Diário de Classe

Quem devem ser os guardiões da Constituição?

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8 de dezembro de 2012, 7h00

Tal questão, como se sabe, foi objeto de um importante debate travado entre Hans Kelsen e Carl Schmitt no início do século XX, cujos efeitos se mostraram determinantes para a evolução de toda a teoria jurídica e, especialmente, da jurisdição constitucional.

De um lado, em A defesa da Constituição (1931), Schmitt rejeita a tese defendida por Kelsen, acerca da função de controle da constitucionalidade das leis ser exercida por um Tribunal Constitucional. Com efeito, Schmitt sustenta a existência de uma distinção essencial entre proteção e controle. Neste sentido, admite que os tribunais realizem um controle geral das leis, o que, contudo, não significaria realizar uma defesa da Constituição. Na verdade, Schmitt entende que os litígios constitucionais constituem problemáticas políticas, cujo controle não poderia ocorrer mediante atuação judicial. Desse modo, tendo em vista que a origem da Constituição seria, para Schmitt, a vontade unitária do povo, conclui que apenas o Presidente do Reich é quem poderia ser o Guardião da Constituição.

De outro, em sua réplica — Quem deve ser o guardião da Constituição? (1931) —, Kelsen rebate a argumentação de Schmitt, afirmando que não existe uma natureza política incompatível com a judicial, especialmente porque a política não se restringe ao Parlamento. Ao contrário de Schmitt, entende que a política compõe a própria essência do ato decisório, uma vez que toda sentença é marcada por um exercício de poder e, consequentemente, de criação do direito. Neste contexto, somente o Tribunal Constitucional poderia ser a instituição capaz de, suficientemente equidistante das esferas legislativa e executiva, decidir acerca de seus atos. Assim, Kelsen sustenta a importância do exercício do controle de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, cuja imparcialidade derivaria da escolha dos juristas pelo Parlamento.

Como se sabe, embora a discussão teórica pressuponha dois conceitos distintos de Constituição, Kelsen venceu o debate na medida em que os tribunais constitucionais se difundiram pela Europa, inaugurando o chamado controle concentrado de constitucionalidade, por nós importado, formalmente, através da EC 16/65.

Mas quem são os guardiões da nossa Constituição? Qual a importância deste tema? Ou ainda: o que significa, efetivamente, guardar a Constituição? Como um tribunal pode fazer isto?

Não obstante os inúmeros estudos científicos acerca da história do Supremo Tribunal Federal, lamentavelmente ainda inexpressivas as pesquisas acerca do papel desempenhado por seus integrantes. Ao contrário do verificado na doutrina estrangeira, não desenvolvemos a cultura de traçar o perfil dos magistrados de nossa Suprema Corte e tampouco de investigar o teor de suas decisões, identificando eventuais tendências, posicionamentos e ideologias.

Promiscuidade na indicação de ministros
Muito se falou — e ainda se fala — a respeito da indicação de Dias Toffoli para a Suprema Corte. No último domingo, o ministro Luiz Fux concedeu entrevista à Folha de S.Paulo (clique aqui para ler), na qual confessou haver pedido apoio político aos mensaleiros José Dirceu e a João Paulo Cunha durante sua campanha para o Supremo Tribunal Federal.

Sem adentrar na polêmica entrevista, cujo teor é absolutamente constrangedor à República, tudo indica que é chegada a hora de se rediscutir, de uma vez por todas, o processo de indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Como se sabe, os requisitos estão previstos no artigo 101 da Constituição de 1988: (1) idade mínima de trinta e cinco anos e máxima de sessenta e cinco anos; (2) notável saber jurídico; (3) reputação ilibada. O presidente indica; o Senado sabatina e aprova; o presidente nomeia. Este é o modelo vigente no Brasil, desde o advento da Constituição de 1891, salvo durante o Estado Novo, quando a aprovação das indicações competia ao Conselho Federal.

De todo modo, é possível afirmar que seguimos a tradição estadunidense. Não copiamos, entretanto, a tradição ianque relativa à sabatina. Lá, na história da Suprema Corte, doze indicações já foram rejeitadas (rejected), além da desistência de outras onze para evitar uma situação vexatória no Senado (withdraw). Por aqui, todavia, a sabatina não passa de um ritual, uma solenidade pro forma.

No contexto brasileiro, observa-se que os governos Lula e Dilma, por exemplo, foram responsáveis pela indicação de onze ministros ao longo da última década. Atualmente, 73% da composição do Supremo Tribunal Federal é decorrente de nomeações promovidas por um único partido, o PT.

A redemocratização do Supremo
Talvez o depoimento do ministro Luiz Fux nos sirva de alerta para iniciarmos uma profunda reflexão: afinal, que Supremo queremos? Talvez seja o momento oportuno para se promover um grande debate acerca da necessidade de democratização das cadeiras do Supremo Tribunal Federal. Talvez o constituinte brasileiro possa se inspirar nas experiências relativas à composição dos tribunais constitucionais estrangeiros.

Vejamos alguns exemplos, trazidos por Lenio Streck em seu Jurisdição Constitucional e Hermenêutica (Rio de Janeiro: Forense, 2004):

— Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) é composto por dezesseis membros, escolhidos entre juízes, advogados, professores universitários, etc. Metade dos membros é eleita pelo Parlamento (Bundestag). A outra metade é eleita pelo Conselho Federal (Bundesrat). O mandato é de doze anos, não havendo possibilidade de recondução.

— Na Áustria, oTribunal Constitucional (Verfassungsgerichtshof) é composto por quatorze membros titulares e seis suplentes. As nomeações são realizadas pelo presidente da República, entre magistrados, funcionários, advogados, e professores catedráticos, a partir de propostas apresentadas pelo governo federal, pelo Conselho Nacional e pelo Conselho Federal.

— Na Itália, a Corte Constitucional(Corte Costituzionale) é composta de quinze membros, dos quais cinco são indicados pelo presidente da República, cinco são indicados pelo Parlamento, reunido em sessão conjunta, e cinco são indicados pela magistratura. Os membros são escolhidos entre os magistrados pertencentes às jurisdições superiores, ordinárias e administrativas, os professores ordinários e os advogados com vinte anos de experiência profissional. O mandato é de nove anos, sendo vedada a recondução.

— Na Espanha,o Tribunal Constitucional é composto por doze membros nomeados pelo Rei. O sistema de indicação ocorre do seguinte modo: quatro serão indicados pelo Congresso, pela maioria de 3/5 dos seus membros; quatro serão indicados pelo Senado, pelo mesmo quórum; dois serão indicados pelo governo e outros dois, pelo Conselho Geral do Poder Judicial. Podem ser indicados magistrados, fiscais, procuradores, professores universitários, funcionários públicos e advogados. Além disso, exige-se reconhecida competência e mais de quinze anos de experiência profissional. O mandato é de nove anos, e sua renovação ocorre parcialmente a cada triênio.

— Em Portugal, por fim, o Tribunal Constitucional é composto por treze membros, dos quais dez são designados pela Assembleia da República. Os restantes são cooptados pelos membros indicados pela Assembleia. A composição do tribunal exige que, no mínimo, seis membros sejam escolhidos entre juízes de carreira. O mandato também é de nove anos, sendo vedada a recondução.

Na mesma linha das cortes europeias, diversas propostas de emenda constitucional tramitam no Congresso, com destaque para as seguintes: PEC 342/2009 (Dep. Flávio Dino), que estabelece critérios para a escolha dos ministros do STF e fixa mandatos de onze anos, vedando a recondução; PEC 434/2009 (Dep. Vieira da Cunha) e PEC 17/2011 (Dep. Rubens Bueno), que alteram a forma e requisitos de investidura no Supremo Tribunal Federal; PEC 143/2012 (Dep. Nazareno Fonteles), que dispõe sobre a forma de escolha e a fixação de mandato de sete anos para os ministros do STF; PEC 161/2012 (Dep. Domingo Dutra), que estabelece prazo de mandato para os ministros do STF.

Registre-se que, na verdade, já adotamos um sistema semelhante aos europeus quando, em 2004, na EC 45, criamos o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, CF) e o Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A, CF), cujos membros têm mandato e representam os diversos órgãos do Poder Judiciário e as demais funções essenciais à justiça, além da própria academia.

Em suma: o que fazer e como fazer, já sabemos. A democratização do processo de indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal não só aumentaria o grau de legitimidade das decisões judiciais, mas também reforçaria o papel das instituições — e, sobretudo, da sociedade dos intérpretes da Constituição — rumo à consolidação do paradigma do Estado Constitucional de Direito. Falta-nos, entretanto, avaliar se estamos suficientemente preocupados e interessados em debater acerca de quem devem ser os guardiões da nossa Constituição.

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