetzende Instanz (criadores da norma).

O Brasil possui uma norma de integração dos tratados internacionais de direitos humanos ao bloco de constitucionalidade, que é o parágrafo 3o do artigo 5o da Constituição de 1988. Não é, porém, um dispositivo confundível com o explícito reenvio interpretativo e integrativo da norma sul-africana, exemplo por excelência de um “consenso sobreposto” pós-política discriminatória do apartheid.

Na jurisdição constitucional do grupo 2, à exceção da Alemanha, onde não é comum o recurso à legislação ou à doutrina estrangeiras, mas (e de modo relutante) à jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, a utilização de precedentes alemães é vulgar em diversos países, ao exemplo de Portugal, Espanha, Itália e Brasil. E, evidentemente, não apenas alemães, mas, em menor medida, franceses e italianos, como é o exemplo brasileiro e argentino.

Os Estados Unidos ocupam posição de singularidade mesmo no grupo 3. Há uma intensa discussão sobre a propriedade de se importar ou, na linguagem mais usual, de se tomar de empréstimo (borrowing) elementos jurídicos estrangeiros. Percebe-se uma “resistência ambivalente” no Direito Constitucional norte-americano ao recurso ao Direito de outros países, como bem destacou Vick C. Jackson, quando transcreveu o trecho de uma conferência da justice Sandra Day O’Connor:

 “Penso que eu e outros juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos deveríamos olhar com mais frequência para decisões de outras cortes constitucionais. Algumas delas, como as cortes alemã e italiana, vem funcionando desde o fim da última Guerra Mundial. Elas têm lutado com as mesmas questões constitucionais fundamentais com as quais nós temos lidado: proteção isonômica, devido processo legal e rule of law nas democracias constitucionais. Outras, como a corte da África do Sul, são relativamente novas em cena, mas já se entrincheiraram como garantidoras dos direitos civis. Todos esses tribunais têm algo a nos ensinar sobre as funà �ões civilizadoras do Direito Constitucional”.[3]

O Brasil experimenta o outro extremo desse fenômeno: a utilização da experiência estrangeira (muita vez, magnífica experiência) sem grande cuidado com quatro critérios básicos:

1. Adequada importação do conceito, do instituto, da doutrina ou do precedente. É muito comum haver sido superada a concepção dogmática, a orientação pretoriana ou mesmo a norma na qual se funda o elemento argumentativo tomado de empréstimo.

2. Correta interpretação da teoria ou do instituto estrangeiro. Muita vez, faz-se a importação ou o empréstimo e não se tomam cautelas para se verificar sua efetiva correlação com o Direito brasileiro ou se foi correta a leitura do instituto pelo julgador brasileiro.

3. Utilização de algum método comparatista. Há diversos métodos em Direito Comparado, especialmente o funcional, desenvolvido por Ernst Rabel, os quais servem para que se manuseie um instituto estrangeiro com rigor científico, especialmente para que ele não seja desnaturado quando transposto ao Direito interno.

4. Efetiva utilidade do recurso ao Direito estrangeiro. Esse talvez seja o menos observado dos quatro critérios. A esse respeito, como bem escreveu Carlos Bastide Horbach: “Ante tal contexto, importante lembrar a advertência de Robert Scarciglia acerca dos riscos de um procedimento de comparação não amparado pela metodologia adequada: ‘sem um enfoque metodológico sério, o estudioso corre o risco de não levar a cabo nenhuma atividade de comparação real, incorrendo mais na realização de atividades em sua maior parte ornamentais, sem nenhum valor epistemológico’”.[4]

Crê-se, conclusivamente, que ainda está a merecer um exame mais acurado o problema da utilização dos fundamentos de Direito estrangeiro no Brasil, especialmente no que se refere ao debate norte-americano: há legitimidade na utilização desses fundamentos para vincular comportamentos de nacionais? A razão de se encontrar esse debate em estágio tão primitivo no Brasil talvez esteja na irrelevância, ao final, dessas importações ou “tomadas de empréstimo”. Mais do que instrumento útil de comparação do Direito interno com outras experiências, esse recurso tem mais caráter ornamental e de exibição de aparente erudição. O estágio de desenvolvimento da sociedade e do Direito no País reclama outra postura metodológica. De todos nós.


[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio. Problemas na importação de conceitos jurídicos. In. Coluna Direito Comparado. Consultor Jurídico. 8.8.2012 (disponível em http://www.conjur.com.br/2012-ago-08/direito-comparado-inadequada-importacao-institutos-juridicos-pais. Acesso em 11.12.2012); HORBACH, Carlos Bastide. Referências estrangeiras são constante no STF. In. Coluna Observatório Constitucional. Consultor Jurídico.10.11.2012 (disponível em http://www.conjur.com.br/2012-nov-10/observatorio-constitucional-referencias-estrangeiras-sao-constante-stf. Acesso em 11.12.2012).

[2] MARKESINIS, Basil; FEDTKE, Joerg. Judicial recourse to Foreign Law: A new source of Inspiration? Routledge-Cavendish: Oxford, 2006. p. 23 e ss.

[3]I think that I, and the other Justices of the U.S. Supreme Court, will find ourselves looking more frequently to the decisions of other constitutional courts. Some, like the German and Italian courts, have been working since the last world war. They have struggled with the same basic constitutional questions that we have: equal protection, due process, the rule of law in constitutional democracies. Others, like the South African court, are relative newcomers on the scene but have already entrenched themselves as guarantors of civil rights. All these courts have something to teach us about the civilizing functions of constitutional law” (JACKSON, Vick G. Ambivalent resistance and comparative constitutionalism: opening up the conversation on “proportionality”rights and federalism. Journal of Constitutional Law. v. 1, n. 3, p. 583-639, 1999. p. 638-339).

[4] HORBACH, Carlos Bastide. Op. cit. loc. cit.

Autores

  • é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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