Mudando e bagunçando

Leis propostas sem reflexão atrapalham em vez de ajudar

Autor

  • Ivone Zeger

    é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão e autora das obras "Família: Perguntas e Respostas" "Herança: Perguntas e Respostas" e "Direito LGBTI: Perguntas e Respostas".

16 de agosto de 2012, 18h43

Em uma situação ideal, as coisas deveriam ocorrer mais ou menos assim. Ao propor uma nova lei — ou mudanças em leis já existentes — o parlamentar deveria, primeiro, sair de seu gabinete e ter contato direto com a realidade. De que forma essa realidade será afetada pela nova lei? A mudança é realmente para melhor? Ela atende aos anseios da população? As pessoas que serão mais afetadas por essa lei foram ouvidas? Suas considerações foram levadas em conta?

Depois dessa reflexão, o parlamentar se reuniria com uma equipe técnica para identificar como a nova lei interage com outras já existentes, seus possíveis desdobramentos a curto, médio e longo prazo e que ajustes deveriam ser feitos para que ela cumpra a função a que se destina — se não for pedir demais, a função da nova lei deveria ser melhorar alguma coisa. E, é claro, espera-se que o fruto de todas essas pesquisas, debates, reflexões e estudos seja redigido de forma clara e precisa, em bom português. Se, mesmo assim, alguma coisa não saísse como deveria, ainda haveria oportunidade de conserto. Afinal, o projeto de lei ou de emenda ainda passará pelo crivo de comissões da Câmara e do Senado.

Ocorre, porém, que estamos muito longe da situação ideal. Veja-se, por exemplo, o que está acontecendo com a Emenda Constitucional 66/2010, que permite a realização do divórcio sem a necessidade da separação prévia. A emenda extinguiu ou não extinguiu a separação judicial? Por incrível que pareça, essa questão básica que a mudança constitucional deveria responder não ficou clara na forma como o texto foi redigido. O texto da emenda diz que o parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Notem que o verbo “poder” não indica obrigatoriedade, mas possibilidade. Conclusão: para alguns juristas, a emenda não extingue a separação judicial, apenas a torna opcional. Para outros, como a emenda removeu o termo separação judicial que constava originalmente no parágrafo 6º, entende-se que esse procedimento foi extinto.

Só para complicar um pouco mais, mudou-se a Constituição, mas não se mudou o Código Civil. Naturalmente, nossa Carta Magna tem prevalência sobre o Código. Contudo, é o Código que regulamenta uma série de assuntos que não cabe à Constituição tratar. Para tentar resolver essa confusão, o Projeto de Lei 7.661/2010, de autoria do deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA), propõe a revogação de todos os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial. Na interpretação do deputado, o instituto da separação judicial foi extinto no Brasil.

Mas revogar os artigos que tratam da separação judicial é uma coisa. Regulamentar o divórcio direto é outra. Tudo indica que as dúvidas irão continuar — e novos projetos de lei irão surgir para tentar esclarecê-las. O curioso é que esse vaivém, que consome tempo e recursos, poderia ter sido evitado se a emenda possuísse uma redação mais precisa e se as alterações no Código Civil tivessem sido feitas concomitantemente.

Se toda essa controvérsia envolvendo a interpretação das duas linhas de texto que constituem a mudança constitucional pode atrapalhar quem está se divorciando, outro caso de lei malfeita teve efeitos ainda piores. Refiro-me à Lei 12.015/2009, cujo objetivo era aumentar a pena do estuprador. Antes de a lei entrar em vigor, obrigar alguém a praticar os chamados atos libidinosos (como sexo anal e oral, entre outros) era considerado atentado violento ao pudor. O estupro só ocorria quando havia conjunção carnal. A nova lei mudou isso, transformando conjunção carnal e os demais atos libidinosos forçados num único crime: o de estupro.

A princípio, a mudança parece sensata e necessária — é absurdo imaginar que um indivíduo que obriga outro a praticar sexo anal, por exemplo, não seja considerado um estuprador. Entretanto, a grande falha da lei é desconsiderar a forma como as penas por estupro e atentado ao pudor eram somadas, o que resultava em penas maiores.

Agora esse recurso não é mais possível. Como tudo isso constitui o mesmo crime — o de estupro — aplica-se uma única pena.

Os estupradores agradecem. Um importante princípio do Direito Penal diz que a lei só pode retroagir para beneficiar o réu. Ou seja, se a nova legislação for benéfica para o condenado, ele pode utilizá-la — mesmo para um crime cometido antes de sua promulgação. Resultado: os tribunais têm recebido uma enxurrada de pedidos de revisão criminal e Habeas Corpus da parte de pessoas que foram condenadas por estupro e atentado violento ao pudor. Elas alegam que, como a nova lei transformou os dois crimes em um, a pena deve ser referente a apenas um crime e, portanto, reduzida. A tese tem sido aceita pelos juízes.

Só para resumir o que eu dizia no início deste artigo, numa situação ideal, as coisas deveriam ocorrer mais ou menos assim: as leis seriam feitas para melhorar, e não para bagunçar a vida do cidadão.

Autores

  • Brave

    é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da Comissão de Direito de Família da OAB-SP e autora dos livros Herança: Perguntas e Respostas e Família: Perguntas e Respostas.

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