Ideias do Milênio

"90% dos peixes grandes dos oceanos foram eliminados"

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17 de agosto de 2012, 8h00

Entrevista concedida pela oceanógrafa Sylvia Earle, ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

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O oceano parece não ter fim. Durante milênios, a humanidade tratou os mares e a vida marinha como um recurso inesgotável capaz de absorver sem problemas a pesca excessiva e lixo de todo tipo. Só agora estamos descobrindo que a capacidade do oceano de conviver com a humanidade tem um limite. Milhares de espécies circulam pelos mares e formam ecossistemas complexos e frágeis, mas essenciais para a vida no planeta. Os ecologistas lutam para preservar o verde, mas sem o azul dos oceanos a terra não tem futuro. Sylvia Earle é quase uma Iemanjá ianque, uma Jacques Cousteau de saias, a primeira mulher aquanauta, e, até hoje, a que desceu mais fundo, um quilômetro de profundidade. Ela própria projeta seus submarinos. Esta esfera de acrílico é um protótipo do próximo no qual ela pretende bater o seu próprio recorde. Dá para imaginar o que será descer às profundezas do oceano nessa bola cheia de ar. Perto de completar 77 anos, ela continua em atividade como oceanógrafa e defensora incansável da vida marinha. Corre o mundo dando sinal de alerta: já destruímos 90% dos peixes, mas ainda dá pra salvar o resto e recuperar os mares. O Milênio encontrou Sylvia em seu cais em Oakland, na baia de São Francisco, para um mergulho no azul, a cor dos oceanos.

Jorge Pontual — Atrás da senhora, temos o Deepworker. A senhora mergulhou no oceano dentro dele. E ele é tão pequeno! Como é estar lá dentro?
Sylvia EarleÉ como uma roupa de mergulho. É um submarino que você veste. É como mergulhar, mas dentro de uma concha. Temos grande parte da mobilidade e da liberdade que os mergulhadores têm, mas podemos descer muito mais fundo.

Jorge Pontual — A senhor foi uma das primeiras aquanautas mulheres, não foi?
Sylvia EarleNa verdade, eram 10 equipes, e 9 delas eram de homens. Eles decidiram reunir uma de mulheres porque, na década de 1970, as mulheres eram tratadas de outra maneira, e a ideia de ter homens e mulheres juntos debaixo d’água era inaceitável. Então formaram uma equipe de mulheres, que eu liderava. Inicialmente, eles nem pensavam em mandar mulheres, mas o chefe do programa, doutor James Miller, devia ter uma boa esposa, talvez uma boa mãe, e foi ele quem decidiu se haveria ou não mulheres no programa. O famoso comentário dele foi: “Bem, metade dos peixes são fêmeas, então acho que podemos aguentar algumas mulheres.” E assim foi feito. E acabou dando muito certo. Dizem que o sucesso da equipe de mulheres do Projeto Tektite levou à ideia de que daria certo mandar mulheres para o espaço. Isso parecia lógico, mas eles precisavam de provas disso, e nós demos.

Jorge Pontual — Eu adoro ler e ver os vídeos em que a senhora fala da sua experiência naquele submarino, de que, na verdade, era observada pelos animais.
Sylvia EarleAconteceu uma coisa que mudou minha perspectiva no oceano. Por exemplo, quando anos atrás eu comecei a estudar as baleias no ambiente delas, as baleias-jubartes, conhecidas como “baleis-cantoras”. Elas são cidadãs globais. Eu pensei que iria observar as baleias, mas o que aconteceu foi que eu senti que as baleias é que me observavam. Era uma via de mão dupla. Elas me inspecionavam enquanto eu as observava. Acho que nunca vou saber o que elas pensaram, mas o fato de elas serem curiosas e desviarem de seu caminho para observar a mim e ao cientista que trabalhava comigo foi parte dessa experiência.

Jorge Pontual — A senhora acaba de chegar da Antártida. Esteve em uma conferência em um navio sobre pesquisa climática. O que está acontecendo na Antártida agora?
Sylvia EarleOs oceanos polares, as áreas polares, o Ártico e a Antártida, mostram, de maneira ampliada, as mudanças que ocorrem no planeta com relação ao clima e a várias coisas. Eu estive no Ártico várias vezes e, ao longo dos anos, eu vi pessoalmente a redução no tamanho das geleiras durante o verão. Mas há cientistas medindo isso desde 1980 de uma maneira muito detalhada, e a redução das geleiras no verão é algo chocante. Em um período tão curto de tempo, perdemos 40% da camada de gelo. E falo da superfície. Não verificamos o que fica abaixo da superfície, o gelo que fica no mar. Na Antártida é igual. A quantidade de gelo está se reduzindo. As consequências disso deveriam ser motivo de grande preocupação. Não me refiro apenas ao óbvio aumento do nível do mar, mas também às mudanças que já estão ocorrendo nas temperaturas do planeta, às questões ligadas ao aquecimento global. O aumento da acidez é muito preocupante para todos os tipos de criaturas que vivem no mar, não apenas para aquelas diretamente afetadas por um ambiente mais ácido, como recifes de coral, ostras, mariscos e seres com concha de carbonato de cálcio.

Jorge Pontual — Quais são as consequências da acidificação dos oceanos?
Sylvia EarleO efeito da acidificação dos oceanos nos corais e em qualquer criatura que tenha concha de carbonato de cálcio é direta. A acidez dissolve a concha ou impossibilita sua formação. Mas há outros efeitos. Um ambiente mais ácido afeta a fisiologia da vida. Ele favorece algumas criaturas, mas implica uma mudança. O sistema todo se altera quando se altera a base química. E nós mudamos a temperatura do planeta e a base química do planeta. E não é apenas a acidificação dos oceanos, mas também os vários tipos de materiais sintéticos e químicos que mandamos para a atmosfera e para os oceanos, que adicionamos à química da vida. E isso aconteceu em um curtíssimo período de tempo. A maior parte dessas mudanças ocorreu nos últimos 100 anos, e elas estão mais rápidas. Superficialmente, pode parecer que essas mudanças beneficiam os seres humanos, mas quando você se afasta e percebe que nossas vidas e tudo com que nos importamos dependem da manutenção da integridade do sistema que nos mantém vivos, torna-se evidente que nós estamos sobrecarregando a natureza da natureza e ameaçando a capacidade da Terra de nos sustentar. E a questão é toda essa. É claro que proteger a natureza significa proteger as árvores, as aves, os peixes, os recifes de coral, mas, no final das contas, com isso, protegemos a nós mesmos. Porque todos esses elementos são parte do que faz a Terra funcionar, do que torna a Terra hospitaleira para nós. Foram necessários todos os anos de história do planeta, 4,5 bilhões de anos de sintonia fina até chegar a um ponto adequado à vida humana. Nos últimos 10 mil anos, tivemos essa “janela” relativamente estável que possibilitou que o gênero humano prosperasse. Antes desse período, tivemos altos e baixos: mudanças climáticas, diferenças na composição da vida na Terra. Mas elas não foram tão favoráveis. Seria do nosso maior interesse tentar manter essa estabilidade e fazer todo o possível para manter as coisas equilibradas. Mas parece que nós temos feito praticamente todo o possível para desestabilizar o modo como o mundo funciona.

Jorge Pontual — O movimento ambientalista se chama de “movimento verde”, mas a senhora chama a atenção para o fato de que deveria se chamar “movimento azul”.
Sylvia EarleO negócio é o seguinte: a água é imprescindível para a vida, é imprescindível para nossa existência nesta pequena parte do universo. A milagrosa capacidade da Terra de manter os oceanos… 97% da água da Terra está nos oceanos. Grande parte do que resta de água doce — 3% da água do planeta — está nas calotas polares, pelo menos até agora. E a maior parte dela está na Antártida. A camada de gelo que cobre a Groenlândia também está lá. Mas, sem oceanos, não há vida, não há humanos. Nossa capacidade de alterar a natureza do oceano significa que temos o poder de mudar a natureza do mundo de uma maneira que não é favorável a nós. Desde que eu era criança, desenvolvemos novas tecnologias, novas maneiras de ter acesso ao mar e extrair recursos do oceano, sendo capazes de eliminar 90% de uma boa parte dos peixes grandes dos oceanos. A maior parte do oxigênio que nós respiramos é gerada por pequenas criaturas que vivem nos oceanos. Essas criaturas dependem da cadeia alimentar, que devolve nutrientes ao sistema em que elas vivem, para que elas prosperem. Elas absorvem o dióxido de carbono da atmosfera. Entender esse ciclo de vida deveria ser um chamado que nos despertasse, para que respeitássemos os outros tipos de vida do planeta como a pedra fundamental do sistema que sustenta a nossa vida. Nós precisamos das aves, precisamos das árvores, nós precisamos dos peixes. A natureza não é uma opção, a natureza e o mundo natural são essenciais para a nossa vida.

Jorge Pontual — A maioria das pessoas não sabe que, quando joga fora uma sacola plástica, ela provavelmente vai parar no estômago de uma tartaruga, de um golfinho, de uma baleia.
Sylvia EarleNós precisamos entender que o problema não é o plástico, e sim o que fazemos com ele e como o tratamos. As garrafas de plástico descartáveis não fazem sentido. Um recipiente usado uma só vez, que você usa e joga fora, ou um copo, ou uma colher… A única justificativa para usar essas coisas uma só vez seria reciclá-las sempre, garantir que, sempre que algo descartável fosse usado, não acabasse em um lixão ou no oceano. Mas melhor ainda seria aprender a usar o plástico de outra maneira, de modo que o plástico descartável não fizesse mais sentido, agora que sabemos que é assim. Eu vi o que acontece quando uma tartaruga encontra uma sacola plástica e a ingere achando que é bom para ela, acabando morta por esse plástico. Na costa da Califórnia, alguns anos atrás, um filhote de cachalote foi encontrado morto na praia. Quando foi dissecado, ele tinha 180 kg de plástico no estomago. E as pessoas perguntaram: “Por que ele morreu?” Está muito claro. Ele engoliu esse plástico todo, que bloqueou seu sistema digestivo. Ele não tinha como sobreviver.

Jorge Pontual — A senhora disse que a área de oceano protegida hoje é de menos de 1%.
Sylvia EarleNós temos sido agressivos e otimistas demais sobre o quanto podemos tirar e não pensamos na natureza do sistema como um todo. Está na hora de repensar como vemos a vida no oceano e perceber que seu valor como sistemas vivos transcende seu valor como quilos de carne. Neste momento, é vital que reexaminemos o modo como vemos o oceano e o que o oceano nos dá, para vê-los como um sistema completo. É claro que usaremos os oceanos para transporte. É claro que usaremos os oceanos para nos divertirmos. É claro que usaremos os oceanos, ao menos em escala limitada, como fonte de proteína, mas nós ampliamos tanto nossa capacidade, em um período tão curto, que corrompemos a integridade do sistema que nos dá basicamente o que permite a vida na Terra e que nós damos como certo. Mas estamos presenciando hoje o colapso desses sistemas. É como usar um buldôzer na floresta para pegar as aves. Nós derrubaríamos toda a floresta e conseguiríamos alguns quilos de proteína. Isso não faz sentido, mas é assim que temos extraído a vida selvagem do mar há um século, principalmente nos últimos 50 anos. E o ritmo tem aumentado nos últimos anos, porque estamos indo cada vez mais fundo. Nós nem nos preocupamos em descobrir o que há ali antes, para explorar o valor potencial que vai além da carne. Isso não faz o menor sentido racionalmente.

Jorge Pontual — Qual é o impacto da exploração de petróleo em águas profundas? De petróleo e de gás. O Brasil já está fazendo isso e vai chegar mais fundo. Os EUA tiveram um acidente horrível no Golfo do México.
Sylvia EarleAo longo da existência da civilização humana, nós descobrimos maneiras de suprir nossas necessidades. Houve uma época em que as baleias eram capturadas e mortas por causa do óleo. Capturavam-se esses mamíferos enormes, que levam 100 anos para crescer, apenas para extrair o óleo usado para a iluminação e a calefação, em alguns casos. Mas, em um período relativamente curto de tempo, conseguimos extinguir esses ativos, e foi o descobrimento do petróleo e do gás como fonte de combustível e de energia que aliviou a pressão em torno das baleias. Foram a queda no número de baleias, mas também o advento do petróleo e do gás como fontes de energia. Só quando eu era criança, a extração de gás e petróleo, não só em terra, mas no mar, começou a surgir.

Jorge Pontual — É algo bem recente.
Sylvia EarleFoi só no início dos anos 1950 que começamos a explorar as profundezas dos oceanos. Agora, parece que há grandes recursos, em termos de petróleo e gás, em águas profundas, e nossa capacidade de acessá-lo é zero. De certo modo, é um paradoxo que queimar combustíveis fósseis tenham nos permitido subir alto nos céus, ir à Lua, colocar satélites em órbita, nos comunicarmos de uma maneira que seria impossível sem essa fonte de energia. Nossa civilização prosperou. Agora, nós somos 7 bilhões de pessoas na Terra. Quando eu cheguei aqui, éramos 2 bilhões. Essa prosperidade está diretamente ligada à nossa capacidade de extrair e usar combustíveis fósseis. Agora, nós sabemos. Agora, nós sabemos que precisamos fazer outras coisas. Se quisermos sobreviver, é essencial que passemos da queima de combustíveis fósseis a outras maneiras de fornecer energia à nossa sociedade. Energia solar, eólica, de fontes que talvez nunca tenhamos imaginado. Mas precisamos pegar o que sabemos hoje e tomar outro caminho o mais rápido possível. Vendo como ainda somos dependentes de petróleo e gás, precisamos ser mais sensíveis sobre como extraí-los. Quanto vale a vida? Quanto vale o oxigênio da atmosfera? E um ambiente estável, em que possamos sobreviver? Qual é o preço disso? Nós não temos feito um ótimo trabalho ao mensurar o valor dos benefícios para a vida, mas é isso que está se perdendo agora com a degradação do Golfo do México, com a própria degradação dos oceanos. No Brasil, à medida que são feitas novas descobertas de ativos — de acordo com a atual definição de “ativo”, algo que se pode vender por dinheiro —, as reservas de petróleo e gás precisam ser confrontadas com o valor de outros ativos. Nós precisamos pesar o verdadeiro custo de queima de combustíveis fósseis em comparação com o verdadeiro benefício de manter a integridade do sistema para todos os outros valores que recebemos. A chave da continuação da nossa sobrevivência, da nossa prosperidade, é a sabedoria. A sabedoria vem acompanhada do cuidado, e o cuidado vem acompanhado da esperança de que encontraremos um lugar duradouro para nós dentro dos sistemas naturais que sustentam nossa vida. Nós temos o poder de compreender o que nenhuma outra criatura na Terra compreende. Há outras criaturas inteligentes. As baleias são inteligentes, os elefantes são espertos, nossos parentes, os primatas, são inteligentes, cães, gatos, todos eles têm inteligência, mas eles não são capazes de saber o que nós temos o poder de saber. E eles não têm o poder de fazer o que nós podemos fazer. Cabe a nós. E, de certo modo, podem dizer que somos os piores inimigos do planeta, mas nós também somos sua maior esperança. Em um período relativamente curto de tempo, nós minamos a capacidade do planeta de sustentar nossa vida, mas nós também temos o poder, em um tempo relativamente curto, de usar esse poder que temos para mudar as coisas, para nos colocar no caminho da verdadeira sustentabilidade. E isso só pode acontecer com políticas abrangentes que tratem do problema de como proteger os sistemas que nos mantêm vivos, inclusive protegendo grandes áreas de sistemas naturais que ainda restam e fazendo todo o possível, de uma maneira abrangente, para proteger os sistemas que nos protegem.

Jorge Pontual — Então, lá no fundo, a senhora é otimista.
Sylvia EarleEu sei que não podemos voltar atrás. Não podemos fazer o Golfo do México voltar a ser como era quando eu era criança. Mas eu também sei que podemos torná-lo melhor do que seria se não fizéssemos nada. Isso vale para o planeta todo. Nós temos o poder de melhorar as coisas, e a hora é agora. Os próximos 10 anos serão os mais importantes dos próximos 10 mil anos, pelo que vamos fazer e pelo que não conseguiremos fazer. A hora é agora.

Jorge Pontual — Obrigado. Muito obrigado.
Sylvia EarleObrigada. 

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