Congresso da Abradt

Matéria tributária não permite ativismo judicial

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17 de agosto de 2012, 20h24

A expansão do Poder Judiciário na vida institucional brasileira é fato incontestável. O Supremo Tribunal Federal, em especial, tem decidido questões de larga repercussão social e política.

Pode-se dizer que a judicialização no Brasil, assim entendido como o protagonismo institucional e político do Poder Judiciário, tomou vulto com a redemocratização do país, e se tivermos que escolher um marco, certamente este seria a Assembleia Nacional Constituinte, que culminou com a Constituição de 1988.

O nosso modelo de Constituição analítica trouxe para dentro do texto constitucional muitos temas que eram tratados até então no plano da legislação ordinária e, a partir do momento que matérias são constitucionalizadas, amplia-se o papel político do STF. Além disso, o Brasil adota simultaneamente dois sistemas de controle de constitucionalidade das leis. O controle difuso e o concentrado. O primeiro, permitindo que qualquer juiz declare a inconstitucionalidade de uma lei e o segundo autorizando o julgamento em abstrato da norma, tendo a Constituição de 1988 ampliado significativamente o rol das pessoas legitimadas a ajuizarem as ações diretas de inconstitucionalidade, além de terem sido criadas novas modalidades de controle concentrado, como a ação direita de inconstitucionalidade por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade e a ação por descumprimento de preceito fundamental.

O Poder Judiciário, destacando-se entre os demais, exerce cada vez com mais desenvoltura o ativismo judicial, criando uma forte linha de tensão no desejado equilíbrio entre os poderes.

Uma das razões deste embate entre os poderes está no fato de que são produzidas tantas normas inconstitucionais no país que o Judiciário é constantemente convocado a afastá-las do ordenamento jurídico, gerando nos jurisdicionados a sensação de instabilidade das regras jurídicas.

Além disso, as decisões judiciais têm produzido eficácia muito além das partes envolvidas no processo, em razão dos efeitos vinculantes de seus julgados, tanto no controle difuso quanto no concentrado. Com isso, as decisões dos tribunais superiores passam a ter aplicação generalizada que até há pouco tempo era (a generalização) atributo exclusivo da norma emanada do poder legislativo.

Mais grave, as decisões judiciais com efeito amplíssimo não têm se mantido estáveis, em razão das mudanças jurisprudenciais. Os Tribunais Superiores que julgam matéria tributária têm revisto sua própria jurisprudência com uma frequência incomum.

O Poder Executivo, de sua vez, se serve abusivamente das medidas provisórias, decretos e outros instrumentos normativos invadindo a competência do Legislativo.

Exerce, ainda, ilegitimamente, funções típicas do Judiciário ao decidir, por meio de ato normativo baixado por autoridade fazendária, que legislações de outros estados da federação são inconstitucionais, anulando seus efeitos dentro do seu território, em um ambiente de guerra fiscal.

E o Poder Legislativo, cada vez mais atrofiado no seu papel de criar o direito positivo, apenas dá legitimidade às normas emanadas do Poder Executivo, convertendo medidas provisórias em lei, tomando poucas vezes a iniciativa de um projeto de sua autoria.

Em suma, o Poder Judiciário e o Poder Executivo legislam cada vez mais e o Poder Legislativo é cada vez menos poder.

Não se questiona que o princípio da separação dos poderes possa ser objeto de releitura ou de ser reinterpretado de modo a flexibilizar o campo de atuação de cada um dos três clássicos poderes, mas não há dúvidas de que o respeito ao princípio está intimamente vinculado à eficácia do regime democrático.

Não há espaço para ativismo judicial em matéria tributária. A Constituição outorga poderes a União, Estados, DF e Municípios para instituírem tributo por lei, ou seja, o exercício da competência tributária é privativo das pessoas políticas que receberam tal poder e jamais poderá ser exercido pelo Poder Judiciário.

De sua vez, os princípios constitucionais tributários são normas que, na classificação de José Afonso da Silva, seriam de eficácia plena, ou seja, são de aplicação direta dispensando regulamentação infraconstitucional, e, portanto, não abrem espaço para o ativismo judicial. Além do mais, em um sistema em que o princípio da estrita legalidade ou da tipicidade cerrada deve imperar, não há margem para o julgador legislar.

Assim, em tempos no qual o Poder Judiciário invalida, com frequência, as ações de outros poderes, bem como efetivamente exerce o papel de legislador positivo, devemos ampliar o raio de ação dos princípios que visam garantir segurança jurídica à coletividade.

A positivação da segurança jurídica em matéria tributária mereceu grande atenção nas Constituições pátrias, sendo que na Constituição de 1988 podemos identificá-la nos princípios da legalidade, anterioridade e irretroatividade. Tais princípios, em conjunto, representam o que denominamos de princípio da não-surpresa do contribuinte.

Como expressão da segurança jurídica, resultado da aplicação articulada da legalidade, anterioridade e irretroatividade, o princípio da não-surpresa deve ser aplicado não somente à lei mas às decisões do Poder Judiciário de amplo alcance, ou seja, àquelas cujos efeitos extrapolam os autos dos processos em que são proferidas, bem como àquelas em que o Judiciário atua como legislador positivo.

Por exemplo, quando se atribui ao Supremo Tribunal Federal o poder de modular os efeitos temporais de suas decisões, que, sem sombra de dúvidas é uma manifestação de ativismo judicial, o princípio da não-surpresa deve ser o guia a conduzir esta modulação em matéria tributária.

Com efeito, se a modulação decorrer de uma mudança na jurisprudência até então favorável ao contribuinte, a aplicação da não-surpresa é uma exigência que se impõe à nova orientação jurisprudencial, no sentido de se atribuir efeitos ex nunc ao novo entendimento do STF, para que o contribuinte que seguia a orientação jurisprudencial antiga e consolidada não seja surpreendido.

Dito de outro modo, deve ser conferido efeito ex nunc, em obediência ao princípio da não-surpresa, a eventual modificação de jurisprudência em detrimento dos contribuintes.

Pelas mesmas razões, se deve inverter a orientação quando a decisão é em desfavor das Fazendas Públicas, pois estas devem necessariamente ter efeito ex tunc. Não se pode alegar que o Estado possa ser surpreendido, com eventual declaração de inconstitucionalidade de lei tributária.

A não-surpresa, bem como todos os princípios constitucionais tributários são limitações ao poder de tributar e não podem ser invocados por quem é titular deste poder.

Deve-se ainda aplicar o princípio da não-surpresa em decisões proferidas em desfavor do contribuinte em sede de ação rescisória, bem como nas que cassam liminares e outras formas de tutela de urgência que dispensavam o contribuinte do pagamento do tributo. Isto porque, todos estes exemplos são de casos em que a obrigação de pagar tributo volta a existir a partir de uma decisão judicial.

Desta forma, a partir do momento em que a lei oriunda do Poder Legislativo deixa de ser a única fonte de obrigação tributária, a segurança jurídica fica abalada a não ser que os princípios e regras constitucionais que agem para dar eficácia à segurança jurídica e que são conexos e interligados com a legalidade tributária, passem também a atuar em face das decisões judiciais e dos atos do Executivo.

Assim, a não-surpresa, que ora se propõe, amplia o raio de ação desses princípios e regras para que eles sejam aplicados em face de “atos normativos” emanados do Poder Judiciário e do Poder Executivo (nos casos de guerra fiscal, por exemplo), do mesmo modo em que são aplicados em relação à lei nova que cria ou aumenta tributo. Em sentido amplo, o princípio da não-surpresa deve também atuar como instrumento constitucional de limitação ao poder judicial de tributar, fenômeno do século XXI.

Teremos entre os próximos dias 19 e 21 de setembro, em Belo Horizonte, no XVI Congresso da Abradt, a oportunidade de reunir ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça, magistrados, professores, advogados públicos e privados e autoridades fazendárias para aprofundarmos bem mais esse debate em torno do tema Jurisdição Tributária.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Tributário, mestre em Direito Constitucional, professor adjunto de Direito Financeiro e Tributário da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, membro-fundador e secretário-geral da Associação Brasileira de Direito Tributário e sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, responsável pela sede no Rio de Janeiro.

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